A TEORIA DA EMPRESA NO NOVO CÓDIGO CIVIL E A INTERPRETAÇÃO DO ART. 966:
OS GRANDES ESCRITÓRIOS DE ADVOCACIA DEVERÃO TER REGISTRO NA JUNTA COMERCIAL?
Bruno Mattos e Silva.
Professor de Direito Comercial em Brasília
Ao positivar a teoria
da empresa, o novo Código Civil passa a regular as relações jurídicas
decorrentes de atividade econômica realizada entre pessoas de direito privado. Evidentemente,
várias leis específicas ainda permanecem em vigor, mas o cerne do direito civil
e comercial passa a ser o novo Código Civil.
O novo Código Civil, na Parte Especial, trata no Livro
II Do Direito de Empresa. Esse Livro II, por sua vez, está dividido em
quatro títulos: Título I - Do Empresário, Título II - Da Sociedade, Título
III - Do Estabelecimento, Título IV - Dos Institutos
Complementares.
A teoria empresa está em oposição à teoria dos atos de
comércio, que fora adotada pelo Código Comercial de 1850.
Em linhas muito gerais, de acordo com a teoria dos
atos de comércio, parte da atividade econômica era comercial, isto é tinha um
regime jurídico próprio, diferenciado do regime jurídico de uma outra parte da
atividade econômica, que se sujeitava ao direito civil. Isso significava dizer
que certos atos estavam sujeitos ao direito comercial e outros não. Os atos de
comércio eram os atos sujeitos ao direito comercial; os demais eram sujeitos ao
direito civil. Ou seja, atos com conteúdo econômico poderiam ser civis ou
comerciais. Na verdade a questão não era tão simples, pois a doutrina não
conseguia estabelecer exatamente um conceito científico do que seria o ato de
comércio, sendo mais fácil admitir que ato de comércio seria uma categoria
legislativa, ou seja, ato de comércio seria tudo que o legislador estabelece
que teria regime jurídico mercantil.
A teoria da empresa não divide os atos em civis ou
mercantis. Para a teoria da empresa, o que importa é o modo pelo qual a
atividade econômica é exercida. O objeto de estudo da teoria da empresa não é o
ato econômico em si, mas sim o modo como a atividade econômica é exercida, ou
seja, a empresa, com os sentidos que veremos adiante.
O art. 966 define o que seja empresário:
"Art. 966.
Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica
organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo
único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de
natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares
ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da
empresa".
Qual a diferença entre empresário e sociedades
empresárias?
Sociedade empresária é a sociedade que exerce
atividade econômica organizada. Ou, como diz o art. 982, é a que "tem por
objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (art.
967)".
Em oposição às sociedades empresárias, estão as
sociedades simples, que são as
sociedades que não exercem "profissionalmente atividade econômica
organizada" (art. 966).
O novo Código Civil não define o que seja
"atividade econômica organizada"
ou o que seja "empresa". Essas definições cabem à doutrina.
O que é empresa?
Já é célebre a definição de empresa dada por Asquini, para quem ela compreende quatro perfis. Vejamos
três significados jurídicos para o vocábulo técnico, que correspondente aos
três primeiros perfis:
1.perfil subjetivo. A empresa
é o empresário, pois empresário é quem exercita a atividade econômica
organizada, de forma continuada. Nesse sentido, a empresa pode ser uma pessoa
física ou uma pessoa jurídica, pois ela é titular de direitos e obrigações. Quando
se diz "arrumei um emprego em uma empresa", temos a palavra empresa
empregada com esse significado.
2.perfil funcional. A empresa
é uma atividade, que realiza produção
e circulação de bens e serviços, mediante organização de fatores de produção
(capital, trabalho, matéria prima etc). Quando se diz "a empresa de
estudar será proveitosa", temos a palavra empresa empregada com
esse significado.
3.perfil objetivo (patrimonial). A empresa é um conjunto de bens. A palavra empresa é sinônima da
expressão estabelecimento comercial. Os bens estão unidos para uma
atividade específica, que é o exercício da atividade econômica. Como exemplo
desse significado, podemos dizer "a mercadoria saiu ontem da
empresa".
A empresa, portanto, tem todos esses significados.
