A INVALIDADE DAS CLÁUSULAS LIMITATIVAS DE RESPONSABILIDADE
NOS CONTRATOS DE TRANSPORTE AÉREO
Prof. Alberto do Amaral Júnior*
O Conteúdo das
Cláusulas de Não Indenizar
As
cláusulas de não indenizar são instituídas com a finalidade de permitir que uma
das partes do contrato se subtraia das conseqüências patrimoniais que adviriam
em virtude de um fato de responsabilidade a ela atribuível. Trata-se de
declaração de vontade expressa para modificar os efeitos legais que se
produziriam na ausência dessa estipulação.
Em
situação normal caberia ao agente causador do dano o dever de reparar os
prejuízos ocasionados a terceiros. Por seu intermédio, no entanto, é estipulada
antes mesmo da ocorrência do delito, a total ou parcial supressão do dever de
reparar imposto pela norma legal.
Costumam
ser elaboradas quando da conclusão do contrato, mas pode suceder que surjam em
momento posterior ao nascimento da relação contratual, o que não altera o fim
que orientou a sua instituição. Compreendem tanto as cláusulas que excluem ou
exoneram de forma total o dever de reparar quanto as que limitam parcialmente
esse dever. Em ambas as hipóteses, porém, o propósito é o mesmo: anular,
modificar ou restringir as consequências normais de um fato de responsabilidade
do beneficiário da estipulação.
Ao
lado das cláusulas que excluem por completo o dever de reparar, encontram-se as
que limitam esse dever fixando determinado patamar indenizatório, acima do qual
é suprimida qualquer reparação complementar. Tudo que ultrapassar o teto
convencional previsto não poderá ser pleiteado pelo devedor. O
preestabelecimento dos danos por meio das cláusulas limitativas de
responsabilidade viola o princípio da reparação integral, pois impede que sejam
ressarcidos todos os prejuízos sofridos pela vítima.
Diversas
das cláusulas de não indenizar são as disposições que afastam ou reduzem as
obrigações de um dos contratantes, como, por exemplo, as que ampliam as causas
de exoneração da responsabilidade. São dessa natureza também as cláusulas que
abreviam o prazo normal para o exercício da ação de responsabilidade ou de
garantia ou que criem obstáculos ao seu exercício.
Apesar
da diferença dogmática que as separa, as cláusulas de não indenizar e as
cláusulas que afastam ou reduzem as obrigações de um dos contratantes atingem o
mesmo resultado, qual seja a paralisia do direito a indenização[1].
As
cláusulas que afastam o dever de indenizar não se confundem com o seguro.
Stiglitz, com a argúcia peculiar, assinala que as primeiras se destinam a
eliminar por inteiro a obrigação de reparar e, conseqüentemente, o direito do
lesado de exigir o ressarcimento. O seguro, por seu turno, tem por objeto
reforçar a proteção contratual do credor e manter indene o patrimônio do
devedor[2]. Enquanto as
cláusulas de não indenizar liberam ou atenuam a obrigação do devedor, o seguro
de responsabilidade civil mantém inalterável a responsabilidade, permanecendo
intacto o dever de reparar do obrigado.
Se
é verdade que as cláusulas que excluem o dever de indenizar aparecem nos
contratos em geral, nos contratos por adesão ganham elas relevo particular.
Exprimem nesses contratos a posição de supremacia de uma das partes. O objetivo
visado é conferir legitimidade jurídica ao poder de que dispõe o predisponente.
Não
há dúvida de que as cláusulas de não indenização trazem prejuízos aos
consumidores. Quando não provocam a completa imunidade do fornecedor, impõem
drástica limitação do dever de indenizar ou a transferência desse dever a
terceiros. Tais cláusulas privam a obrigação de qualquer sanção jurídica, fator
que a transforma em obrigação moral, destituída de garantia. Desaparece a
faculdade de o credor exigir que o devedor cumpra a obrigação. Atentam contra o
princípio da força obrigatória dos contratos porque não há risco a suportar
quando o fornecedor exclui a obrigação que sobreviria como resultado de um fato
a ele imputável.
As Cláusulas de Não Indenizar e o Direito Comum
Antes
mesmo de ser aprovado o Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência
mostrou-se contrária à inserção das cláusulas de não indenizar nos contratos de
transporte, o que deu origem à Súmula 481 do Supremo Tribunal Federal nos
seguintes termos: "Em contrato de transporte, é inoperante a cláusula de
não indenizar".
