A Realidade Contratual à Luz do Novo Código Civil
Flávio Tartuce
Advogado, mestrando em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor de Direito Civil do Curso Robortella.
Todos os institutos do Direito Civil vêm perdendo a estrutura abstrata e generalizante para, aos poucos, substituí-las por disciplinas legislativas cada vez mais concretas[1]. Com o intervencionismo estatal consagrado pela Constituição de 1988, institucionaliza-se a interferência do Estado nas relações contratuais, “definindo limites, diminuindo os riscos do insucesso e protegendo camadas da população que, mercê daquela igualdade aparente e informal, ficavam à margem de todo o processo de desenvolvimento econômico, em situação de ostensiva desvantagem”[2].
Nessa nova estrutura, o contrato, típico instituto do Direito Privado, vem sofrendo uma série de alterações conceituais e a antiga visão de autonomia plena da vontade perde espaço para uma elaboração mais voltada para a realidade social dos envolvidos na relação contratual. Aqui, segundo aponta a melhor doutrina italiana, percebe-se que não se pode mais falar em Princípio da Autonomia da Vontade mas em Autonomia Privada.
Como se sabe, e tal fato constitui uma
realidade social, dificilmente a parte consegue manifestar de forma plena e
inequívoca a sua vontade no momento negocial. Esse elemento tão raro e inerente
à própria dignidade da pessoa humana perdeu o papel orientador que tinha no
passado eis que vivemos sob a égide do “Impérios
dos Contratos-Modelo”.
Sob esta ótica, muito se fala, no âmbito do Direito Civil, na socialização dos velhos conceitos herdados do Direito Romano, o que leva a um conflito na mente dos estudiosos da ciência jurídica, levando à conclusões erradas quanto às transformações no seu âmbito privado[3].
O contrato, cerne principal
da relações privadas, como destacam vários doutrinadores, não poderia ficar
alheio à tal fenômeno de evolução. Como bem observa Caio Mário da Silva Pereira, sendo o contrato conceito
intimamente relacionado à vontade humana e suscetível de influência pelas
transformações pelas quais passam os interesses da sociedade, não poderia ficar
alheio às modificações sociais.
O nobre doutrinador menciona
que várias são as facetas de evolução social, podendo-se falar em evolução
etimológica, em evolução biológica, em evolução lingüística, em evolução
antropológica e, claro, em evolução do contrato, uma “transformação temporal ou espacial “ pela qual passa o instituto.[4]
Lembramos a importância do
instituto “contrato” para o Direito
Privado. No nosso caso, interessante auferir que vários livros do Código Civil
em vigor, senão todos, são de vital
importância para o instituto em análise.
Sendo o contrato negócio
jurídico, não se pode olvidar a importância da Parte Geral do Novo Código Civil
para a existência e validade dos pactos celebrados. Vital o estudo dos
elementos essenciais, acidentais e naturais do negócio jurídico, eis que também
são os esses elementos formadores e orientadores do contrato. Os defeitos ou
vícios do negócio jurídico são de grande valia à matéria contratual, já que
geram a anulabilidade ou nulidade do pacto em diversas situações. As situações
em que se tem a nulidade e anulabilidade do negócio jurídico são plenamente
aplicáveis aos contratos, hipóteses em que se tem a extinção dos contratos por
ineficácia contratual.
O capítulo do Código Civil
que trata da Teoria Geral das Obrigações também é de grande importância para a
concepção dos contratos, já que os mesmos constituem a principal fonte do
direito obrigacional. No contrato se tem uma relação jurídica transitória entre
credor e devedor, várias obrigações de dar, fazer ou não fazer, solidariedade,
obrigações divisíveis e indivisíveis, obrigações singulares e plurais. Os
contratos têm extinção normal pelo cumprimento, pelo pagamento direto, mas
também por consignação em pagamento, imputação, sub-rogação, dação em
pagamento, novação, compensação, confusão e remissão de dívidas.
Tem-se também no Código Civil um capítulo que trata da
Teoria Geral dos Contratos, onde se propõe nova concepção do instituto, de
acordo com o Princípio da Socialidade concebido pela nova codificação e muitas
vezes mencionado pelo seu principal idealizador, que dispensa apresentações.
