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A INVALIDADE DAS CLÁUSULAS LIMITATIVAS DE RESPONSABILIDADE NOS CONTRATOS DE TRANSPORTE AÉREO

Prof. Alberto do Amaral Júnior*

 

 O Conteúdo das Cláusulas de Não Indenizar

As cláusulas de não indenizar são instituídas com a finalidade de permitir que uma das partes do contrato se subtraia das conseqüências patrimoniais que adviriam em virtude de um fato de responsabilidade a ela atribuível. Trata-se de declaração de vontade expressa para modificar os efeitos legais que se produziriam na ausência dessa estipulação.

Em situação normal caberia ao agente causador do dano o dever de reparar os prejuízos ocasionados a terceiros. Por seu intermédio, no entanto, é estipulada antes mesmo da ocorrência do delito, a total ou parcial supressão do dever de reparar imposto pela norma legal.

Costumam ser elaboradas quando da conclusão do contrato, mas pode suceder que surjam em momento posterior ao nascimento da relação contratual, o que não altera o fim que orientou a sua instituição. Compreendem tanto as cláusulas que excluem ou exoneram de forma total o dever de reparar quanto as que limitam parcialmente esse dever. Em ambas as hipóteses, porém, o propósito é o mesmo: anular, modificar ou restringir as consequências normais de um fato de responsabilidade do beneficiário da estipulação.

Ao lado das cláusulas que excluem por completo o dever de reparar, encontram-se as que limitam esse dever fixando determinado patamar indenizatório, acima do qual é suprimida qualquer reparação complementar. Tudo que ultrapassar o teto convencional previsto não poderá ser pleiteado pelo devedor. O preestabelecimento dos danos por meio das cláusulas limitativas de responsabilidade viola o princípio da reparação integral, pois impede que sejam ressarcidos todos os prejuízos sofridos pela vítima.

Diversas das cláusulas de não indenizar são as disposições que afastam ou reduzem as obrigações de um dos contratantes, como, por exemplo, as que ampliam as causas de exoneração da responsabilidade. São dessa natureza também as cláusulas que abreviam o prazo normal para o exercício da ação de responsabilidade ou de garantia ou que criem obstáculos ao seu exercício.

Apesar da diferença dogmática que as separa, as cláusulas de não indenizar e as cláusulas que afastam ou reduzem as obrigações de um dos contratantes atingem o mesmo resultado, qual seja a paralisia do direito a indenização[1].

As cláusulas que afastam o dever de indenizar não se confundem com o seguro. Stiglitz, com a argúcia peculiar, assinala que as primeiras se destinam a eliminar por inteiro a obrigação de reparar e, conseqüentemente, o direito do lesado de exigir o ressarcimento. O seguro, por seu turno, tem por objeto reforçar a proteção contratual do credor e manter indene o patrimônio do devedor[2]. Enquanto as cláusulas de não indenizar liberam ou atenuam a obrigação do devedor, o seguro de responsabilidade civil mantém inalterável a responsabilidade, permanecendo intacto o dever de reparar do obrigado.

 

Se é verdade que as cláusulas que excluem o dever de indenizar aparecem nos contratos em geral, nos contratos por adesão ganham elas relevo particular. Exprimem nesses contratos a posição de supremacia de uma das partes. O objetivo visado é conferir legitimidade jurídica ao poder de que dispõe o predisponente.

Não há dúvida de que as cláusulas de não indenização trazem prejuízos aos consumidores. Quando não provocam a completa imunidade do fornecedor, impõem drástica limitação do dever de indenizar ou a transferência desse dever a terceiros. Tais cláusulas privam a obrigação de qualquer sanção jurídica, fator que a transforma em obrigação moral, destituída de garantia. Desaparece a faculdade de o credor exigir que o devedor cumpra a obrigação. Atentam contra o princípio da força obrigatória dos contratos porque não há risco a suportar quando o fornecedor exclui a obrigação que sobreviria como resultado de um fato a ele imputável.