Com
fundamento no art. 1284 do C.C., a jurisprudência considera ineficaz a
declaração unilateral do hoteleiro afirmando que não se responsabiliza pelo
furto das bagagens de qualquer viajante em seu hotel. Analogamente, a
jurisprudência reconhece que a cláusula de não indenizar não exime o dolo do
estipulante, o mesmo ocorrendo em relação à culpa grave.
No
âmbito do direito comum, a doutrina sustenta que a cláusula de não indenizar
somente se aperfeiçoará se contar com o consentimento das partes, devendo ainda
corresponder a uma vantagem paralela a ser obtida pelo outro contratante. O
exemplo normalmente lembrado é o do transporte, em que a cláusula de não indenização
somente teria eficácia se se correspondesse a uma redução da tarifa em favor de
quem despachou a mercadoria.
Por
último, os autores salientam que a exclusão contratual do dever de indenizar
não pode ferir a ordem pública. As manifestações da autonomia privada deverão
circunscrever-se aos limites estabelecidos pelas normas de ordem pública, sob
pena de não produzirem qualquer efeito jurídico. Logo, a cláusula que
impossibilita a reparação dos danos é inválida sempre que colidir com as
imposições da ordem pública, não vinculando os seus destinatários.
As Cláusulas de Não Indenizar no Código de Defesa do Consumidor
O
art. 51, Inciso I do Código de Defesa do Consumidor estabelece a nulidade das
cláusulas que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade por vícios
de qualquer natureza dos produtos ou serviços, ou que impliquem a renúncia ou a
disposição de direitos. Semelhante dispositivo precisa ser analisado juntamente
com o art. 25, que se encontra redigido nos seguintes termos:
"art.
25 - É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere
ou atenue a obrigação de indenizar nesta e nas seções anteriores".
A
proibição legal pretendeu rejeitar a inclusão de cláusulas de não indenizar nos
contratos para o consumo. Deve-se distinguir a estipulação das cláusulas que
impossibilitem das que exonerem e atenuem a responsabilidade do fornecedor. No
primeiro caso, estão as cláusulas que impossibilitam física e juridicamente a
responsabilidade do fornecedor pelos produtos e serviços. Já no segundo
acham-se as cláusulas que excluam ou apenas limitem a responsabilidade do
fornecedor.
Ao
vedar as cláusulas de não indenizar, o art. 25 alude, respectivamente, à Seção
I, relativa à proteção e segurança dos consumidores, à Seção II, que diz
respeito à responsabilidade pelo fato do produto e do serviço e à Seção III
sobre a responsabilidade pelo vício do produto e do serviço.
A
Seção I consagra a obrigação do fornecedor de informar os consumidores acerca
dos produtos e serviços colocados no mercado, especialmente em relação ao
perigo e nocividade que venham a apresentar. A violação da obrigação de
informar, bem como a colocação no mercado de produto ou serviço com alto grau
de periculosidade à saúde e segurança dos consumidores (art. 10), acarretará a
responsabilidade do fornecedor, a qual não poderá ser afastada por meio de
estipulação contratual. Assim, de nenhum modo o fornecedor poderá eliminar o
dever legal de indenizar surgido em razão do descumprimento das prescrições
constantes da Seção I do Código de Defesa do Consumidor.
Ao
cuidar da noção de defeito na Seção II, que trata da responsabilidade pelo fato
do produto, o Código visou, fundamentalmente, à tutela da integridade
físico-psíquica dos consumidores. Já os vícios de qualidade e quantidade,
regulados na Seção III, têm como objetivo proteger a esfera econômica do
consumidor. Enquanto as normas pertinentes à responsabilidade pelos defeitos
dos produtos e serviços se aplicam à reparação dos danos, a responsabilidade
pelos vícios refere-se aos prejuízos verificados no produto ou serviço. Se
determinado pesticida se revelar ineficaz, o fornecedor será responsável pelo
fato de o produto apresentar vício de qualidade por inadequação. Contudo, se a
utilização do pesticida provocar a destruição da colheita que deveria proteger,
o fornecedor será responsável pela existência de defeito do produto, nos termos
da Seção II do Código de Defesa do Consumidor.
