Inacio
de Carvalho Neto*
O novo
Código Civil, no art. 1.571, § 1º., passou a admitir a presunção de
morte
como causa de dissolução do casamento1.
Contraria, assim, o que dispunha o art. 315,
parágrafo
único, do Código de 1916, que expressamente excluía a morte presumida como
causa
de
dissolução do matrimônio. Ou seja, por mais duradoura que fosse a ausência, não
tinha ela o
condão
de dissolver o casamento2. Com a revogação deste dispositivo pelo
art. 54 da Lei do
Divórcio,
e não tratando esta expressamente do tema, entenderam alguns autores ser
possível a
dissolução
do matrimônio pela morte presumida3.
Não
obstante, entendemos que a morte presumida não tinha este condão. Posto
que
não repetida expressamente a proibição do dispositivo revogado do Código Civil,
não se
podia
requerer a declaração de dissolução do vínculo matrimonial por morte presumida
de um
dos
cônjuges, já que o instituto da morte presumida se referia exclusivamente à
sucessão dos
* Especialista
em Direito Penal e Processual Penal pela Unipar. Mestre em Direito Civil pela
Universidade Estadual
de
Maringá – UEM. Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo –
USP. Professor de Direito
Civil
da Unifil, da Faccar, da Escola do Ministério Público e da Escola da
Magistratura do Paraná. Promotor de
Justiça
no Paraná. Autor dos livros Separação e divórcio: teoria e prática, ed.
Juruá, 5ª. edição; Aplicação da
pena, ed.
Forense, 2ª. edição; Responsabilidade do Estado por atos de seus agentes, ed.
Atlas; Ação
declaratória
de constitucionalidade, ed. Juruá, 2ª. edição; Abuso do
direito, ed. Juruá, 3ª. edição; Extinção
indireta
das obrigações, ed. Juruá, 2ª. edição; Novo
Código Civil comparado e comentado, ed. Juruá, em 7
volumes
(alguns em 2ª. edição); Responsabilidade civil no direito de
família, ed. Juruá; e de diversos artigos
publicados
em diversas revistas jurídicas. E-mail do autor: inaciocarvalho@onda.com.br.
1 “§ 1º.
O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo
divórcio, aplicando-se a
presunção
estabelecida neste Código quanto ao ausente”. Igualmente dispõe o Código Civil
argentino, com a
redação
da Lei nº. 23.515/87, com a diferença de que a dissolução só ocorre com o novo
casamento: “Art. 213 -
El vínculo
matrimonial se disuelve: 1) por la muerte de uno de los esposos; 2) por el
matrimonio que contrajere
el cónyuge del
declarado ausente com presunción de fallecimiento; 3) por sentencia de divorcio
vincular”).
Da
mesma
forma o Código Civil italiano: “65. Nuovo matrimonio
del coniuge. – Divenuta eseguibile la sentenza che
dichiara
la morte presunta, il coniuge può contrarre nuovo matrimonio”.
Igualmente dispunha o art. 59 do
Projeto
de Orlando Gomes.
2 Observe-se
o quanto perniciosa era a regra: imagine-se a hipótese de pessoa recém-casada,
ainda nova,
desaparecendo
em seguida seu cônjuge. Ficaria essa pessoa para o resto da vida
impossibilitada de se casar
novamente,
tendo em vista a impossibilidade do divórcio à época.
3 “Ainda
que se efetuasse a sucessão definitiva, com a presunção de morte, não se
considerava dissolvido o
casamento,
de sorte que o cônjuge presente não podia contrair novo casamento. Agora,
porém, não há mais
óbice”
(PACHECO, José da Silva. Inventários e partilhas. 10.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996, p. 67) (grifo
nosso).
“Se a lei admitiu, para efeitos patrimoniais, uma presunção de morte do ausente
há mais de vinte anos ou
que
completou 95 anos de idade, não se vê razão para não admitir a mesma presunção
em matéria de casamento.
Se
houve para um caso uma forte razão de fato a justificar a presunção, também
haverá no outro caso” (CRUZ,
Guilherme
Braga da. Direitos de família. 2. ed. Coimbra:
Coimbra, 1942, v. 1, p. 123).
bens
deixados pelo ausente4. Necessário se fazia, portanto, que o
cônjuge promovesse o divórcio,
o que
lhe seria, inclusive, mais fácil, já que o divórcio direto depende apenas de
dois anos de
separação
de fato, ao passo que, para a configuração da morte presumida, ordinariamente,
se faz
necessária
a ausência por dez anos (art. 1.167, inciso II, do Código de Processo Civil).
