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A união estável e o novo Código Civil: uma análise evolutiva
Patrícia Eleutério Campos
advogada em Belo
Horizonte (MG)
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Evolução – Considerações Gerais
É sabido
que as denominadas "uniões livres" (extramatrimoniais) entre homem e
mulher sempre existiram.
Na velha
história grega houve concubinatos notórios (reconhecidos, de certa forma, pelas
leis). Em Roma também existiam, sendo considerados inferiores ao casamento, sem
efeitos jurídicos, por serem tais relações desprovidas de formalidades (mas
eram lícitas e não reprovadas pela sociedade).
As uniões
de fato não deixaram de existir nem mesmo durante a Idade Média, repudiadas
pela Igreja e pela sociedade e entendidas como relações imorais, mas toleradas.
Na Idade
Contemporânea, os Tribunais Franceses passaram a apreciar as pretensões das
concubinas: surge a Teoria da Sociedade de Fato, que adiante será
pormenorizada.
No
Brasil, o Código Civil de 1916 fez raríssimas referências ao concubinato,
disposições que, em sua maioria, estigmatizavam as uniões livres, tendo por
escopo a proteção da "família legítima".
Frente à
omissão do legislador em regular a matéria, os juízes viram-se forçados a
aplicar a analogia e a eqüidade diante dos casos concretos. Dessa feita, tem-se
que a regulamentação das uniões livres deu-se com os juízes à frente dos
legisladores.
A
jurisprudência, pois, foi sendo construída no sentido de admitir-se a
existência de uma sociedade de fato entre os concubinos, desde que provado o
esforço comum destes na aquisição do patrimônio (Súmula 380 – STF). O instituto
era, portanto, tratado pelo Direito das Obrigações, visando a coibição do
enriquecimento ilícito.
Arnoldo
Wald noticia a existência de julgado do Supremo Tribunal Federal, referente ao
RE 31.520, de 03.05.1956, em que se decidiu que:
"A
sociedade de fato, entre pessoas de sexo diferente, vivendo em concubinato ou
quando casados pelo regime de separação de bens, tem sido reconhecida pelo Supremo
Tribunal ante as circunstâncias especiais de cada caso, quando revelam o
esforço comum na aquisição do patrimônio. Não é a regra geral decorrente da
simples coabitação’ (Diário da Justiça de 11.03.1957, p. 763 do apenso ao n.
57)."
Havia,
ainda, julgados conferindo à concubina o direito à compensação pelos serviços
domésticos prestados durante a relação concubinária, ou seja, seria cabível
indenização correspondente aos valores dos salários que lhe seriam devidos. No
sentido mencionado, em 30.04.1984, o Supremo Tribunal Federal julgando o RE
102.130, cujo relator foi o Ministro Soarez Munoz, decidiu, nos seguintes
termos:
"Concubinato. Serviços domésticos prestados pela concubina.
Indenização a ela devida, pois que tais serviços são perfeitamente destacáveis
do concubinato em si e negar-lhes remuneração seria acoroçoar o locupletamento
indevido do homem com o trabalho da mulher" (Diário da Justiça de
25.04.1984, p. 8237 – Ement. Vol. 01337-06, p. 186 – RTJ Vol. 110-01, p. 432).
Além
disso, ainda antes da promulgação da Constituição de 1988, surgiram algumas
leis (tais como a Lei 4.069/62, art. 5º, §§ 3º e 4º; a Lei 4284/63 e a Lei
7210/84, art. 41 e art. 120) que conferiram certos direitos às relações
concubinárias, sobretudo nos campos acidentário, trabalhista e previdenciário.
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União Estável, Constituição Federal de 1988 e Leis nº
8971/94 e 9278/96
A
Constituição de 1988 foi um marco extremamente significativo para o Direito de
família. Como é sabido, passaram a ser reconhecidas as múltiplas formas
constitutivas de família que sempre existiram, embora à margem dos ordenamentos
jurídicos.
Assim, de
acordo com o Princípio do Pluralismo Familiar, foram reconhecidas
expressamente, além do casamento, mais duas formas constitutivas de família,
quais sejam: a união estável e a família monoparental.
Há,
inclusive, uma moderna corrente doutrinária entendendo que, além dessas
entidades familiares expressamente admitidas pelo texto constitucional,
poder-se-ia reconhecer outras formas constitutivas de família, desde que
presentes os requisitos da estabilidade, ostensibilidade, convivência e
afetividade, posto que não há mais no texto constitucional qualquer cláusula de
exclusão. Reconhecem, portanto, a família fraterna (formada por irmãos
solteiros), a família homoafetiva e qualquer outra relação em que se evidenciem
os requisitos supramencionados.
Importa
destacar que as famílias constituídas por essas formas devem ser tratadas de
forma paritária, pois têm a mesma dignidade, idêntica importância, inadmitidas
quaisquer discriminações.