Se
na hipótese da ocorrência de defeito os danos a certos bens pertencentes à
esfera patrimonial do consumidor são indenizáveis, desde que relacionados à sua
incolumidade físico-psíquica, no caso dos vícios de qualidade e quantidade os
danos são de natureza puramente econômica, devendo-se, por isso, aplicar os
arts. 18 a 25 do Código de Defesa do Consumidor.
Cabe
acrescentar ainda que a responsabilidade prevista na Seção II do Código de
Defesa do Consumidor enseja o ressarcimento das perdas e danos, enquanto a
responsabilidade por vícios oferece ao consumidor outras possibilidades além da
mera indenização por perdas e danos, para a satisfação do seu interesse.
Pode
o fornecedor livrar-se contratualmente da responsabilidade por defeito e vício
dos produtos e serviços que a lei lhe impõe? A resposta é, como não poderia
deixar de ser, evidentemente negativa.
A
previsão do art. 25 a este respeito não suscita qualquer dúvida. De forma
análoga ao que ocorre em relação à Seção I, é terminantemente vedada a
exoneração total ou parcial da responsabilidade nessa matéria. Como se não
bastasse, as normas do Código de Defesa do Consumidor têm caráter de ordem
pública, não podendo ser modificadas por convenção entre as partes.
Na
venda de veículos, é particularmente freqüente a inserção nos contratos de
cláusulas que derroguem as garantias legais subtraindo a responsabilidade do
fornecedor por danos provocados pelos defeitos e vícios dos veículos vendidos.
Cláusulas desse tipo são agora nulas perante o Código de Defesa do Consumidor.
O
art. 17 do Código de Defesa do Consumidor prevê que para os efeitos da Seção II
referente à responsabilidade pelo fato do produto ou do serviço se equiparam
aos consumidores todas as vítimas do evento. Por esse motivo, são nulas de
pleno direito as cláusulas que afastarem a responsabilidade do fornecedor
perante as vítimas dos acidentes do consumo que, não obstante não sejam
consumidores em sentido estrito, são a ele equiparáveis.
O
art. 34 do Código de Defesa do Consumidor determina que o fornecedor do produto
ou serviço é solidariamente responsável pelos atos de seus prepostos ou
representantes autônomos. Nesse caso, é proibida a cláusula que exclua, ainda
que parcialmente, a responsabilidade solidária do fornecedor pelos atos dos
seus prepostos ou representantes autônomos.
As Cláusulas Limitativas de Responsabilidade
As
cláusulas limitativas de responsabilidade fixam antecipadamente o montante da
indenização a ser paga em caso de condenação judicial. A diferença que as
separa das cláusulas que excluem por inteiro o dever de indenizar reside no
fato de que as primeiras não eliminam o ressarcimento do dano, apenas
dimensionam o seu quantum, ao passo que as segundas suprimem qualquer
reparação.
Assim
definida, a cláusula limitativa de responsabilidade parece confundir-se com a
cláusula penal. Ela, contudo, não revela caráter de pena. Aguiar Dias salienta
que "a cláusula penal é, regra geral, invocada pelo credor, enquanto a
cláusula limitativa é invocada pelo devedor, isto é, cada uma delas é invocada
pela parte em benefício da qual, pelo menos teoricamente, foi estipulada. Deve
observar-se, porém, que a vantagem do devedor ou do credor visada na
estipulação é um dos motivos determinantes e, muitas vezes, preponderantes, da
aceitação da cláusula, porque, em última análise, em qualquer caso, sempre se
identifica a função de corretivo privado ao regime comum das perdas e
danos".
É
indiscutível o risco que a cláusula limitativa de responsabilidade representa
para os interesses do credor. Não raro, a reparação pretendida não corresponde
à dimensão do dano efetivamente ocorrido. Ela surgiria, assim, nas palavras de
Aguiar Dias, como verdadeiro simulacro das perdas e danos[3]. Antevendo os perigos
que ocasiona, Savatier, a seu tempo, lembrava que quando a cláusula é
voluntariamente calculada em soma inferior ao dano eventual, dissimula a fraude
e deve ser declarada nula[4].
Atento a tais riscos o Código de Defesa do Consumidor estabeleceu o princípio
da indenização integral vedando, em princípio e salvo previsão expressa, a
cláusula limitativa de responsabilidade.