Talvez
por
esta razão não tenha o legislador repetido a norma do revogado art. 315 do
Código Civil.
Naquele,
como não se aceitava o divórcio a vínculo, era necessário deixar expresso que
também
não se
aplicaria a presunção de morte. A partir da Lei nº. 6.515/77, instituído o
divórcio,
dificilmente
alguém se utilizaria desta presunção para dissolver o vínculo conjugal.
Ademais,
como
lembrava Yussef Said CAHALI, “ausente qualquer provisão legal que o autorize,
continua
inexistindo
qualquer ação direta para a declaração da ruptura do vínculo matrimonial devido
à
ausência
declarada ou presumida do cônjuge; nem esta ausência, ainda que declarada
judicialmente,
tem o condão de produzir ipso jure a
dissolução do matrimônio”5.
Mas o
novo Código Civil altera esta situação, decretando, no art. 1.571, § 1º., a
dissolução
do casamento pela ausência do outro cônjuge em decisão judicial transitada em
julgado.
Pode agora, o cônjuge do ausente, optar entre pedir o divórcio para se casar
novamente
ou
esperar pela presunção de morte, que se dá com a conversão da sucessão
provisória em
definitiva.
O divórcio, embora mais rápido, tem a desvantagem de fazer o cônjuge perder o
direito
à sucessão. Com efeito, sendo o cônjuge herdeiro ainda que haja descendentes ou
ascendentes
do de cujus (ou, no caso, do ausente), nos termos do art. 1.829 do
novo Código,
precisará,
não obstante, conservar a posição de cônjuge até a conversão da sucessão
provisória
em
definitiva, quando, só então, haverá realmente a vocação hereditária. Se se
divorciar antes,
embora
tendo a vantagem de poder se casar novamente desde logo, terá a desvantagem de
perder
a
capacidade sucessória do ausente.
Mas a
lei não resolve algumas questões que a nova norma suscita: em primeiro
lugar,
em que momento se considera presumida a morte do ausente, para o fim da
dissolução do
4 Neste
sentido a lição da doutrina majoritária: “Quanto à primeira hipótese de
dissolução da sociedade conjugal, no
art.
2º., inciso I, prevista (morte de um dos cônjuges), que, consoante esclarece o
parágrafo único do mesmo
artigo,
também é caso de dissolução do vínculo matrimonial - oportuno é observar -, a
despeito do silêncio da lei,
que não
ressalva a vigência do parágrafo único do art. 315 do CC, pelo art. 54 da Lei
6.515/77 revogado - que
continua
excluída a hipótese de morte presumida (art. 10, 2ª. parte, do CC) -
quer como fundamento para a
dissolução
da sociedade conjugal, quer para extinção do vínculo matrimonial” (PEREIRA,
Áurea Pimentel.
Divórcio
e separação judicial. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1989, p. 22) (grifo
nosso). “Assim, para o efeito
da
dissolução da sociedade conjugal, não se aproveita a presunção
de morte do ausente, estabelecida no art. 10,
segunda
parte, do CC. ...Todavia, embora omitida a limitação da eficácia da presunção
de morte, não se deduz daí
terem
os novos legisladores se afastado da sistemática anterior, de modo a permitir
que, com a declaração judicial
da
ausência, induzindo a presunção de morte do cônjuge, decorra ipso
jure a liberação do outro para novo
matrimônio,
no pressuposto legal de estar dissolvido o vínculo anterior” (CAHALI, Yussef
Said. Divórcio e
separação. 10.
ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 69-70) (grifo no original). “O
efeito dissolutivo do
vínculo
se produz apenas com a morte real, provada mediante certidão de assento de óbito
do cônjuge. A
presunção
de morte do ausente não aproveita para o efeito de terminação do vínculo
conjugal, de modo que o
caminho
atual é o de que a ausência é causa de separação judicial ou de divórcio”
(FREITAS, Geralda Pedroso. A
terminação
do vínculo conjugal. In: O direito de família e a
Constituição de 1988. Coord. Carlos Alberto
BITTAR.
São Paulo: Saraiva, 1989, p. 220).
5 CAHALI, Yussef Said. Op.
cit., p. 71.
seu
casamento? Interpretando isoladamente os arts. 22 e 23 do novo Código6,
poder-se-ia chegar
à
singela conclusão de que tal dissolução se daria tão logo se desse o
desaparecimento do
ausente.
Mas tal interpretação contraria a sistemática do instituto, bem como a letra do
art. 6º.,
que
dispõe: “A existência da pessoa natural termina com a morte; presume-se esta,
quanto aos
ausentes,
nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão definitiva”. Assim, é
somente
com a
conversão da sucessão provisória em definitiva que se presume a morte do
ausente, pelo
que
somente essa conversão é que dissolve o casamento do ausente.