Há também um quarto perfil, criticado pela doutrina
por não corresponder a qualquer significado jurídico, mas apenas por estar de
acordo com a ideologia fascista, que controlava o Estado italiano por ocasião
da positivação da teoria da empresa:
4.perfil corporativo. A empresa é uma instituição, uma organização pessoal, formada pelo empresário
e pelos colaboradores (empregados e prestadores de serviços), todos voltados
para uma finalidade comum.
Para fins do art. 966, a palavra empresa tem como
significado o segundo perfil mencionado acima. Empresa, portanto, é a atividade
econômica organizada. A organização é a união de vários fatores de
produção, com escopo de realização de bens ou serviços. O empresário, assim, é
quem realiza essa empresa, expressão
tomada como sinônimo de atividade.
A noção jurídica de atividade econômica organizada
exige o concurso de atividade profissional alheia. Se alguém exercer uma
atividade econômica individualmente, não será considerado empresário, à luz do art. 966 do novo Código Civil.
Pouco importa o regime jurídico das pessoas que
trabalharem para o empresário. Poderá ser o regime trabalhista ou civil (em
caso específicos, até mesmo o administrativo). Os colaboradores do empresário
poderão ser empregados, regidos pelo direito do trabalho, ou trabalhadores
autônomos, que são prestadores de serviço, regidos pelo direito civil. Pouco
importa. Ou seja, empresário não é sinônimo de patrão; mas o empresário sempre
contrata pessoas para trabalhar, ele sempre organiza o trabalho de
outrem.
Mas a organização não compreende apenas a contratação
de serviços sob regime civil ou trabalhista. Juridicamente, a organização
definida no art. 966 é a organização de fatores produção. Abrange capital e
trabalho. O capital compreende o estabelecimento, que é o conjunto de
bens utilizados pelo empresário na sua atividade econômica (estoque, matéria
prima, dinheiro, marcas, automóveis, computadores etc).
Essa organização deve ser profissional. Isso significa
que deve ser contínua e com intuito de lucro, objetivando meio de vida. Atos
isolados não são empresariais, mesmo que tenham conteúdo econômico.
Toda essa atividade organizada deve ter um sentido
econômico. Se o objeto não for a produção ou a circulação de bens ou de
serviços, não estaremos diante da empresa.
Essa é a teoria da empresa. Ela estuda isto: a
atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de
serviços. É o que se lê, claramente, no caput do art. 966 do novo Código
Civil.
Mas o art. 966 tem um parágrafo. Esse parágrafo diz
que não é empresário "quem exerce profissão intelectual, de natureza
científica, literária ou artística (...)".
O que significa isso? Estaria o parágrafo único o art.
966 a excluir parte da atividade econômica do conceito de empresa?
Isso pode causar uma certa perplexidade quando temos
em mente que a teoria dos atos de comércio é que fazia isso. A teoria dos atos
de comércio é que dividia a atividade econômica em atos sujeitos e atos não
sujeitos ao regime mercantil.
Tecnicamente, um parágrafo em um dispositivo de lei
pode significar uma exceção ou uma explicação ao que foi dito no caput.
Em outras palavras, um parágrafo pode estabelecer uma regra contraditória à do caput,
aplicável apenas a situações específicas, pois regra especial derroga regra
geral (parágrafo excepcionador) ou pode apenas explicar melhor algum
conceito contido no caput, esclarecendo que alguma situação específica está ou
não abrangida pela idéia do caput, sem qualquer contradição filosófica
(parágrafo explicativo).
No caso concreto, pode-se interpretar o parágrafo
único do art. 966 do novo Código Civil como uma exceção à regra do caput
ou como uma explicação. Vamos analisar as duas possíveis interpretações
a esse parágrafo único, para, ao final, concluir por uma ou outra
interpretação.
Se visto como uma exceção, o novo Código Civil
estaria positivando a teoria da empresa, mas conteria uma pequena ou não
pequena exceção: toda atividade econômica profissional organizada seria
considerada empresa, com exceção dos serviços intelectuais.
Estaria excluída, assim, a atividade econômica
desempenhada por médicos, advogados, escritores, escultores, ainda que com o
concurso de auxiliares ou colaboradores. Essas atividades, ainda que realizada
de forma profissional e organizada, com objetivo de lucro, não se sujeitariam
ao regime jurídico empresarial.