É
preciso advertir, porém, que se por um lado o Código recusa validade às
estipulações que afrontam o princípio da reparação integral, não se deve
esquecer, por outro, que não foram indiscriminadamente condenadas todas as
cláusulas de limitação da responsabilidade do fornecedor. O critério para a
aferição da sua abusividade repousa no desequilíbrio que ela é suscetível de
acarretar.
Referido
desequilíbrio consiste na estruturação da relação jurídica de consumo, de tal
sorte que o consumidor sofra uma desvantagem exagerada, traduzida na
desproporção entre direitos e obrigações. Para constatar a presença de uma
situação de desequilíbrio o intérprete terá que verificar, segundo uma lógica
de fins, o conteúdo da relação de consumo. Só então estará em condições de se
manifestar acerca da abusividade da cláusula em questão. É o que sucede, por
exemplo, com a cláusula que altera o nexo de causalidade entre o dano com o ressarcimento
que dele deriva. A redução do prazo para o exercício dos direitos, contrária à
prevista em lei, apesar de não ser propriamente limitadora da responsabilidade,
encerra nítida desvantagem para o consumidor, o que motiva a sua nulidade.
O Contrato de Transporte Perante o Código de Defesa do Consumidor
Os
transportes em geral e o transporte aéreo em particular constituem campo
privilegiado de incidência das cláusulas limitativas de responsabilidade. Mesmo
antes de entrar em vigência o Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência
sistematicamente combatia a inclusão das cláusulas de não indenizar nos
contratos de transporte, como atesta a Súmula 481 do Supremo Tribunal Federal.
Idêntico rigor não se registrava em relação às cláusulas limitativas de
responsabilidade, salvo se a importância fixada a título de ressarcimento fosse
tão insignificante que o efeito produzido equivalesse ao da cláusula de não
indenizar.
O
Código de Defesa do Consumidor tornou muito mais severa a repressão imposta às
cláusulas limitativas de responsabilidade ao instituir o princípio da plena
reparação dos danos sofridos pelo lesado. Parece fora de dúvida que o contrato
de transporte, seja de pessoa ou de coisa, sempre que perfaça as
características da relação jurídica de consumo se encontra sob o império do
Código de Defesa do Consumidor.
A
empresa transportadora enquadra-se na definição de fornecedor do art. 3º, bem
como o serviço por ela prestado via de regra se ajusta à noção de serviço
constante do §2º. É claro que o transporte gratuito, por não ser atividade
remunerada fornecida no mercado de consumo (art. 3º, §2º) não é regido pelo
Código de Defesa do Consumidor, sendo antes disciplinado pelo direito comum.
São
nulas nos contratos de transporte de carga as cláusulas limitativas de
responsabilidade do transportador referentes à perda ou avaria da coisa
transportada. O mesmo raciocínio aplica-se ao transporte de pessoas em que
certa cláusula estabeleça a quantia a ser paga desde que sobrevenha o dano.
A Disciplina do Código Brasileiro de Aeronáutica e da Convenção de
Varsóvia sobre a Responsabilidade do Transportador Aéreo
Problema
especialmente importante diz respeito à admissibilidade das cláusulas
limitativas de responsabilidade nos contratos de transporte aéreo nacional e
internacional. A questão ganha particular relevo devido aos limites fixados
para a reparação dos danos instituídos pelo Código Brasileiro de Aeronáutica,
Lei 7.565, de 19.12.1986, e pela Convenção de Varsóvia, introduzida no direito
brasileiro pelo Decreto 20.704, de 24.11.1931, posteriormente modificada pelo
protocolo de Haia, o qual foi recebido, em nosso país, pelo Decreto 56.663 de
15.06.1065.
O
Código Brasileiro de Aeronáutica, no Titulo VIII, contemplou diversas hipóteses
de limitação de responsabilidade por dano aos passageiros e tripulantes (art.
257), à bagagem (art. 260), à carga (art. 262) e aos terceiros na superfície
(art. 269). Os limites de indenização, previstos neste Capítulo, não se aplicam
se for provado que o dano resultou de dolo ou culpa grave do transportador ou
dos seus prepostos.