 

As Cláusulas de Não Indenizar e o Direito Comum

Antes mesmo de ser aprovado o Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência mostrou-se contrária à inserção das cláusulas de não indenizar nos contratos de transporte, o que deu origem à Súmula 481 do Supremo Tribunal Federal nos seguintes termos: "Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de não indenizar".

Com fundamento no art. 1284 do C.C., a jurisprudência considera ineficaz a declaração unilateral do hoteleiro afirmando que não se responsabiliza pelo furto das bagagens de qualquer viajante em seu hotel. Analogamente, a jurisprudência reconhece que a cláusula de não indenizar não exime o dolo do estipulante, o mesmo ocorrendo em relação à culpa grave.

No âmbito do direito comum, a doutrina sustenta que a cláusula de não indenizar somente se aperfeiçoará se contar com o consentimento das partes, devendo ainda corresponder a uma vantagem paralela a ser obtida pelo outro contratante. O exemplo normalmente lembrado é o do transporte, em que a cláusula de não indenização somente teria eficácia se se correspondesse a uma redução da tarifa em favor de quem despachou a mercadoria.

Por último, os autores salientam que a exclusão contratual do dever de indenizar não pode ferir a ordem pública. As manifestações da autonomia privada deverão circunscrever-se aos limites estabelecidos pelas normas de ordem pública, sob pena de não produzirem qualquer efeito jurídico. Logo, a cláusula que impossibilita a reparação dos danos é inválida sempre que colidir com as imposições da ordem pública, não vinculando os seus destinatários.

 

As Cláusulas de Não Indenizar no Código de Defesa do Consumidor

O art. 51, Inciso I do Código de Defesa do Consumidor estabelece a nulidade das cláusulas que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade por vícios de qualquer natureza dos produtos ou serviços, ou que impliquem a renúncia ou a disposição de direitos. Semelhante dispositivo precisa ser analisado juntamente com o art. 25, que se encontra redigido nos seguintes termos:

"art. 25 - É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar nesta e nas seções anteriores".

A proibição legal pretendeu rejeitar a inclusão de cláusulas de não indenizar nos contratos para o consumo. Deve-se distinguir a estipulação das cláusulas que impossibilitem das que exonerem e atenuem a responsabilidade do fornecedor. No primeiro caso, estão as cláusulas que impossibilitam física e juridicamente a responsabilidade do fornecedor pelos produtos e serviços. Já no segundo acham-se as cláusulas que excluam ou apenas limitem a responsabilidade do fornecedor.

Ao vedar as cláusulas de não indenizar, o art. 25 alude, respectivamente, à Seção I, relativa à proteção e segurança dos consumidores, à Seção II, que diz respeito à responsabilidade pelo fato do produto e do serviço e à Seção III sobre a responsabilidade pelo vício do produto e do serviço.

A Seção I consagra a obrigação do fornecedor de informar os consumidores acerca dos produtos e serviços colocados no mercado, especialmente em relação ao perigo e nocividade que venham a apresentar. A violação da obrigação de informar, bem como a colocação no mercado de produto ou serviço com alto grau de periculosidade à saúde e segurança dos consumidores (art. 10), acarretará a responsabilidade do fornecedor, a qual não poderá ser afastada por meio de estipulação contratual. Assim, de nenhum modo o fornecedor poderá eliminar o dever legal de indenizar surgido em razão do descumprimento das prescrições constantes da Seção I do Código de Defesa do Consumidor.

Ao cuidar da noção de defeito na Seção II, que trata da responsabilidade pelo fato do produto, o Código visou, fundamentalmente, à tutela da integridade físico-psíquica dos consumidores. Já os vícios de qualidade e quantidade, regulados na Seção III, têm como objetivo proteger a esfera econômica do consumidor. Enquanto as normas pertinentes à responsabilidade pelos defeitos dos produtos e serviços se aplicam à reparação dos danos, a responsabilidade pelos vícios refere-se aos prejuízos verificados no produto ou serviço. Se determinado pesticida se revelar ineficaz, o fornecedor será responsável pelo fato de o produto apresentar vício de qualidade por inadequação. Contudo, se a utilização do pesticida provocar a destruição da colheita que deveria proteger, o fornecedor será responsável pela existência de defeito do produto, nos termos da Seção II do Código de Defesa do Consumidor.

