A sucessão hereditária
dos cônjuges (novo Código Civil)
02/02/2003
Sílvio de Salvo Venosa
Juiz aposentado do
Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo.
Advogado. Sócio do
escritório Demarest e Almeida Advogados.
Autor de obra completa
de Direito Civil em seis volumes.
O cônjuge vem, no
Código Civil de 1916, colocado em terceiro lugar na ordem de vocação
hereditária, após os descendentes e ascendentes. Não é herdeiro necessário,
podendo, pois, ser afastado da sucessão pela via testamentária. Nesse código, o
cônjuge herda na ausência de descendentes ou ascendentes. A dissolução da
sociedade conjugal exclui o cônjuge da vocação sucessória. A separação de fato
por si só não o exclui. Tal exclusão só ocorrerá com sentença de separação, ou
de divórcio, com trânsito em julgado. Até aí o cônjuge é herdeiro. Separação de
fato, ainda que por tempo razoável, não basta para que o cônjuge saia da linha
sucessória. A meação do cônjuge não é herança. Quando da morte de um dos consortes,
desfaz-se a sociedade conjugal. Como em qualquer outra sociedade, os bens
comuns, isto é, pertencentes às duas pessoas que foram casadas, devem ser
divididos. A meação é avaliada de acordo com o regime de bens que regulava o
casamento.
A doutrina sempre
defendeu a colocação do cônjuge como herdeiro necessário, posição que veio a
ser conquistada com o Código Civil de 2002. Isso porque, no caso de separação
de bens, o viúvo ou a viúva poderiam não ter patrimônio próprio, para lhes
garantir a sobrevivência. A Lei nº 4.121/62, Estatuto da Mulher Casada,
justamente para proteger essa situação, instituiu o direito à herança
concorrente de usufruto para o cônjuge sobrevivente, na redação do artigo
1.611, parágrafo 1º: "o cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento
não era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a viuvez, ao
usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido, se houver filhos, deste
ou do casal, e à metade, se não houver filhos embora sobrevivam ascendentes do
de cujus".
Outra proteção
conferida ao cônjuge viúvo, pelo mesmo Estatuto da Mulher Casada, foi o direito
real de habitação estampado no parágrafo 2º do mesmo artigo 1.611 do Código
Civil de 1916: "Ao cônjuge sobrevivente, casado sob regime de comunhão
universal, enquanto viver e permanecer viúvo, será assegurado, sem prejuízo da
participação que lhe caiba na herança, direito real de habitação relativamente
ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único bem daquela
natureza a inventariar". O intuito foi assegurar um teto ao viúvo (a), se
há um único imóvel residencial na herança. Poderiam os herdeiros não só entrar
na posse direta do bem, como aliená-lo, deixando o pai ou a mãe ao desabrigo. A
lei não se importou com o montante da herança. Há o direito de habitação, desde
que haja um único bem residencial e seja ele destinado à residência da família.
Entende-se que o
supérstite deva residir nele só ou com outras pessoas da família. Tal direito
só se extingue com a morte do cônjuge, ou quando sobrevier novo casamento. Para
reforçar esse entendimento, é interessante notar que o Código Civil de 2002
confere o mesmo direito real de habitação ao cônjuge sobrevivente,
"qualquer que seja o regime de bens" (artigo 1.831). Desse modo, se é
espancada a dúvida na nova lei; tal reforça também o nosso entendimento no
sistema legal anterior, por ser, evidentemente, o mais justo.
Como vimos, tanto o
usufruto, como a habitação conferidos ao cônjuge são direitos sucessórios
temporários. Extinguindo-se pela morte ou pelo término do estado de viuvez do
sobrevivente, o domínio pleno concentra-se na pessoa dos herdeiros. Tais
direitos devem ser descritos na partilha, para constar no registro imobiliário.
Interessante notar também que o artigo 1.831 do novo diploma transformou o
direito real de habitação em um direito permanente, pois não mais subordina
esse direito ao estado de viuvez. Portanto, o novo casamento ou a união estável
subseqüente do cônjuge supérstite, não mais tolherá seu direito real de
habitação. Apenas a morte do cônjuge beneficiado fará extinguir esse direito.
De qualquer modo, era
mesmo tempo de se colocar o cônjuge como herdeiro necessário. Como vimos, o
novo código assim o faz, concorrendo o cônjuge com descendentes e ascendentes,
em porcentagens diversas, dependendo do grau e do número de herdeiros, o que,
talvez, ainda não seja a fórmula ideal.