No
caso de transporte aéreo internacional dispõe a Convenção de Varsóvia que o
transportador responde pelo dano ocasionado por morte, ferimento ou qualquer
outra lesão corpórea sofrida pelo viajante, sempre que o acidente haja ocorrido
a bordo da aeronave ou no curso de quaisquer operações de embarque ou
desembarque (art. 17). O transportador não será responsável se provar que
tomou, e tomaram seus prepostos, as medidas necessárias para que não se
produzisse o dano ou que não lhes foi possível tomá-las (art. 20).
Se
o transportador provar que o dano foi causado por culpa da pessoa lesada ou que
esta para ele contribuiu, poderá o tribunal, de conformidade com as disposições
de sua lei nacional, excluir ou atenuar a responsabilidade do transportador
(art. 21).
No
transporte de passageiros, limita-se a responsabilidade do transportador à
importância de 120.000 "francos poincaré" (art. 22). O Protocolo de
Haia elevou esse percentual para 250,000 "francos poincaré". O
"franco poincaré", a que faz referência o art. 22, não tem cotação
oficial, não se confundindo por isso com a moeda francesa ou com qualquer outra
do mesmo nome. Cada "franco poincaré" contém 0,05895 de ouro fino, o
que em dólares norte-americanos equivaleria a 0,08 por franco.
A
Convenção fulminou de nulidade toda cláusula tendente a exonerar o
transportador de sua responsabilidade ao estabelecer limite inferior ao que foi
por ela fixado (art. 23). O transportador que agir com dolo ou culpa grave não
se beneficiará dos limites que a Convenção indica para o ressarcimento dos
danos (art. 25).
A
Convenção de Varsóvia criou a presunção de culpa do transportador em relação
aos acidentes ocorridos a bordo da aeronave ou em operações de embarque e
desembarque. Para se eximir da responsabilidade, o transportador deve provar
que foram tomadas as medidas necessárias para evitar o dano ou que tenha sido
impossível tomá-las.
A
existência de um teto para a reparação dos danos, realizada pelo art. 22, teve
como causa a percepção, dominante nos anos vinte, de que as Cias. aéreas, cujo
desenvolvimento era ainda incipiente, não deveriam estar expostas aos rigores
do direito comum. A insegurança do tráfego aéreo naquele período, origem de
muitos acidentes, recomendava a adoção de regime jurídico especial para o
transporte aéreo com a finalidade de estimular o aperfeiçoamento do setor.
Afinal, a condenação ao pagamento de expressivos montantes de indenização a que
estavam sujeitas as Cias. aéreas ameaçava comprometer a sua consolidação,
desaconselhando novos investimentos.
Após
reiterados protestos em face dos percentuais acordados internacionalmente, os
EUA decidiram denunciar a Convenção de Varsóvia. O Protocolo de Montréal, de
14.05.1966, elevou para 75.000 dólares o teto da indenização em caso de
acidente aéreo. Os novos índices só se aplicam quando o vôo se tenha iniciado,
faça escala ou se destine aos EUA.
A Nulidade das Cláusulas de Limitação de Responsabilidade nos
Contratos de Transporte Aéreo Nacional e Internacional
A
limitação da responsabilidade promovida pelo Código Brasileiro de Aeronáutica e
pela Convenção de Varsóvia colide com o princípio da reparação efetiva
consagrado pelo Código de Defesa do Consumidor. Como resolver o conflito de leis
que agora parece anunciar-se?
Os
defensores da limitação da responsabilidade, baseada no Código Brasileiro de
Aeronáutica, sustentam dois argumentos principais:
1-
na qualidade de lei geral das relações de consumo, o Código de Defesa do
Consumidor não teria o condão de revogar o Código Brasileiro de Aeronáutica,
lei especial sobre a matéria, salvo se o legislador revelar a intenção de que
tal venha a acontecer;
2-
os tratados internacionais de que o Brasil seja parte prevalecem sobre a
legislação interna, revogando os dispositivos com ele incompatíveis[5].
Como
será a seguir demonstrado, tais argumentos não resistem à análise mais
aprofundada.
Em
primeiro lugar porque as normas do Código Brasileiro de Aeronáutica que limitam
a responsabilidade do transportador aéreo ferem o princípio constitucional da
proteção ao consumidor previsto no art. 5º, XXXII, e 170, V, da Constituição
Federal. Enquanto o art. 5º, XXXII, determina que o Estado promoverá, na forma
da lei, a defesa do consumidor, o art. 170, V, insere a defesa do consumidor
entre os princípios da ordem econômica.