Se na hipótese da ocorrência de defeito os danos a certos bens pertencentes à esfera patrimonial do consumidor são indenizáveis, desde que relacionados à sua incolumidade físico-psíquica, no caso dos vícios de qualidade e quantidade os danos são de natureza puramente econômica, devendo-se, por isso, aplicar os arts. 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor.

Cabe acrescentar ainda que a responsabilidade prevista na Seção II do Código de Defesa do Consumidor enseja o ressarcimento das perdas e danos, enquanto a responsabilidade por vícios oferece ao consumidor outras possibilidades além da mera indenização por perdas e danos, para a satisfação do seu interesse.

Pode o fornecedor livrar-se contratualmente da responsabilidade por defeito e vício dos produtos e serviços que a lei lhe impõe? A resposta é, como não poderia deixar de ser, evidentemente negativa.

A previsão do art. 25 a este respeito não suscita qualquer dúvida. De forma análoga ao que ocorre em relação à Seção I, é terminantemente vedada a exoneração total ou parcial da responsabilidade nessa matéria. Como se não bastasse, as normas do Código de Defesa do Consumidor têm caráter de ordem pública, não podendo ser modificadas por convenção entre as partes.

Na venda de veículos, é particularmente freqüente a inserção nos contratos de cláusulas que derroguem as garantias legais subtraindo a responsabilidade do fornecedor por danos provocados pelos defeitos e vícios dos veículos vendidos. Cláusulas desse tipo são agora nulas perante o Código de Defesa do Consumidor.

O art. 17 do Código de Defesa do Consumidor prevê que para os efeitos da Seção II referente à responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço se equiparam aos consumidores todas as vítimas do evento. Por esse motivo, são nulas de pleno direito as cláusulas que afastarem a responsabilidade do fornecedor perante as vítimas dos acidentes do consumo que, não obstante não sejam consumidores em sentido estrito, são a ele equiparáveis.

O art. 34 do Código de Defesa do Consumidor determina que o fornecedor do produto ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou representantes autônomos. Nesse caso, é proibida a cláusula que exclua, ainda que parcialmente, a responsabilidade solidária do fornecedor pelos atos dos seus prepostos ou representantes autônomos.

 

As Cláusulas Limitativas de Responsabilidade

As cláusulas limitativas de responsabilidade fixam antecipadamente o montante da indenização a ser paga em caso de condenação judicial. A diferença que as separa das cláusulas que excluem por inteiro o dever de indenizar reside no fato de que as primeiras não eliminam o ressarcimento do dano, apenas dimensionam o seu quantum, ao passo que as segundas suprimem qualquer reparação.

Assim definida, a cláusula limitativa de responsabilidade parece confundir-se com a cláusula penal. Ela, contudo, não revela caráter de pena. Aguiar Dias salienta que "a cláusula penal é, regra geral, invocada pelo credor, enquanto a cláusula limitativa é invocada pelo devedor, isto é, cada uma delas é invocada pela parte em benefício da qual, pelo menos teoricamente, foi estipulada. Deve observar-se, porém, que a vantagem do devedor ou do credor visada na estipulação é um dos motivos determinantes e, muitas vezes, preponderantes, da aceitação da cláusula, porque, em última análise, em qualquer caso, sempre se identifica a função de corretivo privado ao regime comum das perdas e danos".

É indiscutível o risco que a cláusula limitativa de responsabilidade representa para os interesses do credor. Não raro, a reparação pretendida não corresponde à dimensão do dano efetivamente ocorrido. Ela surgiria, assim, nas palavras de Aguiar Dias, como verdadeiro simulacro das perdas e danos[3]. Antevendo os perigos que ocasiona, Savatier, a seu tempo, lembrava que quando a cláusula é voluntariamente calculada em soma inferior ao dano eventual, dissimula a fraude e deve ser declarada nula[4]. Atento a tais riscos o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu o princípio da indenização integral vedando, em princípio e salvo previsão expressa, a cláusula limitativa de responsabilidade.