O cônjuge, como
enfatizamos, foi colocado na posição de herdeiro necessário, juntamente com os
descendentes e ascendentes (artigo 1.845). Desse modo, aos herdeiros
necessários pertence, de pleno direito, a metade dos bens da herança, que se
denomina legítima (artigo 1.846). Quando se trata de herdeiro cônjuge, nunca é
demais reiterar que herança não se confunde com meação. Assim, havendo meação,
além desta caberá também ao sobrevivente pelo menos, a metade da herança, que
constitui a porção legítima.
No entanto, foi
atribuída posição mais favorável ao cônjuge no novo código porque, além de ser
herdeiro necessário, será ele herdeiro concorrente, em propriedade, com os
descendentes e com os ascendentes.
Conforme o artigo
1.829, I, o cônjuge sobrevivente não concorrerá com os descendentes se for
casado com o falecido no regime de comunhão de universal bens ou no regime de
separação obrigatória (artigo 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da
comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares. Nem
sempre essas situações que afastam o sobrevivente da herança concorrente com os
descendentes significarão proteção ao sobrevivente, se essa foi, como parece, a
intenção do legislador. Certamente haverá oportunidades nas quais a
jurisprudência deverá aparar arestas.
Assim, quando concorre
com descendentes, aplica-se o artigo 1.832: "Em concorrência com os
descendentes (artigo 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos
que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte
da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer".
A lei faz distinção se
essa concorrência é com filhos comuns ou com filhos somente do cônjuge
falecido. Se for ascendente dos herdeiros descendentes, fica-lhe assegurada
sempre a quarta parte da herança. Assim, por exemplo, se concorre com um filho,
a herança será dividida ao meio; se concorre com dois filhos comuns, o cônjuge
receberá um terço da herança. Se concorrer com três ou mais filhos comuns,
ser-lhe-á assegurada sempre a quarta parte da herança, sendo o restante
dividido pelos demais. Esse quinhão do cônjuge será sempre computado conforme o
que couber por cabeça (artigo 1.835). Assim, o mesmo princípio se aplica, por
exemplo, se o cônjuge concorre somente com netos, descendentes de filhos já
pré-mortos.
Se, porém, o cônjuge
sobrevivo concorrer com descendentes do morto dos quais o sobrevivo não seja
ascendente, não há a reserva da quarta parte, sendo a herança divida em partes
iguais com os que recebem por cabeça. Se, porém, concorrer com descendentes
comuns e descendentes apenas do de cujus, há que se entender que se aplica a
garantia mínima da quarta parte.
Na falta de
descendentes, o cônjuge concorrerá com os ascendentes, aplicando-se o artigo
1.837: "Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge tocará um
terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só ascendente, ou se
maior for aquele grau". Desse modo, concorrendo com sogro e sogra,
receberá o cônjuge um terço da herança, que será, portanto, dividida em partes
iguais. Se concorrer apenas com o sogro ou com a sogra, ou com os pais destes,
independente do respectivo número, será sempre assegurada a metade da herança
ao supérstite. O cônjuge será herdeiro único e universal na falta de
descendentes e ascendentes (artigo 1.838).
O cônjuge, no novo
código, fará jus ao direito real de habitação, qualquer que seja o regime de
bens, relativamente ao imóvel destinado à residência da família, desde que seja
o único dessa natureza a inventariar e sem prejuízo de sua participação na
herança (artigo 1.831). Esse direito real de habitação, como se vê, se acresce
à sua participação na herança sob a modalidade de propriedade. É mais amplo do
que no ordenamento atual, pois não fica subordinado ao estado de viuvez do
sobrevivente, sendo portanto vitalício.
Dispositivo de curial
importância é o constante do artigo 1.830, que estabelece a legitimidade do
cônjuge para suceder: "Somente é reconhecido direito sucessório ao cônjuge
sobrevivente se, ao tempo da morte do outro, não estavam separados
judicialmente, nem separados de fato há mais de dois anos, salvo prova, neste
caso, de que essa convivência se tornara impossível sem culpa do
sobrevivente".
Sem que se reconheça
legitimidade ao cônjuge sobrevivente não se lhe pode atribuir a condição de
herdeiro. Como se percebe, o artigo introduz situações de fato que devem ser
provadas e poderão trazer muitas discussões no caso concreto e poderão
paralisar o inventário por muito tempo, até que sejam decididas, mormente a
ausência de culpa do sobrevivente pela separação de fato.
* A publicação deste artigo
foi autorizada pelo autor ao site www.escritorioonline.com
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