Convém
ressaltar, de início, que os princípios constitucionais têm tanto uma função
positiva quanto negativa[6].
A função negativa se manifesta na proibição de emanar normas ou de praticar
atos que o contrariem. Constituem restrição imposta à ação do Estado cuja
liberdade, nesse particular, se encontra rigorosamente circunscrita. Qualquer
atitude que na prática importe em negar validade ao princípio caracteriza
violação da Constituição.
A
função positiva reside na aptidão que possuem para informar materialmente os
atos dos poderes públicos. Requer a adoção dos meios necessários para
concretizá-lo.
O
princípio constitucional da proteção ao consumidor impede por parte do Estado e
dos sujeitos jurídicos privados a execução de atos que não garantam os
interesses dos consumidores. Logo, a legislação infraconstitucional deve guardar
plena harmonia com o princípio da defesa do consumidor. Quando isso não
acontecer, a norma inferior é inconstitucional, circunstância que a torna
insuscetível de aplicação ao caso concreto.
O
princípio constitucional da defesa do consumidor apresenta, ainda, uma função
positiva consistente na necessidade de o poder público, valendo-se dos meios de
que dispõe, buscar a sua realização.
Em
consonância com o disposto no art. 5º XXXII, 170, V, e dando cumprimento ao
art. 248 das Disposições Transitórias, foi promulgado o Código de Defesa do
Consumidor, destinado a conferir proteção especial aos consumidores. Inspirado
no princípio da vulnerabilidade do consumidor, o legislador brasileiro
procurou, mediante lei própria, regular as relações de consumo afastando,
deliberadamente, as normas que porventura se mostrem incompatíveis.
O
Código Brasileiro de Aeronáutica, ao menos no tocante à imposição de teto para
indenização por danos, viola o princípio constitucional da defesa do
consumidor. Nesse sentido, as normas do CBA relativas ao limite de indenização
nas relações de consumo foram revogadas pela atual Constituição.
A
superioridade das normas constitucionais impõe-se em relação às demais normas
que integram o ordenamento jurídico. Admitir que o princípio da defesa do
consumidor não tem força vinculante significaria negar validade à própria
Constituição. Com isso cai por terra a afirmação de que haveria um suposto
conflito entre o Código de Defesa do Consumidor, lei geral, e o Código
Brasileiro de Aeronáutica, lei especial, solucionando-se tal colidência
normativa pela predominância da lei especial.
Importa
salientar, todavia, que ainda que se cogite na existência de conflito de
normas, o critério da especialidade, normalmente utilizado para resolver a
antinomia em questão, cede ante a clara intenção do legislador em sentido
contrário[7]. Na
hipótese, com a edição do Código de Defesa do Consumidor, o objetivo visado foi
submeter as relações de consumo à disciplina por ele instituída, excluindo a
aplicabilidade das normas que não atendam, de maneira ampla, os interesses dos
consumidores.
É
evidente o prejuízo que advém aos consumidores quando previamente se estabelece
um teto para a reparação dos danos. Por esse motivo, o art. 6º, VI, do Código
de Defesa do Consumidor consagrou o princípio da reparação efetiva, único capaz
de tutelar adequadamente as expectativas de todos os lesados.
É
lícito concluir, portanto, que os limites indenizatórios constantes do Código
Brasileiro de Aeronáutica não se aplicam às relações jurídicas de consumo. A
regra, nesse caso, é a reparação integral dos prejuízos sofridos pelo
consumidor.
Os
danos pessoais e os danos à bagagem , sem restrição, encontram-se inteiramente
cobertos, sendo abusiva a cláusula contratual que vise a limitar a
responsabilidade do transportador aéreo. Vale acrescentar, ainda, que os
terceiros que estejam na superfície e tenham sido lesados em virtude da
ocorrência do acidente aéreo poderão recorrer ao Código de Defesa do Consumidor
para obter ampla reparação dos danos. O art. 17 estabelece que "Para os
efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do
evento." As vítimas do acidente são, assim, consumidores por equiparação,
merecendo por isso o tratamento que o Código dispensa a todos os consumidores.
Não se aplica, na hipótese, o limite do art. 269 ao terceiro que, na
superfície, tenha sido atingido pela queda de alguma aeronave, cabendo-lhe, nos
termos do art. 17, pleitear a plena reparação de todos os danos patrimoniais e
morais.