É preciso advertir, porém, que se por um lado o Código recusa validade às estipulações que afrontam o princípio da reparação integral, não se deve esquecer, por outro, que não foram indiscriminadamente condenadas todas as cláusulas de limitação da responsabilidade do fornecedor. O critério para a aferição da sua abusividade repousa no desequilíbrio que ela é suscetível de acarretar.

Referido desequilíbrio consiste na estruturação da relação jurídica de consumo, de tal sorte que o consumidor sofra uma desvantagem exagerada, traduzida na desproporção entre direitos e obrigações. Para constatar a presença de uma situação de desequilíbrio o intérprete terá que verificar, segundo uma lógica de fins, o conteúdo da relação de consumo. Só então estará em condições de se manifestar acerca da abusividade da cláusula em questão. É o que sucede, por exemplo, com a cláusula que altera o nexo de causalidade entre o dano com o ressarcimento que dele deriva. A redução do prazo para o exercício dos direitos, contrária à prevista em lei, apesar de não ser propriamente limitadora da responsabilidade, encerra nítida desvantagem para o consumidor, o que motiva a sua nulidade.

 

O Contrato de Transporte Perante o Código de Defesa do Consumidor

Os transportes em geral e o transporte aéreo em particular constituem campo privilegiado de incidência das cláusulas limitativas de responsabilidade. Mesmo antes de entrar em vigência o Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência sistematicamente combatia a inclusão das cláusulas de não indenizar nos contratos de transporte, como atesta a Súmula 481 do Supremo Tribunal Federal. Idêntico rigor não se registrava em relação às cláusulas limitativas de responsabilidade, salvo se a importância fixada a título de ressarcimento fosse tão insignificante que o efeito produzido equivalesse ao da cláusula de não indenizar.

O Código de Defesa do Consumidor tornou muito mais severa a repressão imposta às cláusulas limitativas de responsabilidade ao instituir o princípio da plena reparação dos danos sofridos pelo lesado. Parece fora de dúvida que o contrato de transporte, seja de pessoa ou de coisa, sempre que perfaça as características da relação jurídica de consumo se encontra sob o império do Código de Defesa do Consumidor.

A empresa transportadora enquadra-se na definição de fornecedor do art. 3º, bem como o serviço por ela prestado via de regra se ajusta à noção de serviço constante do §2º. É claro que o transporte gratuito, por não ser atividade remunerada fornecida no mercado de consumo (art. 3º, §2º) não é regido pelo Código de Defesa do Consumidor, sendo antes disciplinado pelo direito comum.

São nulas nos contratos de transporte de carga as cláusulas limitativas de responsabilidade do transportador referentes à perda ou avaria da coisa transportada. O mesmo raciocínio aplica-se ao transporte de pessoas em que certa cláusula estabeleça a quantia a ser paga desde que sobrevenha o dano.

 

A Disciplina do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de Varsóvia sobre a Responsabilidade do Transportador Aéreo

Problema especialmente importante diz respeito à admissibilidade das cláusulas limitativas de responsabilidade nos contratos de transporte aéreo nacional e internacional. A questão ganha particular relevo devido aos limites fixados para a reparação dos danos instituídos pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei 7.565, de 19.12.1986, e pela Convenção de Varsóvia, introduzida no direito brasileiro pelo Decreto 20.704, de 24.11.1931, posteriormente modificada pelo protocolo de Haia, o qual foi recebido, em nosso país, pelo Decreto 56.663 de 15.06.1065.

O Código Brasileiro de Aeronáutica, no Titulo VIII, contemplou diversas hipóteses de limitação de responsabilidade por dano aos passageiros e tripulantes (art. 257), à bagagem (art. 260), à carga (art. 262) e aos terceiros na superfície (art. 269). Os limites de indenização, previstos neste Capítulo, não se aplicam se for provado que o dano resultou de dolo ou culpa grave do transportador ou dos seus prepostos.

