Artigo - Federal - 2004/0701

A Multa Condominial no novo Código Civil(1)

Gerson Luiz Carlos Branco*

 

O novo Código Civil trouxe uma regra que está provocando uma grande discussão no meio jurídico, que é a multa de 2% de que trata o seu artigo 1336, §1º.(2) Isso, porque a legislação anterior e grande parte das convenções de condomínio, previam que a multa pelo inadimplemento de quotas condominiais poderia ser de até 20% das quantias em atraso. (3)

 

Essa nova regra tem natureza cogente, assim como todas as regras que fixam os limites de cláusula penal pelo descumprimento de obrigação, denominada pela lei como pena de "multa".

 

É livre a fixação da cláusula penal desde que não seja extrapolado o limite legal, que no caso é de 2%. A norma tem caráter dispositivo porque permite que seja convencionada a multa incidente sobre as quantias em atraso, mas tal norma somente incidirá se não houver disposição convencional sobre a matéria. Porém, apesar de certa liberdade na possibilidade de sua fixação, o limite máximo é cogente e qualquer disposição de natureza convencional em sentido contrário é nula, por violação expressa do texto legal.

 

Essa distinção entre norma cogente e dispositiva e a definição da "multa condominial" como cláusula penal por descumprimento de obrigação é importante para que se identifique a eficácia da Lei Nova sobre as convenções já existentes ao tempo da edição do novo Código Civil.

 

Isso porque as regras cogentes, como são as regras dirigidas para as relações jurídicas absolutas, como, por exemplo, as regras que disciplinam o direito de propriedade, são afetadas imediatamente pela lei nova, razão pela qual, tudo o quanto a nova lei disciplina a esse respeito, está em vigor, desde o início da vigência do Código Civil.

 

Por outro lado, as regras da convenção de condomínio que podem ser fixadas com certa liberdade, conforme a conveniência dos condôminos, têm natureza negocial (contratual) e eficácia relativa, pois somente produzem efeitos sobre aqueles que declaram vontade de se obrigar ou que venham aderir à convenção na fase de execução das obrigações.

 

Em razão da eficácia relativa e pela necessidade de segurança jurídica, incide a regra constante no art. 5º, XXXVI da Constituição Federal e no art. 6º da Lei de Introdução ao Código Civil, que preserva o "ato jurídico perfeito", motivo pelo qual a lei nova não pode modificar aqueles atos que já se consumaram "segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou".

 

Assim, a convenção registrada, por consistir em negócio jurídico que se consumou e adquiriu eficácia plena através de seu registro perante o Registro de Imóveis, não sofre os efeitos da lei nova.

 

A natureza negocial da convenção é indiscutível, pois é negócio jurídico plurilateral(4), pelo qual os condôminos estabelecem as regras que regerão o condomínio internamente, assim como o condomínio deverá ser representado perante terceiros, além de disciplinar as matérias segundo a conveniência dos condôminos, dentro dos limites da lei.

 

Embora essa questão seja relativamente pacífica no Direito brasileiro, para deixar extreme de dúvidas, o novo Código Civil foi explícito a respeito das conseqüências de sua edição sobre o ato jurídico perfeito, ao editar o artigo 2035:

 

"Art. 2035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução".

 

Este artigo determina que negócios jurídicos, e entre eles a convenção de condomínio, obedecem às disposições das leis anteriores, no caso as disposições da Lei 4591/65, inclusive no que respeita ao limite da multa.

 

Porém, se a convenção não previu multa por inadimplemento, deixou de prever "determinada forma de execução", caso em que a lei incidente será o novo Código Civil, ainda que a convenção seja antiga, já que a lei anterior não fixava a multa em 20%, mas permitia que a convenção estabelecesse multa, fixando como limite máximo o patamar de 20%.

 

Isso significa que se a convenção já registrada em data anterior ao novo Código Civil determinar multa por inadimplemento, em patamar de até 20%, prevalece o ato jurídico perfeito, sendo aplicável a convenção de condomínio.

 

É importante também observar que o parágrafo único do artigo 2035 estabelece que qualquer disposição contratual anterior à vigência do novo Código Civil, ainda que esteja conforme com a legislação anterior, não prevalecerá sobre "os preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos".