Aqui, a função social do contrato e a boa-fé objetiva são concebidos como verdadeiros
princípios orientadores da matéria contratual.
Na parte em que se estuda os
contratos em espécie, o aplicador da norma terá à sua disposição os ditames
naturais de cada instituto negocial. O Novo Código Civil inova trazendo outros
contratos com institutos típicos, o que não é objeto central do nosso estudo,
mas que merece realce. O jurista, desse modo, deve estar inteirado das regras
previstas na codificação privada, aplicáveis a cada figura contratual, mas sem
perder de vista também as leis especiais, caso, por exemplo, da Lei de Locação
(Lei nº 8.245/91), da Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) e do Código de
Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), de grande valia para a figura
jurídica em questão.
Sem prejuízo de outras leis
especiais, percebe-se que quase todo o Código Civil está dedicado aos negócios
jurídicos e aos contratos, lembrando também que mesmo os livros de Direito de
Família e Direito das Sucessões também são relacionados com o instituto.
Lembramos que muitos consideram o casamento como sendo um contrato “sui generis”, e o testamento, verdadeiro negócio jurídico
unilateral.
Na realidade, o Novo Código
Civil, em vários dos seus artigos,
concebe de forma plena a conscientização normativa da alteração dos
velhos institutos do Direito Civil, exprimindo a função social do contrato como fonte necessária para a
harmonização dos interesses privativos dos contratantes com os
interesses de toda a coletividade.
Percebe-se, em todo o
Direito Privado, a compatibilização do
princípio da liberdade com o da igualdade, a busca da expansão da personalidade
individual de forma igualitária. Há a busca do desenvolvimento da conjunto da
sociedade, mesmo que ao custo de diminuir a esfera de liberdade individual.
Em sua excelente obra
traduzida para o português “Fundamentos
do Direito Privado”, o doutrinador Ricardo
Luis Lorenzetti aponta todas as alterações pelas quais vêm passando os
principais institutos do Direito Civil e Direito Privado. Critica o mesmo o
chamado “big bang” legislativo demonstrando
o surgimento de inúmeros microssistemas jurídicos. Procura Lorenzetti também afastar o pessimismo
exagerado que circunda os institutos civis, principalmente o contrato: a
concepção da chamada “crise dos
contratos”[5]
Colocando a pessoa no centro
do ordenamento jurídico, o mestre argentino procura uma nova concepção de
contrato, de acordo com as principais alterações sociais sentidas nos últimos
séculos. Lembra que “a ordem jurídica
atual não deixa em mãos dos particulares a faculdade de criar ordenamentos
contratuais, equiparáveis ao jurídico, sem um interventor”.[6]
Para tanto aponta a necessidade do intervencionismo estatal, do dirigismo
estatal, com a concepção do princípio
da autonomia privada. Chega a afirmar que “o
Estado requer um Direito Privado, não um direito dos particulares. Trata-se de
evitar que a autonomia privada imponha suas valorações particulares à
sociedade; impedir-lhe que invada territórios socialmente sensíveis.
Particularmente, trata-se de evitar a imposição a um grupo, de valores
individuais que lhe são alheios. Aqui faz seu ingresso a ordem pública de
coordenação, de direção.”[7]
A necessidade da concepção
de um direito social também em matéria contratual tornou-se crescente após a
emergência dos Direitos da Personalidade, crescente principalmente após a
Segunda Revolução Industrial e que
trouxe uma nova maneira de negociar,
novos elementos subjetivos, em posições díspares no momento contratual.
Sob o enfoque social, tal
realidade tem origem, segundo as palavras Fernando
Noronha, na relação entre direito e sociedade, que constitui uma “relação de interdependência, com dois atributos: é mútua e assimétrica.