No caso de transporte aéreo internacional dispõe a Convenção de Varsóvia que o transportador responde pelo dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, sempre que o acidente haja ocorrido a bordo da aeronave ou no curso de quaisquer operações de embarque ou desembarque (art. 17). O transportador não será responsável se provar que tomou, e tomaram seus prepostos, as medidas necessárias para que não se produzisse o dano ou que não lhes foi possível tomá-las (art. 20).

Se o transportador provar que o dano foi causado por culpa da pessoa lesada ou que esta para ele contribuiu, poderá o tribunal, de conformidade com as disposições de sua lei nacional, excluir ou atenuar a responsabilidade do transportador (art. 21).

No transporte de passageiros, limita-se a responsabilidade do transportador à importância de 120.000 "francos poincaré" (art. 22). O Protocolo de Haia elevou esse percentual para 250,000 "francos poincaré". O "franco poincaré", a que faz referência o art. 22, não tem cotação oficial, não se confundindo por isso com a moeda francesa ou com qualquer outra do mesmo nome. Cada "franco poincaré" contém 0,05895 de ouro fino, o que em dólares norte-americanos equivaleria a 0,08 por franco.

A Convenção fulminou de nulidade toda cláusula tendente a exonerar o transportador de sua responsabilidade ao estabelecer limite inferior ao que foi por ela fixado (art. 23). O transportador que agir com dolo ou culpa grave não se beneficiará dos limites que a Convenção indica para o ressarcimento dos danos (art. 25).

A Convenção de Varsóvia criou a presunção de culpa do transportador em relação aos acidentes ocorridos a bordo da aeronave ou em operações de embarque e desembarque. Para se eximir da responsabilidade, o transportador deve provar que foram tomadas as medidas necessárias para evitar o dano ou que tenha sido impossível tomá-las.

A existência de um teto para a reparação dos danos, realizada pelo art. 22, teve como causa a percepção, dominante nos anos vinte, de que as Cias. aéreas, cujo desenvolvimento era ainda incipiente, não deveriam estar expostas aos rigores do direito comum. A insegurança do tráfego aéreo naquele período, origem de muitos acidentes, recomendava a adoção de regime jurídico especial para o transporte aéreo com a finalidade de estimular o aperfeiçoamento do setor. Afinal, a condenação ao pagamento de expressivos montantes de indenização a que estavam sujeitas as Cias. aéreas ameaçava comprometer a sua consolidação, desaconselhando novos investimentos.

Após reiterados protestos em face dos percentuais acordados internacionalmente, os EUA decidiram denunciar a Convenção de Varsóvia. O Protocolo de Montréal, de 14.05.1966, elevou para 75.000 dólares o teto da indenização em caso de acidente aéreo. Os novos índices só se aplicam quando o vôo se tenha iniciado, faça escala ou se destine aos EUA.

 

A Nulidade das Cláusulas de Limitação de Responsabilidade nos Contratos de Transporte Aéreo Nacional e Internacional

A limitação da responsabilidade promovida pelo Código Brasileiro de Aeronáutica e pela Convenção de Varsóvia colide com o princípio da reparação efetiva consagrado pelo Código de Defesa do Consumidor. Como resolver o conflito de leis que agora parece anunciar-se?

Os defensores da limitação da responsabilidade, baseada no Código Brasileiro de Aeronáutica, sustentam dois argumentos principais:

1- na qualidade de lei geral das relações de consumo, o Código de Defesa do Consumidor não teria o condão de revogar o Código Brasileiro de Aeronáutica, lei especial sobre a matéria, salvo se o legislador revelar a intenção de que tal venha a acontecer;

2- os tratados internacionais de que o Brasil seja parte prevalecem sobre a legislação interna, revogando os dispositivos com ele incompatíveis[5].

Como será a seguir demonstrado, tais argumentos não resistem à análise mais aprofundada.