 

No caso em exame, não há que se falar de função social, pois no âmbito da relação condominial o "interesse social" está do lado do conjunto dos condôminos, em detrimento do inadimplente que prejudica a coletividade na qual está inserido. Da mesma maneira, a questão de ordem pública que está posta no artigo, diz respeito à preservação do ato jurídico perfeito, respeitada a função social da propriedade e dos contratos.

 

Neste sentido, deve-se observar que a jurisprudência já começa a dar sinais de proteger o ato jurídico perfeito, o que pode ser verificado pelas decisões a respeito do tema proferidas pelas 19ª e 20ª Câmaras do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, as quais tem competência regimental para decidir sobre a matéria. (5)

 

Caberá ao Síndico a competência para aplicar a multa, tendo em vista que entre os seus deveres está o de cumprir e fazer cumprir a convenção de condomínio.

 

Se, porém, a convenção de condomínio for modificada no que respeita a multa, em data posterior à vigência do novo Código Civil, qualquer que seja a multa estipulada, haverá obrigação de obedecer aos ditames da nova lei.

 

Por isso, qualquer modificação da convenção antiga, ainda que seja sob a denominação de "ratificação", produzirá efeitos diversos do pretendido, pois todas as modificações que forem efetuadas devem obedecer aos ditames da nova lei.

 

Quanto à interpretação de que os 2% previstos no §1º do art. 1336 somente são cobrados se não houver juros fixados na convenção, trata-se de interpretação completamente equivocada, pois a expressão "ou não sendo previstos" diz respeito exclusivamente aos juros. Para ver o equívoco basta a leitura do texto da própria lei.

 

A regra somente permite a estipulação de juros inferiores a 1% ao mês. Se não houver estipulação de juros, estes serão de 1% ao mês, mas em hipótese alguma os juros poderão ser superiores a tal patamar. (6)

 

A compreensão sobre as razões da fixação de uma cláusula penal (multa) moratória em patamar tão baixo, não pode derivar de uma interpretação gramatical da lei. Faz-se necessária uma interpretação histórica, sistemática e teleológica, para que se possa compreender o seu alcance.

 

Iniciando pela análise histórica da elaboração da norma, a primeira afirmação é de que a matéria não pode ser considerada como pacífica, pois mesmo no curso da elaboração do Código Civil não houve um posicionamento linear a respeito do tema, que em todas as fases sofreu alterações.

 

O anteprojeto foi elaborado sem previsão de disposição correspondente, prevendo somente multas pelo descumprimento reiterado de obrigações, sendo omisso a respeito de multa moratória. (7)

 

Na Câmara dos Deputados a disposição equivalente ao §1º do art. 1336 foi inserida em razão da emenda n. 699, de autoria do Deputado José Bonifácio Neto, que propunha "coibir a impontualidade e relapsia dos maus condôminos, cujo péssimo procedimento tanto perturba a administração dos condomínios edilícios", através da multa de 20% sobre as importâncias em atraso. (8)

 

O Relator Geral, Deputado Ernani Satyro, acolheu a emenda, sob a forma de subemenda, mas com a sugestão de que a mesma fosse reduzida para 10%, tendo em vista a consideração de que a soma de juros, correção monetária e multa de 20% era excessiva, relatório que foi aprovado em 1984. (9)

 

No Senado, por emenda do Relator Geral, a matéria foi novamente modificada, para que a multa fosse "variável de cinco a dez por cento sobre o débito", debaixo da simples justificação de que "a multa se torna mais flexível", "variável segundo as circunstâncias". (10) A justificação dessa modificação é encontrada no relatório Geral, no qual é apresentada como uma das diretrizes gerais da nova codificação a "flexibilidade" das normas como o objetivo de que se proceda "com espírito isento de dogmatismo, antes aberto a imprimir clareza, segurança e flexibilidade ao sistema em construção, e, portanto, adequado a recolher e regular mudanças e criações supervenientes". (11)

 

A fixação da multa em dois por cento somente foi efetuada na última passagem do projeto pela Câmara, no ano de 2001, debaixo do simplista e equivocado argumento de que ".o art. 52-§ 1º do Código de Defesa do Consumidor limita a dois por cento do valor da prestação o valor da multa de mora decorrente da falta de cumprimento de obrigações no seu termo. Impõe-se, portanto, a adequação do dispositivo à legislação superveniente, nos termos do que nos permite a Resolução 01/2000 do Congresso Nacional". (12)

 

Evidentemente, a relação condominial não é relação de consumo, tendo a razão do legislador sido fundada em premissa completamente equivocada, pois não há na relação condominial nenhum dos requisitos exigidos pelo artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, bem como pelos artigos 17 e 29 do mesmo diploma legal, que definem o consumidor equiparado.

