A Prisão Civil do Devedor de Alimentos
Juiz de Direito (BA); Professor de
Direito Civil da UFBA, do JusPodivm (BA) e
do Instituto Luiz Flavio Gomes –
SP; Co-autor do Novo Curso de Direito Civil, Ed. Saraiva;
Editor do site www.novodireitocivil.com.br
Em nosso sistema jurídico, a prisão civil, medida excepcional, somente é admitida em duas hipóteses, previstas pelo art. 5º, LXVII, da Magna Carta de 1988:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LXVII. Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo
inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do
depositário infiel”. (grifos nossos)
Aliás, é interessante notar que a
Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica),
incorporada em nosso direito positivo pelo Decreto n. 678/92, somente admitiu a
prisão civil em caso de débito alimentar.
A despeito disso, vale lembrar, o STF fixou a supremacia do comando constitucional, para autorizar a medida também no caso do depositário infiel.
Nessa ordem de idéias, entendo que a prisão civil decorrente de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar, face à importância do interesse em tela (subsistência do alimentando), é medida das mais salutares, senão necessária, por se considerar que boa parte dos réus só cumpre a sua obrigação quando ameaçados pela ordem de prisão.
Especialmente os juízes, promotores e advogados que militam em Varas de Família sabem a verdade do que digo.
Nem sempre por miséria, mas também
por espírito de vingança, muitos réus simplesmente esquecem a premente
necessidade do alimentando (especialmente seus filhos), e passam a se esquivar
de sua obrigação, visando atingir sua ex-esposa (o) ou companheira (o), em uma
atitude lamentável, de pouco respeito aos ditames morais que devem pautar a
convivência humana.
Nesse contexto, já havendo título
judicial devidamente constituído, e a injustificada recalcitrância na obrigação
de pagar, a prisão civil afigura-se extremamente útil.
Analisando o procedimento de
execução de prestação alimentícia previsto no art. 733 do CPC, o ilustrado
BARBOSA MOREIRA pontifica: “A imposição da medida coercitiva pressupõe que o
devedor, citado, deixe escoar o prazo de três dias sem pagar, nem provar que já
o fez, ou que está impossibilitado de fazê-lo (art. 733, caput). Omisso o
executado em efetuar o pagamento, ou em oferecer escusa que pareça justa ao
órgão judicial, este, sem necessidade de requerimento do credor, decretará a
prisão do devedor, por tempo não inferior a um nem superior a três meses (art.
733, §1°, derrogado aqui o art. 19, caput, fine, da Lei n. 5478). Como não se
trata de punição, mas de providência destinada a atuar no âmbito do executado,
a fim de que realize a prestação, é natural que, se ele pagar o que deve,
determine o juiz a suspensão da prisão (art. 733, § 3°), que já tenha começado
a ser cumprida, quer no caso contrário.” [1]
E uma última observação ainda deve
ser feita.
A regra consolidada pela
jurisprudência , no sentido de que a medida só poderá ser ordenada em
face das três últimas parcelas em atraso[2] não tem
razão de ser.
Afinal, por que apenas para as
três últimas?
Onde estaria o fundamento
constitucional ou legal desta diretriz?
Por que o cabalístico número
“três”?
Não tenho dúvida de que, o juiz,
atuando com a devida cautela, pode, no caso concreto, decretar a prisão
civil em face de mais de três prestações em atraso, respeitado, é claro, o
limite máximo da prescrição da pretensão condenatória da dívida alimentar, uma
vez que o recurso à execução por quantia certa (cite-se, para pagar em 24
horas, sob pena de penhora...), é, na prática, moroso e sujeito a manobras
processuais[3].
Quantas vezes não se depara o juiz
com situações em que o réu, atuando de forma maliciosa, lança mão de
malabarismos processuais, pagando as três últimas parcelas, e, quanto às
demais, simplesmente oferece absurdas exceções de pré-executividade, embarga
aleatoriamente a penhora ou a execução, nomeia bens em foros longínquos... tudo
para postergar o processo, escudado nas regras de execução por quantia certa do
nosso próprio sistema processual civil.
E a mensalidade escolar da criança
que fique aguardando a penhora de bens, a avaliação e a alienação em hasta
pública!
Não convence, aliás, o argumento
de que, a partir da quarta parcela, a verba perderia cunho alimentar e passaria
a ser meramente indenizatória. A demora no aforamento da demanda poderá ter
decorrido das tentativas infrutíferas de composição extrajudicial, alimentadas
por ilusórias promessas descumpridas pelo réu, ou, simplesmente, derivar da
dificuldade em se contratar advogado.
Tal argumento é completamente
insubsistente, na medida em que, após o terceiro mês, o valor em atraso não
deixará de cobrir as necessidades básicas do alimentando, (escola,
vestuário, saúde etc.), não tendo, portanto, simples natureza compensatória.
Observo apenas que, se há um
considerável número de parcelas inadimplidas – e lembre-se de que, pelo novo
Código, o prazo prescricional de cobrança foi reduzido de cinco para dois
anos[4] -, deve o
magistrado, com o devido bom senso, evitar decretar a prisão civil como meio de
forçar o pagamento de todas, salvo se tiver prova de que o réu é dotado de
solvabilidade para tanto.
Poderia, por seu turno, ordenar a
medida para compeli-lo a adimplir as quatro ou cinco últimas em atraso, sem que
houvesse afronta ao texto constitucional, já que a Magna Carta não limitou a
ordem de prisão às três últimas parcelas.
O número das parcelas, portanto,
deverá ser aferida pelo juiz, em cada caso concreto, com a necessária
interveniência do Ministério Público, e segundo os elementos probatórios
trazidos pelas partes e por seus procuradores, durante a demanda.
O que não se afigura razoável é o
apego ao teto das três últimas prestações, porque completamente destituído de
fundamento jurídico.
E no atual estágio do moderno
Direito de Família, em que vivemos mudança de paradigmas legais e standards
jurídicos, comodamente assentados em nossa mentalidade judiciária ao longo dos
anos, nada melhor do que evitarmos qualquer tipo de vício de postura jurisprudencial,
a fim de que nos afinemos com os novos tempos.
Conseqüência disso, conclui ROLF
MADALENO, é a necessária consciência daqueles que se preocupam com a ciência
jurídica familiar, laborando-a com “uma acentuada dose de humanidade,
distanciando até onde for indicado, conveniente e seguro, das fórmulas
genéricas e previamente codificadas ou esparsamente normatizadas” [5].
Alinho-me, pois, junto a estes,
que defendem um novo Direito de Família, desprovido das más posturas e dos
vícios do passado.
COMO CITAR ESTE ARTIGO:
GAGLIANO, Pablo Stolze. A prisão civil do devedor de alimentos. Disponível na Internet:
<http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em xx de xxxxxxxx de xxxx
(substituir x
por dados da data de acesso ao site)
[1]
MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 19 ed.
Rio de Janeiro: Forense, 1997, pág. 261.
[2]
Trata-se das parcelas vencidas antes da execução, porque as que se vencerem
posteriormente, por óbvio, podem ser exigidas por meio do rito especial do art.
733 do CPC, que admite a prisão civil.
[3] É a conclusão a que chegamos em nosso cap. XXIV, vol. II, Novo Curso de Direito Civil – Obrigações, pág. 333, em que é feita a análise minuciosa da matéria.
[4] Art. 206, § 2° do CC-02.
[5]
MADALENO, Rolf. Direito de Família – Aspectos Polêmicos. 2. Ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999, pág. 13.