Em primeiro lugar porque as normas do Código Brasileiro de Aeronáutica que limitam a responsabilidade do transportador aéreo ferem o princípio constitucional da proteção ao consumidor previsto no art. 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição Federal. Enquanto o art. 5º, XXXII, determina que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor, o art. 170, V, insere a defesa do consumidor entre os princípios da ordem econômica.

Convém ressaltar, de início, que os princípios constitucionais têm tanto uma função positiva quanto negativa[6]. A função negativa se manifesta na proibição de emanar normas ou de praticar atos que o contrariem. Constituem restrição imposta à ação do Estado cuja liberdade, nesse particular, se encontra rigorosamente circunscrita. Qualquer atitude que na prática importe em negar validade ao princípio caracteriza violação da Constituição.

A função positiva reside na aptidão que possuem para informar materialmente os atos dos poderes públicos. Requer a adoção dos meios necessários para concretizá-lo.

O princípio constitucional da proteção ao consumidor impede por parte do Estado e dos sujeitos jurídicos privados a execução de atos que não garantam os interesses dos consumidores. Logo, a legislação infraconstitucional deve guardar plena harmonia com o princípio da defesa do consumidor. Quando isso não acontecer, a norma inferior é inconstitucional, circunstância que a torna insuscetível de aplicação ao caso concreto.

O princípio constitucional da defesa do consumidor apresenta, ainda, uma função positiva consistente na necessidade de o poder público, valendo-se dos meios de que dispõe, buscar a sua realização.

Em consonância com o disposto no art. 5º XXXII, 170, V, e dando cumprimento ao art. 248 das Disposições Transitórias, foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor, destinado a conferir proteção especial aos consumidores. Inspirado no princípio da vulnerabilidade do consumidor, o legislador brasileiro procurou, mediante lei própria, regular as relações de consumo afastando, deliberadamente, as normas que porventura se mostrem incompatíveis.

O Código Brasileiro de Aeronáutica, ao menos no tocante à imposição de teto para indenização por danos, viola o princípio constitucional da defesa do consumidor. Nesse sentido, as normas do CBA relativas ao limite de indenização nas relações de consumo foram revogadas pela atual Constituição.

A superioridade das normas constitucionais impõe-se em relação às demais normas que integram o ordenamento jurídico. Admitir que o princípio da defesa do consumidor não tem força vinculante significaria negar validade à própria Constituição. Com isso cai por terra a afirmação de que haveria um suposto conflito entre o Código de Defesa do Consumidor, lei geral, e o Código Brasileiro de Aeronáutica, lei especial, solucionando-se tal colidência normativa pela predominância da lei especial.

Importa salientar, todavia, que ainda que se cogite na existência de conflito de normas, o critério da especialidade, normalmente utilizado para resolver a antinomia em questão, cede ante a clara intenção do legislador em sentido contrário[7]. Na hipótese, com a edição do Código de Defesa do Consumidor, o objetivo visado foi submeter as relações de consumo à disciplina por ele instituída, excluindo a aplicabilidade das normas que não atendam, de maneira ampla, os interesses dos consumidores.

É evidente o prejuízo que advém aos consumidores quando previamente se estabelece um teto para a reparação dos danos. Por esse motivo, o art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor consagrou o princípio da reparação efetiva, único capaz de tutelar adequadamente as expectativas de todos os lesados.

É lícito concluir, portanto, que os limites indenizatórios constantes do Código Brasileiro de Aeronáutica não se aplicam às relações jurídicas de consumo. A regra, nesse caso, é a reparação integral dos prejuízos sofridos pelo consumidor.

Os danos pessoais e os danos à bagagem , sem restrição, encontram-se inteiramente cobertos, sendo abusiva a cláusula contratual que vise a limitar a responsabilidade do transportador aéreo. Vale acrescentar, ainda, que os terceiros que estejam na superfície e tenham sido lesados em virtude da ocorrência do acidente aéreo poderão recorrer ao Código de Defesa do Consumidor para obter ampla reparação dos danos. O art. 17 estabelece que "Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento." As vítimas do acidente são, assim, consumidores por equiparação, merecendo por isso o tratamento que o Código dispensa a todos os consumidores. Não se aplica, na hipótese, o limite do art. 269 ao terceiro que, na superfície, tenha sido atingido pela queda de alguma aeronave, cabendo-lhe, nos termos do art. 17, pleitear a plena reparação de todos os danos patrimoniais e morais.