 

É fato consumado a redação do Código Civil com multa condominial pelo inadimplemento estipulada em 2%, não podendo o aplicador do Direito furtar-se de seu conteúdo.

 

Isso não significa, que o intérprete não possa conciliar e visualizar a matéria sob o ponto de vista sistemático e integrá-la no conjunto de regras do ordenamento jurídico.

 

Veja-se, por exemplo, que excetuadas as relações de consumo, o limite máximo da cláusula penal moratória nas obrigações em geral, e em especial nas obrigações pecuniárias, não pode exceder a 10%, nos termos do que dispõe o artigo 9º do Decreto n. 22.626, de 07.04.1933, a famosa Lei da Usura, que nesta parte continua em vigor.

 

Uma das exceções para a cláusula penal moratória em patamar superior ao previsto na Lei da Usura em data anterior ao Código Civil era justamente a disposição do artigo 12, §3º da Lei 4.535/64 que permitia cláusula penal de até 20% sobre as quantias em atraso.

 

No novo Código Civil, como se disse anteriormente, é indiscutível que a multa é de 2% das quantias em atraso, já que estabelece que se pode fixar cláusula penal "até dois por cento sobre o débito". A expressão "até dois por cento", à toda evidência, traz limite ao poder dos particulares de convencionar em sentido contrário.

 

Mas qual a razão sistemática para que se compreenda uma cláusula penal em patamar tão baixo, fato que pode estimular a inadimplência, já que "é mais barato" não pagar uma obrigação cuja multa é de 2%, quando o custo do dinheiro no mercado nunca é inferior a tal percentual?

 

A resposta à pergunta está na análise da nova sistemática das multas por descumprimento das obrigações fixadas no novo Código Civil e na consideração de que as multas não são as únicas penalidades pelo inadimplemento, pois o condômino inadimplente não pode participar das assembléias. Não poderá votar ou ser votado.

 

A discussão supra mencionada que ocorreu no curso da tramitação do projeto de Código Civil demonstrou uma premissa que foi a razão da modificação da multa de 20%. Tratou-se de tentativa de evitar uma penalização "rígida" e substancial, que pode caracterizar o enriquecimento ilícito nos casos em que alguém é compelido a pagar uma multa de 20% pelo atraso de um ou dois dias, ou até mesmo uma semana. O mesmo percentual irá pagar quem estiver em atraso por um ou dois anos.

 

A segunda premissa sistemática foi a mudança do conjunto de regras que disciplinam as multas condominiais, de uma maneira geral.

 

A cláusula penal de 2% pelo atraso no pagamento das quotas condominiais somente é devida neste patamar quando o inadimplemento é eventual e esporádico. Porém, quando o caso for de inadimplemento reiterado, que crie problemas financeiros ao condomínio, a cláusula penal é a prevista no artigo 1337 do Código Civil que permite ao condomínio aplicar multa de até cinco vezes o valor da quota condominial para o "condômino ou possuidor que não cumpra reiteradamente com seus deveres, mediante deliberação de ¾ dos condôminos restantes".

 

Ou seja, o Código Civil mudou toda a sistemática das multas, prevendo, inclusive, multas de até dez vezes a quota condominial para o caso do condômino que pratique atos anti-sociais, que gere incompatibilidade de convivência.

 

A solução dada, portanto, não é uma solução simples, pois passa a exigir de quem administra o condomínio um cuidado, uma diligência especial no que tange ao inadimplemento, mediante a aplicação das multas apropriadas ao caso, que não será, necessariamente a de 2%.

 

Observe-se, inclusive, que a própria convenção poderá estabelecer a partir de quando passa a ser um "inadimplemento reiterado" que justifique a aplicação de uma multa mais agravada, caso em que o rigor poderá ser até superior ao previsto na legislação revogada.

 

NOTAS

 

(1) Artigo síntese de palestra ministrada em evento promovido pelo SECOVI/RS e AGADEMI, em outubro de 2003.

 

(2) "§1º. O condômino que não pagar a sua contribuição ficará sujeito aos juros moratórios convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito".