É interdependência, porque os acontecimentos registrados numa das esferas
produzirão efeitos também na outra; é interdependência mútua, porque cada uma
das esferas depende da outra, embora a dependência do direito em relação `a
sociedade seja bem maior do que a desta em relação ao primeiro; é uma
relação de interdependência assimétrica,
porque as partes não dependem uma da outra em medida igual”.[8]
Instituto também presente no
Direito Romano[9], não resta
dúvidas que poucos conceitos evoluíram tanto quanto o contrato. Tal evolução
foi objeto de um estudo clássico de San
Thiago Dantas, para quem a doutrina contratual representa o “termo de uma evolução, através da qual foram
sendo eliminadas normas e restrições sem fundamento racional, ao mesmo tempo e
que se criavam princípios flexíveis, capazes de veicular as imposições do
interesse público, sem quebra do sistema”[10].
Como já foi dito, atualmente, está em voga no Direito Comparado, e mesmo entre nós, afirmar sobre a “crise dos contratos”, chegando Savatier a profetizar que o contrato tende a desaparecer, surgindo outro instituto em seu lugar.
O Professor Titular de Direito
Comercial da Universidade de São Paulo, Luiz
Gastão Paes de Barros Leães, em prefácio da primeira edição de “Contratos Internacionais do Comércio”,
de Irineu Strenger, comenta tal
crise, ao elucidar que: “há alguns anos,
a decadência do Direito Contratual é apregoada num tom fúnebre, que anuncia
iminente desenlace. Há inclusive quem já tenha lavrado a sua certidão de óbito.
Grant Gilmore, em 1.974, publicou um livro com título provocador – The Death of
Contract (Columbus, Ohio) – onde assinalou a ação demolidora dos novos tempos
no edifício conceitual do contrato. O fenômeno da padronização das transações,
decorrente de uma economia de mass production, teria subvertido inteiramente o
princípio da liberdade contratual, transformando o ‘contrato’ numa norma
unilateral imposta pela empresa situada numa posição dominante. Teria ocorrido
assim um retorno ao status”.[11]
Sobre tal profetização Fernando Noronha comenta que “para Gilmore, professor da Yale Law School,
‘contract is being reabsort into the mainstream of “tor”’: ‘A teoria clássica
do contrato poderia bem ser descrita como uma tentativa para instituir um
enclave dentro do domínio geral da responsabilidade civil (tort). Os diques
foram erguidos para proteger o enclave, está bastante claro, têm vindo a
derrocar a uma velocidade cada vez mais rápida”.[12]
Na realidade, “crise” pode significar alteração na
estrutura – e é realmente isto que entendemos estar ocorrendo quanto ao tema –,
uma convulsiva transformação, uma renovação dos pressupostos e princípios da
Teoria Geral dos Contratos, que tem por função redimensionar seus limites, e
não extingui-los. Entendemos que o contrato não está em crise, mas sim em seu
apogeu como instituto emergente e central do Direito Privado. Isso justifica
porque o contrato é um dos primeiros
temas a ser discutido na Parte Especial da Nova Codificação.
Conforme já defendemos, uma
das principais alterações em matéria contratual se refere à autonomia da
vontade das partes na avença. Discute-se muito atualmente, a possibilidade da
revisão do contrato, a liberdade de extinguir o pacto e de se decidir a
conclusão da relação entre as partes.
Não se pode mais aceitar o
contrato com sua estrutura clássica, concebido sob a égide do “pacta sunt servanda” puro e simples, com a impossibilidade da revisão das
cláusulas. O Direito do Consumidor trouxe inovações nesta matéria, inovações
que constam agora no Novo Código Civil, como a proteção do aderente prevista
nos artigos 423 e 434 da nova codificação, o que pode gerar a nulidade absoluta
de cláusulas abusivas, diminuindo a amplitude da Força Obrigatória das
Convenções.
Aqui, lembramos as palavras
de Atílio Aníbal Alterini,
emergente autor argentino que alerta ao fato de não estarmos vivenciando a
chamada “crise dos contrato”, mas uma modificação nas suas estruturas
principais:
“Ahora bien. ¿Está
en crisis el contrato?. Se dice: ‘El contrato desaparece. Perece. Outra cosa se
coloca en su lugar. (Savatier). Se agrega: El contrato está en crise.