O Código de Defesa do Consumidor aplica-se, igualmente, ao transporte aéreo internacional. O argumento de que os tratados e convenções internacionais ratificados pelo Brasil prevalecem sobre a legislação interna não tem sido acolhido pela mais alta corte do país. No RE 80004 (RTJ 83-809-848) o Supremo Tribunal Federal considerou que os tratados e convenções internacionais recebidos pelo ordenamento jurídico brasileiro não gozam de supremacia sobre a legislação interna, o que, na prática, possibilita o seu afastamento pela legislação ordinária superveniente e com eles incompatível.

Semelhante entendimento acentua a ausência de hierarquia entre os compromissos internacionais de que o Brasil seja parte e que tenham regularmente ingressado no ordenamento jurídico pátrio com a legislação interna superveniente. Consequência natural será, pois, que a norma posterior, desde que incompatível com certa disposição convencional, sobre ela tenha primazia, não sendo admissível, na opinião do Supremo Tribunal Federal, sustentar a superioridade do tratado.

Sob este ângulo, é incontestável a incompatibilidade entre alguns dispositivos da Convenção de Varsóvia com o Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo o caso fortuito e a força maior são excludentes da responsabilidade do transportador aéreo, conforme o regime criado pela Convenção de Varsóvia. O Código de Defesa do Consumidor, no entanto, não os previu como excludentes da responsabilidade do fornecedor.

Deve-se registrar, ademais, a incompatibilidade entre o limite de responsabilidade do art. 22 da Convenção de Varsóvia com o princípio da prevenção e reparação dos danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos do art. 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor.

A conclusão a ser extraída não deixa margem a qualquer dúvida. Verificada a incompatibilidade, preponderará o Código de Defesa do Consumidor, afastando-se a aplicação da Convenção de Varsóvia.

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NOTAS

[1] Geneviève Viney, Traité de Droit Civil - Les Obligations - La Resonsabilité: Effets, sous la direction de Jacques Ghestin, volume V, Librairie Générale de droit et de Jurisprudence, Paris, 1988, p. 248 e ss.

V. José de Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, Forense, 10ª edição - 3ª tiragem, Volume II, Rio de Janeiro, 1977, p. 671 e ss.

V. Silvio Rodrigues, Direito Civil, Edição Saraiva, Volume IV, 4ª edição, São Paulo, 1979, p. 185 e ss.

[2] Rubéns S. Stiglitz e Gabriel A. Stiglitz, Contratos por Adhesión, Cláusulas Abusivas y Protección Al Consumidor, Ediciones Depalma, Buenos Aires, 1985, pp. 114, 115.

[3] José de Aguiar Dias, Cláusula de não-indenizar, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 128.

[4] René Savatier - Traité de la Responsabilité Civile en droit français, Paris, 1939, p. 255.

[5] Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge, "A Responsabilidade Civil do Código de Proteção e Defesa do Consumidor e o Transporte Aéreo", in Revista de Direito do Consumidor 19, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, julho/setembro - 1996, p. 126 e ss.

V. Luis Camargo Pinto de Carvalho, "O Código do Consumidor e o Direito Aeronáutico", in RT 673, p. 47 e ss.

V. Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 124 e ss.

[6] José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, 1983, p. 200 e ss.

[7] Eduardo Arruda Alvim e Flávio Cheim Jorge, op. cit., p. 131.

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*PROF. ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR

Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, "expert in Consumer Law" pela Universidade Católica de Louvain-la-Neuve, Bélgica, co-autor dos Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, Saraiva, 1991 e autor do livro "A Proteção do Consumidor no Contrato de Compra e Venda", Editora Revista dos Tribunais, 1993.

 

Retirado de: http://cartamaior.uol.com.br/cartamaior.asp?coluna=doutrina