 

(3) Art. 12, §3º, da Lei n. 4.591, de 16.12.1965: "O condômino que não pagar a sua contribuição no prazo fixado na convenção fica sujeito ao juro moratório de 1% ao mês, e multa de até 20% sobre o débito, que será atualizado, se o estipular a convenção, com a aplicação dos índices de correção monetária levantados pelo Conselho Nacional de Economia, no caso de mora por período igual ou superior a seis meses".

 

(4) Os negócios jurídicos plurilaterais caracterizam-se pela pluralidade de 'partícipes', todos vinculados em um único núcleo de interesses (Ex. negócios associativos, convenção de condomínio, etc.). Os negócios jurídicos bilaterais caracterizam-se pela existência de dois núcleos de interesses contrapostos, não importando quantas pessoas participem de cada núcleo de interesses (ex. contratos e negócios jurídicos bilaterais do plano do Direito das Coisas). Os negócios jurídicos unilaterais caracterizam-se por sua origem em uma declaração unilateral de vontade, como no caso do testamento, aval em um título de crédito, etc.

 

(5) TJRS, Ap. Civ. 70005352190, Rel. Des. MARIO JOSÉ GOMES PEREIRA, j. em 27.05.03 "Perfeitamente válida a multa em 20%, como constante da convenção - que, vale ressaltar, foi firmada muito antes da vigência do atual CCB (Lei 10.406/02). A Lei 4591/64 também alicerça a cobrança."

 

TJRS, AP. CIV. 70005052857 19ª CÂMARA CÍVEL, REL. DES. JOSÉ FRANCISCO PELLEGRINI, J. 16.12.2003: "MULTA. MANTIDA A MULTA CONTRATUAL PREVISTA NA CONVENÇÃO CONDOMINIAL FIRMADA ANTES DO ADVENTO DO NOVO DIPLOMA CIVIL (20% SOBRE O DÉBITO)".

 

TJRS, AP. CIV. N. 70007640170, 20ª CÂMARA CÍVEL, REL. DES. ARMÍNIO JOSÉ ABREU LIMA DA ROSA, J. 17.12.2003: ".NÃO SE VERIFICA, OUTROSSIM, QUALQUER ABUSIVIDADE NA MULTA PREVISTA NA CONVENÇÃO CONDOMINIAL, DEFINIDA NO PERCENTUAL DE 20%, NOS TERMOS DO ARTIGO 12, § 3º, DA LEI Nº 4.591/64, VIGENTE À ÉPOCA EM QUE ELABORADA AQUELA, NÃO PODENDO O DISPOSTO NO ARTIGO 1.336, § 1º, CC/2002, RETROAGIR PARA APANHAR PERÍODO EM QUE VIGENTES AS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO CIVIL ANTERIOR".

 

(6) O sistema do Código Civil não permite juros superiores a 1% ao mês, nos termos do artigo 406 do Código Civil, que define o novo patamar dos juros legais. No caso aqueles cobrados pela Fazenda Nacional, o teor do que dispõe o art. 161, §1º do Código Tributário Nacional. A redação está confusa

 

(7) Anteprojeto de Código Civil. Brasília: Editora do Senado Federal, 1973, os. 263 - 267.

 

(8) BONIFÁCIO NETO, José. Justificação da emenda n. 699. Diário do Congresso Nacional (Seção I) Suplemento, 14.09.1983, p. 377.

 

(9) SATYRO, Ernani. Relatório Geral da Comissão Especial do Código Civil na Câmara dos Deputados. Diário do Congresso Nacional (Seção I) Suplemento, 14.09.1983, p. 569.

 

(10) MARINHO, Josapha. Parecer Final do Relator e da Comissão Especial Sobre o novo Código Civil no Senado Federal. 1987. Emenda n. 430-A, do Relator Geral.

 

(11) MARINHO, Josapha. Parecer Final do Relator e da Comissão Especial Sobre o novo Código Civil no Senado Federal. 1987. Parecer Preliminar do Relator Geral.

 

(12) FIÚZA, Ricardo. Parecer Final às Emendas do Senado Federal feitas ao Projeto de Lei da Câmara Nº 118, De 1984, que institui o Código Civil. 02.05.2000, www.câmara.gov.br.

 

 

 

 

Gerson Luiz Carlos Branco*

gersonbranco@aranovich-branco.adv.br

 

 

Artigo retirado do site: http://www.fiscosoft.com.br/main_index.php?home=home_artigos&m=_&nx_=&viewid=119929