Há
quem defenda a idéia de que o cônjuge do ausente, para casar-se
novamente,
deve promover o divórcio. Mas tal entendimento não pode ser aceito. Que o
divórcio
dissolve
o vínculo conjugal não se duvida. Entretanto, não se pode exigir o divórcio no
caso em
tela,
pois a nova lei erigiu a morte presumida como causa independente de dissolução
do vínculo.
Vale
dizer: a morte é, ao lado do divórcio, causa de dissolução do casamento; a
conversão da
sucessão
provisória em definitiva, fazendo presumir a morte, dissolve também o vínculo,
e por si
só,
pelo que nada mais se pode requerer para dissolvê-lo, pois já estará o
casamento dissolvido
com a
sentença de conversão. Quisesse a lei que o cônjuge do ausente promovesse o
divórcio,
nada
precisaria ter dito, pois assim já era no sistema da Lei do Divórcio sem
qualquer texto legal.
A
sentença declaratória de ausência, nos termos do art. 9º., inciso IV, do
Código
Civil e do art. 94 da Lei de Registros Públicos, deve ser registrada no
Registro Civil. Daí
resultaria
para o cônjuge do ausente a condição de viúvo? A lei não o diz, mas é de se
supor que
sim,
pois seria esta a conseqüência principal do registro da sentença de conversão
da sucessão
provisória
em definitiva. Mas: viúvo de cônjuge vivo? Sim, porque não se pode negar que o
presumido
morto é um possível vivo. E mais: uma viuvez “revogável”? Admitindo a lei o
retorno
do ausente até 10 anos depois da conversão da sucessão provisória em
definitiva,
podendo
ele reassumir seus bens (art. 39), ou, mesmo depois dos 10 anos (embora sem
reassumir
seus
bens), naturalmente poderá o ausente reabilitar-se civilmente, deixando de ser
presumido
morto,
com o que estará revogado o estado de viúvo do seu cônjuge.
Pode o
ex-cônjuge do ausente, pretendendo casar, habilitar-se
matrimonialmente?
Que documentos deve apresentar? Vejamos o que diz o art. 1.525: “O
requerimento
de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio
punho,
ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes
documentos: ...IV
-
declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes
e de seus pais, se
forem
conhecidos; V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória
de
nulidade
ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença
de
divórcio”.
6 “Art.
22. Desaparecendo uma pessoa do seu domicílio sem dela haver notícia, se não
houver deixado representante
ou
procurador a quem caiba administrar-lhe os bens, o juiz, a requerimento de
qualquer interessado ou do
Ministério
Público, declarará a ausência, e nomear-lhe-á curador. Art. 23. Também se
declarará a ausência, e se
nomeará
curador, quando o ausente deixar mandatário que não queira ou não possa exercer
ou continuar o
mandato,
ou se os seus poderes forem insuficientes”.
De
princípio, já se vê que o ex-cônjuge terá que declarar seu estado civil para
casar
novamente. Declarará o estado de viúvo, com as implicações antes ditas? Ou, declarando
o
estado
de casado, aceitará o Oficial do Registro Civil a sua habilitação? Como
ficaria, neste caso,
o
impedimento do art. 1.521, inciso VI7? Mas
o maior problema é que a lei não previu a juntada
da
certidão do registro da sentença de conversão para fins de habilitação
matrimonial. No citado
inciso
V só se fala em certidão de óbito, de anulação ou de divórcio; esqueceu-se o
legislador de
que o
nubente que foi casado pode não ter nenhum desses documentos, mas apenas a
certidão de
registro
da sentença de conversão, documento que, nos termos do art. 1.571, § 1º.,
deve-lhe ser
suficiente.
Outra
conseqüência não prevista pelo legislador é o fato do eventual retorno do
ausente
após o casamento de seu ex-cônjuge. Imagine-se que, após a sentença de conversão,
o
ex-cônjuge
do ausente se case, aproveitando-se da disposição do art. 1.571, § 1º., vindo,
depois
do
casamento, a reaparecer o ausente. Como fica o primeiro e o segundo casamento
do cônjuge
do
ausente? Dir-se-á ser simples a solução, pois o citado parágrafo diz que o
primeiro casamento
se
dissolve pela presunção de morte, equivalendo, portanto, ao divórcio, ou à
morte real. Daí
seguiria
a conseqüência de que, estando dissolvido o primeiro casamento, válido ficaria
o
segundo8. Mas
deve-se discutir: a presunção de morte é uma presunção absoluta (juris
et de
jure)? Não
seria antes uma presunção relativa (juris tantum)? Não
se pode negar o seu caráter de
presunção
relativa, já que o ausente pode retornar e, em conseqüência, provar que não
está morto
realmente.