O
constituinte deixou a tarefa de definir a união estável, bem como os requisitos
necessários para a sua caracterização, nas mãos do legislador ordinário. Assim,
surgiu a Lei 8.971/94, que não estabeleceu a definição de união estável, mas
sim seus elementos caracterizadores: exigia-se prazo de duração de mais de
cinco anos ou a existência de prole; o estado civil também deveria ser
considerado: os companheiros deveriam ser solteiros, separados judicialmente,
divorciados ou viúvos. Conferiu o direito à pensão alimentícia, desde que
provada a necessidade do alimentado e dentro das possibilidades do alimentante.
A
referida lei, no tocante aos direitos sucessórios, alterou a ordem de vocação
hereditária (até então prevista no art. 1603 do Código Civil de 1916) e dispôs
sobre o direito ao usufruto vidual dos companheiros. Além disso, tratou da
partilha de bens em caso de morte de um dos concubinos (estabelece o direito à
meação, desde comprovado o esforço comum na aquisição do patrimônio).
A Lei
9.278/96, em seu art. 1º, define a união estável como "a convivência
duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com o
objetivo de constituição de família", teria, dessa forma, derrogado a art.
1º da Lei 8.971/94, não mais se exigindo o rígido prazo de cinco anos para
caracterizar-se a união estável.
A
supracitada lei, em seu art. 5º, deferiu o direito à meação dos bens adquiridos
a título oneroso na constância da união, presumindo-se o esforço comum (tal
presunção seria relativa, admitia-se prova em contrário). O art. 7º, dispôs
sobre os alimentos entre os conviventes, sem cogitar da culpa na concessão
desse direito. Estabelecia, ainda, o direito real de habitação do imóvel
destinado à residência da famíla ao convivente supérstite.
A
doutrina criticava o fato de não se considerar a culpa na dissolução da união
estável, posto que seria tratar de forma mais benéfica os concubinos, que
sempre teriam direito à pensão alimentícia, enquanto que somente ao cônjuge
inocente na separação judicial seria conferido tal direito. Pelas mesmas razões
criticava-se a possibilidade de cumulação pelo companheiro do direito real de
habitação e do direito de usufruto vidual, o que jamais ocorreria na dissolução
do casamento pela morte de um dos cônjuges, nos termos do art. 1611, §§ 1 e 2º
do Código Civil de 1916.
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A União Estável e o Novo Código Civil
O Livro
IV da Parte Especial do Código Civil de 2002 foi destinado ao tratamento do
Direito de Família. O Título I trata do "Direito Pessoal" (também
denominado Direito de Família Puro), estabelecendo regras sobre o casamento e
sua celebração, sobre filiação e ainda sobre separação e divórcio. Já o Título
II trata do "Direito Patrimonial" (ou Direito de Família Aplicado),
dispondo sobre o direito a alimentos, os regimes de bens e sobre o bem de
família.
Não deixa
de causar estranheza a sistematização, por destinar à União Estável e seus
efeitos um título próprio (Título III). A justificativa apresentada para a
exclusão deste instituto do título relacionado ao direito pessoal, foi o fato
de não estar previsto na versão primitiva do projeto (que foi elaborado há mais
de duas décadas), época em que sequer se cogitava em nosso ordenamento jurídico
da proteção dessa forma constitutiva de família.
Afirma-se
que o novo Código, em seus arts. 1723 a 1727 (que dispõem sobre os aspectos
patrimoniais e pessoais do instituto), sintetizou os principais elementos das
Leis nº 8.971/94 e nº 9.278/96.
O art.
1723 do novo diploma estabelece que "é reconhecida como entidade familiar
a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública,
contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de
família".
Esse
conceito não traz a exigência de prazo rígido para a caracterização da união
estável. Há que se analisar, diante do caso concreto, se presentes a
estabilidade, convivência, ostensibilidade e afetividade da relação.
Estabelecer esse prazo rígido implicaria em possibilidade de negar a existência
de uma união estável que de fato estaria configurada ou de reconhecer como
uniões estáveis relações que, embora duradouras não têm como finalidade a
constituição de família.
O
referido art. 1723, em seu § 1º, dispõe expressamente que é possível a
constituição de uniões estáveis entre pessoas casadas, desde que separadas de
fato ou judicialmente. Tal entendimento já vinha sendo seguido pela
jurisprudência majoritária.
É em
consonância com o supramencionado § 1º do art. 1723, que deve ser interpretado
o art. 1727 do novo Código Civil. Estabelece este último que "as relações
não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem
concubinato".