Vamos frisar este ponto: se for dado ao parágrafo
único, que se refere à profissão intelectual, for tomado como excepcionador da
regra do caput, significará dizer que a atividade de prestação de
serviços intelectuais realizada por uma grande organização não seria
empresarial. Ou seja, uma sociedade de advogados, titular de um grande
escritório de advocacia, com muitos empregados, com muitos computadores em
rede, máquinas de xerox, acesso rápido à Internet, bibliotecas, enfim, com uma
grande estrutura, não seria considerada empresa. Essa sociedade de advogados,
com seu grande escritório de advocacia,
reuniria todas as definições teóricas do caput do art. 966 do novo
Código Civil, mas não seria considerada empresa em razão do parágrafo único ter
excluído a profissão intelectual da atividade econômica sujeita ao regime
empresarial.
Esse parágrafo único conta, na sua parte final, com a
expressão "salvo se o exercício da profissão constituir elemento da
empresa".
Vamos ler de novo o parágrafo único do art. 966 e
novamente tentar interpretá-lo:
"Parágrafo
único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de
natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares
ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento da
empresa".
Qual o alcance da expressão "salvo se o exercício
da profissão constituir elemento da empresa"? Qual seu sentido?
Interpretado o parágrafo único desse modo, isto é, no
sentido de ser ele excepcionador da regra do caput, teremos dois
incontornáveis problemas de hermenêutica:
1.O novo Código Civil positiva a teoria da empresa,
que não divide a atividade econômica pelos atos em si considerados, mas sim
pelo modo em que ela é exercitada. A teoria que divide os atos em si
considerados (atos comerciais versus atos civis) é a teoria dos atos de
comércio, do Código Comercial de 1850. Caso se diga que a profissão intelectual
em si não é empresarial, estaremos interpretando o parágrafo único do
art. 966 de acordo com a teoria dos atos de comércio e não de acordo com a
teoria da empresa.
2.A segunda parte do parágrafo único do art. 966 não
teria qualquer sentido lógico ou prático.
Vejamos, então, a interpretação no sentido de que o
parágrafo único do art. 966, ao se referir à profissão intelectual, não
constitui uma exceção ao caput do art. 966, mas sim uma explicação.
Trata-se da interpretação tecnicamente mais adequado do ponto de vista
científico, pelos motivos a seguir expostos.
A idéia do parágrafo único do art. 966 do novo Código
Civil é que a princípio a profissão intelectual não é empresarial por
características próprias, isto é, não compreende a organização de fatores de
produção. O parágrafo único do art. 966 diz a profissão intelectual, a despeito
de ter conteúdo econômico (o parágrafo único usa a palavra
"profissão", o que denota o caráter econômico) não é empresarial,
mesmo se existentes auxiliares ou colaboradores.
Como vimos acima, de acordo com a teoria da empresa,
não basta a contratação de pessoas ("auxiliares ou colaboradores", no
dizer do parágrafo único do art. 966) em uma atividade econômica para a
configuração da existência jurídica da empresa. É preciso um elemento a mais,
que é o estabelecimento, o conjunto de bens. Isso fica mais claro quando nos
lembramos dos quatro perfis de Asquini, mencionados acima, que compõem a noção
jurídica de empresa.
Assim, de acordo com o parágrafo único do art. 966 do
novo Código Civil, embora a princípio a profissão intelectual não seja
empresarial, excepcionalmente pode ela constituir elemento de empresa. Nesse
caso, ela será empresarial.
Retornemos ao exemplo do grande escritório de
advocacia, com sua biblioteca, sua rede de computadores da mais alta
tecnologia, com acesso à Internet. Ou mesmo pensemos em um grande hospital, de
propriedade de um médico, com os mais modernos aparelhos cirúrgicos. Penso não
haver dúvida de que tais constituem o estabelecimento, parte da organização
empresarial prevista no caput do art. 966.
É preciso diferenciar a hipótese do advogado que
contrate uma secretária e um office-boy
para realizar as tarefas de secretariado e de mensageiro, da hipótese do grande
escritório de advocacia mencionado acima. Esse advogado não é um empresário,
mas apenas um profissional liberal, um trabalhador autônomo, que pode ter
auxiliares nas suas atividades. Isso não é vedado pela lei, nem tampouco o
transforma em empresário de acordo com a teoria da empresa. É este o sentido do
parágrafo único do art. 966: diferenciar alguém que realiza atividade econômica
não organizada de alguém que realiza atividade econômica organizada.