Sendo presunção relativa, desfaz-se com a prova de que não houve morte real, ou
seja,
com o reaparecimento do ausente. Então, desfeita a presunção, seria lógico se
entender
desfeita
também a dissolução do casamento. E a conseqüência disto seria desastrosa: o
segundo
casamento
do cônjuge do ausente foi feito em bigamia, sendo, portanto, nulo9. Esta
a solução
adotada
pelo direito italiano10. Seria razoável anular o casamento do
ex-cônjuge do ausente pelo
reaparecimento
deste depois de tanto tempo? Melhor seria se a lei tivesse disposição
semelhante
ao §
1.348 do BGB (Código Civil alemão), que dizia expressamente ficar válido o
segundo
casamento
nesse caso11.
7 “Art.
1.521. Não podem casar: ...VI – as pessoas casadas”.
8 Neste
sentido, escreve GONÇALVES, Carlos Roberto (Direito civil brasileiro:
parte geral. São Paulo: Saraiva,
2003,
v. 1, p. 118) que se o ausente “estiver vivo e aparecer, depois de presumida a
sua morte e aberta a sucessão
definitiva,
com a dissolução da sociedade conjugal, e seu cônjuge houver contraído novo
matrimônio, prevalecerá
o
último”.
9 Afasta-se,
contudo, as conseqüências criminais da bigamia (art. 235 do Código Penal),
tendo em vista que não
houve
dolo das partes.
10 “68. Nullità del
nuovo matrimonio. – Il matrimonio contratto a norma dell’articolo 65 è nullo,
qualora la
persona della
quale fu dichiarata la morte presunta ritorni o ne sia accertata l’esistenza. Sono
salvi gli effetti
civili del
matrimonio dichiarato nullo. La nullità non può essere pronunziata nel caso in
cui è accertata la morte,
anche
se avvenuta in uma data posteriore a quella del matrimonio”. No
mesmo sentido dispunha o Projeto de
Orlando
Gomes (art. 59).
11 Ҥ
1348. Se um cônjuge contrai um novo matrimônio depois de que o outro cônjuge
foi declarado falecido, o novo
matrimônio
não é nulo pela circunstância de que o cônjuge declarado falecido ainda viva, a
não ser que ambos
cônjuges
soubessem no momento da conclusão do matrimônio que o cônjuge declarado
falecido sobreviveu à
declaração
de falecimento”. Este dispositivo, contudo, está revogado.
Por
fim, ainda um questionamento: pode o próprio ausente se beneficiar da
dissolução
do casamento pela ausência? Ou em outros termos: pode o ausente, estando vivo
em
algum
lugar, contrair validamente um novo matrimônio? A lei não o diz, mas,
partindo-se do
pressuposto
que a dissolução se dá pela morte presumida, não estando o ausente morto
realmente,
não há dissolução do casamento, pelo que não poderá ele validamente casar
novamente.
Mas aí teremos outro problema: enquanto para o cônjuge do ausente o casamento
estará
dissolvido, para o ausente não, permanecendo ele casado. Mas, casado com quem?
Casado
com
alguém que é viúvo ou que já se casou com outra pessoa?
De
todo o exposto, concluímos que seria melhor que o legislador tivesse
evitado
a disposição em comento, mantendo a não dissolução do casamento pela presunção
de
morte,
de modo que fosse necessário ao cônjuge do ausente promover o divórcio,
evitando,
assim,
todas as complicações antes enunciadas.
Referências:
CAHALI,
Yussef Said. Divórcio e separação. 10. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2002.
CRUZ,
Guilherme Braga da. Direitos de família. 2. ed. Coimbra:
Coimbra, 1942, v. 1.
FREITAS,
Geralda Pedroso. A terminação do vínculo conjugal. In: O
direito de família e a
Constituição
de 1988. Coord. Carlos Alberto BITTAR. São Paulo: Saraiva,
1989.
GONÇALVES,
Carlos Roberto (Direito civil brasileiro: parte geral. São
Paulo: Saraiva, 2003,
v. 1.
PACHECO,
José da Silva. Inventários e partilhas. 10.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1996.
PEREIRA,
Áurea Pimentel. Divórcio e separação judicial. 3.
ed. Rio de Janeiro: Renovar,
1989.
Artigo retirado do
site http://www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/artigos/convidados/morte-presumida-como-causa.pdf