Teve por
objetivo diferenciar a união estável do concubinato, entendido este como a
relação adulterina ou incestuosa. Visa resguardar o Princípio da Monogamia,
ordenador de todo o direito de família. Se o ordenamento jurídico pátrio só
admite o casamento monogâmico e, uma vez que há união estável entre pessoas
que, embora não sendo casadas, vivem como se o fossem, não há que se falar em
união poligâmica.
Todavia,
utilizou-se da expressão "impedidos de casar", melhor teria sido a
designação "relações adulterinas ou incestuosas", posto que, como
visto, as pessoas separadas de fato ou separadas judicialmente, apesar de
impedidas de casar, podem constituir uniões estáveis.
O art.
1724 do novo Código Civil brasileiro estabelece os deveres de lealdade,
respeito e assistência entre os companheiros e de guarda, sustento e educação
dos filhos. Nota-se que, paulatinamente, tais uniões vão deixando de ser
"livres", pois há cada vez mais intervenção estatal, através da
fixação de regras como estas.
No
tocante às conseqüências patrimoniais, segundo o art. 1725 do Código Civil de
2002, "na união estável, salvo convenção válida entre os companheiros,
aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial
de bens". Não mais existe a possibilidade de comprovar ausência de esforço
comum com o intuito de negar-se a partilha de bens.
Quanto
aos alimentos decorrentes da dissolução da união estável, de acordo com o art.
1694 do novo diploma, os conviventes (assim como os cônjuges) podem reclamar,
reciprocamente, os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível
com sua condição social. Neste passo, a melhor interpretação do dispositivo é a
de que devem se aplicar à obrigação alimentar dos conviventes, as mesmas regras
e os mesmos princípios que regem tal obrigação resultante da separação judicial
(arts. 1694 a 1710, CC/2002).
Em
relação aos direitos sucessórios dos companheiros o novo código andou mal.
Tratou de maneira absolutamente desigual os cônjuges e os companheiros, o que,
como visto, não se admite no regime constitucional vigente. Enquanto o cônjuge
sobrevivente é herdeiro necessário, com posição privilegiada (pois concorre em
certos casos com os ascendentes e os descendentes do de cujus), o companheiro
continua como herdeiro facultativo e só terá direito à totalidade da herança se
não houver colaterais sucessíveis (art.1790, inc. IV, CC/2002).
Trata-se
de evidente retrocesso, uma vez que pelo regime anterior (Lei nº 8971/94), na
ausência de ascendentes e descendentes do companheiro morto, o convivente teria
direito à totalidade da herança.
O art.
1790, caput, estabelece que somente quanto aos bens adquiridos na constância da
união estável, o companheiro ou companheira participará da sucessão do outro.
Ora, quanto aos bens adquiridos onerosamente durante a relação, o companheiro
já é meeiro (art. 1725, CC/2002). Tal restrição é absolutamente infundada.
Ressalte-se que a totalidade da herança a que se refere o inc. IV do
art. 1790, neste contexto, limita-se aos bens adquiridos durante a união
estável e, em sendo assim, se o de cujus possuía outros bens, adquiridos
anteriormente e, não havendo outros parentes sucessíveis, tais bens não
integrarão a herança do companheiro sobrevivente. Passarão ao Município, ao
Distrito federal ou à União, conforme a hipótese (art. 1844).
Conclui-se que o convivente sobrevivente, quando do desfazimento da
união estável pela morte de seu companheiro, terá direito à metade dos bens
adquiridos na constância da convivência, além da quota hereditária que lhe é
conferida em relação à outra metade pelo art. 1790 e incs.
Importa
ainda saber se houve a integral revogação dos dois diplomas legais que tratavam
das uniões livres (Leis nº 8971/94 e nº 9278/96). O novo diploma civil não
optou pela revogação expressa, o que teria sido mais técnico. Dessa feita,
entendesse que tão somente as normas contrárias ao Código de 2002, ou as que
tratarem de matérias que por este diploma foram inteiramente reguladas
encontram-se revogadas.
Por essa
razão, infere-se que o direito real de habitação, conferido em caso de
dissolução da união estável pela morte de um dos companheiros (art. 7º, lei n
9278/96), teria sido mantido. O novo Código Civil silenciou quanto a este
aspecto, mas tal interpretação equivaleria a estabelecer tratamento paritário
em relação ao cônjuge sobrevivente, que tem o direito real de habitação
garantido pelo art. 1631 do multimencionado diploma.
Como se
percebe, no tocante aos direitos hereditários, o tratamento conferido à união
estável é evidentemente discriminatório em relação ao estabelecido no tocante
às relações matrimoniais. Em sendo assim, urge que o novo diploma seja
reformado nesta parte, para que seja respeitada a Constituição federal de 1988,
posto que as referidas disposições ferem de morte fundamentos constitucionais,
tais como o Princípio da Dignidade Humana, bem como o Princípio da Isonomia.
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Retirado de: http://www1.jus.com.br