Portanto, tecnicamente parece ser mais adequado
interpretar o parágrafo único do art. 966 do Código Civil como uma explicação
e não como uma exceção ao disposto no caput. A princípio, a
atividade intelectual não é empresarial (primeira parte do parágrafo único),
mas se presente todos os elementos de uma empresa, ela será empresarial
(segunda parte do parágrafo único). Em outras palavras, a profissão intelectual
pode ser empresarial, se presentes todos os requisitos previstos no caput.
Essa é a explicação do parágrafo único do art. 966.
Embora a interpretação ora adotada seja tecnicamente
lógica e esteja de acordo com a teoria da empresa, ela não deverá prevalecer,
pelos motivos políticos e culturais a seguir expostos:
O regime jurídico do empresário, de acordo com o novo
Código Civil, é o regime jurídico do comerciante. É o que diz o art. 2.037, do
novo Código Civil:
"Art.
2.037. Salvo disposição em contrário, aplicam-se aos empresários e sociedades
empresárias as disposições de lei não revogadas por este Código, referentes a
comerciantes, ou a sociedades comerciais, bem como a atividades mercantis."
Disso decorre que empresários e sociedades empresárias
estão sujeitas ao regime jurídico mercantil, ainda que não exerçam qualquer
atividade que antes seria considerada como ato de comércio.
Este aspecto que é importante: perdeu relevância jurídica
a noção de ato de comércio! Só que, culturalmente, continuamos com a divisão da
atividade econômica em atividades "civis" (ex. advocacia), de um
lado, e "comerciais", de outro lado (embora juridicamente isso não
existe mais).
Se o regimento jurídico do empresário e da sociedade
empresária é o regime jurídico do comerciante, então os empresários e as
sociedades empresárias, tal como definidas pelo novo Código Civil, estão
sujeitas à todos os institutos mercantis, como por exemplo, a falência e o registro
na Junta Comercial. A potencial sujeição à falência e o registro na Junta
Comercial fazem parte do regime jurídico do comerciante.
Realmente, o novo Código Civil é expresso no sentido
de que o empresário, tal como definido no art. 966, deverá se inscrever na
Junta Comercial. É o que diz o art. 967 do novo Código Civil, que estabelece
ser obrigatória a inscrição do empresário no "Registro Público de Empresas
Mercantis", que é a tão conhecida Junta Comercial.
Levando tudo isso em consideração, é de se duvidar que
os operadores do direitos, as grandes sociedades de advogados, a OAB irão
aceitar a interpretação de que sociedades de advogados sejam consideradas sociedades empresárias e, por via de
conseqüência, sujeitas ao regime jurídico mercantil e que devam ser inscritas
na Junta Comercial e sujeitas à falência.
Vejam que as sociedades de advogados, ainda que
estejam regidas por lei específica, Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994
(Estatuto da Advocacia), deveriam se sujeitar às disposições do art. 967, do
novo Código Civil, caso se conclua que sociedade de advogados possam vir a ser
sociedades empresárias. É verdade que o art. 15, § 1º, do Estatuto da
Advocacia, lei especial, é expresso no sentido de que a sociedade de advogados
adquire personalidade jurídica com o registro dos seus atos constitutivos no
Conselho Seccional da OAB (e não no cartório de registro civil, muito menos na
Junta Comercial). Contudo, o art. 2.031 do novo Código Civil dá o prazo de 1
(um) ano paras as sociedades constituídas sob a forma de leis anteriores
(inclui a Lei nº 8.906/94?) adaptarem-se às disposições no novo Código, contado
a partir da sua vigência.
Culturalmente, é
muito difícil aceitar a mudança, sendo mais fácil aceitar que a "sociedade
civil" é agora a "sociedade simples" e a "sociedade
comercial" é agora a "sociedade empresarial". Sem trocadilhos,
seria tudo muito simples, se ainda estivéssemos na teoria dos atos de comércio
e não na teoria da empresa...
Embora tecnicamente equivocada, é bem provável que
prevaleça interpretação ao art. 966 do novo Código Civil no sentido de que a
profissão intelectual (incluindo, portando, as sociedades de advogados), mesmo
se tiverem trabalhadores contratados e contem com forte estrutura material, não
são sociedades empresárias.
Embora
tecnicamente equivocado, é bem provável que prevaleça entendimento de que
atividades intelectuais são exercidas sempre pelas "sociedades
simples", com registro no cartório de pessoas jurídicas, ainda que tenham
estrutura material e humana complexa.
Artigo retirado do
site http://www.rantac.com.br/users/jurista/art-966.htm