Crisis puede significar cambio. En realidad,
‘lo que a veces se denomina crisis del contrato – afrima Larroumet – no es nada
más que una crisis de la autonomia de la voluntad’, o sea, del “derecho de los
contratantes de determinar como lo entendian su relacion contractual” (Weill-
Terré). No se trata de declinatión o de crepúsculo del contrato, sino ‘de
transformación y de renovación’ (Josserand)”[13]
Também
repudiamos o conceito de “crise de
contratos”, conforme construído pelo Direito Comparado, acreditando em um novo
conceito emergente, dentro da nova realidade do Direito Social. Acreditamos nas
antigas palavras de Manuel Inácio
Carvalho de Mendonça, para quem “os
contratos hão se ser sempre a fonte mais fecunda, mais comum e mais natural dos
direitos de crédito”.[14]
Não
se pode falar em extinção do contrato, mas no renascimento de um novo
instituto, como uma verdadeira “Fênix”
que surge das cinzas. Importante revolução atingiu também os direitos pessoais
puros e as relações privadas, devendo tais institutos ser interpretados de acordo
com o sistemática lógica do meio social.
Somos
adeptos de uma posição otimista na análise do Direito Privado, acreditando na
emergência de novos institutos, renovando todo o Direito, afastando-nos dos
cientistas que afirmam estar ocorrendo
uma verdadeira crise do Direito Privado.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
TARTUCE, Flávio. A Realidade Contratual à Luz do Novo Código Civil.
Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em xx
de xxxxxxxx de xxxx
(substituir x
por dados da data de acesso ao site)
[1] Nesse sentido, Tepedino, Gustavo. “As relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual”. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, In: Temas de Direito Civil.
[2] Tepedino, ob cit., p. 204.
[3] Sobre o tema, interessante notar os comentários do Professor Caio Mário da Silva Pereira, na introdução da sua recente obra Direito Civil – Alguns aspectos de sua evolução. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, entre as páginas 1 e 15.
[4] Direito Civil. Alguns Aspectos da sua Evolução. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001, p. 226.
[5] Hoje se fala em “crise” de todos os institutos do Direito Privado: “crise da Parte Geral do Direito Civil” (cf. Lorenzetti. Ob. cit. p. 60 a 63), “crise da família” ou “crise do Direito de Família”, “crise do contrato”, conforme veremos, e assim suscessivamente.
[6] Fundamentos do Direito Privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998, p. 540.
[7] Ob. cit. p. 540.
[8] O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, , p. 26.
[9]
“Sentiu-se, entretanto, na sociedade
romana, cuja vida se tornou cada vez mais complexa com o surgimento de maior
pluralidade de negócios, a necessidade de dar uma certa materialidade aoso
contratos. E surgiram, então, as quatro modalidades mencionadas por Gaius.
Primeiro, os contratos r, como uma espécie de contrato real, que se perfazia
mediante a entrega de uma coisa; contrato litteris, que se completavam pela
inscrição no codex do devedor; contrato verbis, que se realizavam mediante a
troca de palavras sacramentais, dos quais o mais importante era a stipulatio.
Somente mais tarde veio o contrato consensu, cujo nascimento foi lento e
complexo, a que me referirei no segmento seguinte. Nem por isto perdeu sentido
a afirmativa de Gaius: as obrigações ora nascem de um contrato ora do delito
(vel ex contractu nascitur, vel ex delicto – Institutiones Commentarius, Vol.
III, nº 88)” (Silva Pereira, Caio
Mário Da,. Direito Civil – Alguns
aspectos de sua evolução, Editora
Forense, 2.001, Rio de Janeiro, p. 228)
[10]
Evolução contemporânea do Direito
Contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais. RT, vol 199, pág. 144.
[11] Contratos Internacionais do Comércio. São Paulo: Editora LTR, 3ª ed., p. 17.
[12] O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Editora Saraiva, 1994, p. 1.
[13]Vallespinos, Carlos Gustavo (Org.). Contratos. Presupuestos. Córdoba: Editora Advocatus, Sala de Derecho Civil, Colégio de Abogados de Córdoba,, p. 12 .
[14] “Contratos no Direito Brasileiro”. Tomo I. Rio de Janeiro: Editora Forense, 4ª Edição, 1957, p. 7.