O
Código de Defesa do Consumidor aplica-se, igualmente, ao transporte aéreo
internacional. O argumento de que os tratados e convenções internacionais
ratificados pelo Brasil prevalecem sobre a legislação interna não tem sido
acolhido pela mais alta corte do país. No RE 80004 (RTJ 83-809-848) o Supremo
Tribunal Federal considerou que os tratados e convenções internacionais
recebidos pelo ordenamento jurídico brasileiro não gozam de supremacia sobre a
legislação interna, o que, na prática, possibilita o seu afastamento pela
legislação ordinária superveniente e com eles incompatível.
Semelhante
entendimento acentua a ausência de hierarquia entre os compromissos
internacionais de que o Brasil seja parte e que tenham regularmente ingressado
no ordenamento jurídico pátrio com a legislação interna superveniente.
Consequência natural será, pois, que a norma posterior, desde que incompatível
com certa disposição convencional, sobre ela tenha primazia, não sendo
admissível, na opinião do Supremo Tribunal Federal, sustentar a superioridade
do tratado.
Sob
este ângulo, é incontestável a incompatibilidade entre alguns dispositivos da
Convenção de Varsóvia com o Código de Defesa do Consumidor. Assim, por exemplo
o caso fortuito e a força maior são excludentes da responsabilidade do
transportador aéreo, conforme o regime criado pela Convenção de Varsóvia. O
Código de Defesa do Consumidor, no entanto, não os previu como excludentes da
responsabilidade do fornecedor.
Deve-se
registrar, ademais, a incompatibilidade entre o limite de responsabilidade do
art. 22 da Convenção de Varsóvia com o princípio da prevenção e reparação dos
danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos do art. 6º, VI,
do Código de Defesa do Consumidor.
A
conclusão a ser extraída não deixa margem a qualquer dúvida. Verificada a
incompatibilidade, preponderará o Código de Defesa do Consumidor, afastando-se
a aplicação da Convenção de Varsóvia.
____________________
NOTAS
[1] Geneviève Viney, Traité
de Droit Civil - Les Obligations - La Resonsabilité: Effets, sous la
direction de Jacques Ghestin, volume V, Librairie Générale de droit et de
Jurisprudence, Paris, 1988, p. 248 e ss.
V.
José de Aguiar Dias, Da Responsabilidade Civil, Forense, 10ª edição - 3ª
tiragem, Volume II, Rio de Janeiro, 1977, p. 671 e ss.
V.
Silvio Rodrigues, Direito Civil, Edição Saraiva, Volume IV, 4ª edição,
São Paulo, 1979, p. 185 e ss.
[2] Rubéns S. Stiglitz e Gabriel A. Stiglitz, Contratos por Adhesión,
Cláusulas Abusivas y Protección Al Consumidor, Ediciones Depalma, Buenos
Aires, 1985, pp. 114, 115.
[3] José de Aguiar Dias, Cláusula
de não-indenizar, Editora Forense, Rio de Janeiro, 1980, p. 128.
[4] René Savatier - Traité
de la Responsabilité Civile en droit français, Paris, 1939, p. 255.
[5] Eduardo Arruda Alvim e
Flávio Cheim Jorge, "A Responsabilidade Civil do Código de Proteção e
Defesa do Consumidor e o Transporte Aéreo", in Revista de Direito do
Consumidor 19, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, julho/setembro -
1996, p. 126 e ss.
V.
Luis Camargo Pinto de Carvalho, "O Código do Consumidor e o Direito
Aeronáutico", in RT 673, p. 47 e ss.
V.
Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de Defesa do Consumidor,
Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, p. 124 e ss.
[6] José Joaquim Gomes
Canotilho, Direito Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, 1983, p.
200 e ss.
[7] Eduardo Arruda Alvim e
Flávio Cheim Jorge, op. cit., p. 131.
____________________
*PROF. ALBERTO DO AMARAL JÚNIOR
Doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, "expert in Consumer Law" pela Universidade Católica de
Louvain-la-Neuve, Bélgica, co-autor dos Comentários ao Código de Proteção do
Consumidor, Saraiva, 1991 e autor do livro "A Proteção do Consumidor no
Contrato de Compra e Venda", Editora Revista dos Tribunais, 1993.
Retirado de: http://cartamaior.uol.com.br/cartamaior.asp?coluna=doutrina