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A
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA
A
DEFESA DE DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Marcos
Maselli Gouvêa
1. Apresentação, p. ; 2. A tese da ilegitimidade do
Ministério Público para o ajuizamento de ação civil coletiva, quando os
interesses versados não são 'indisponíveis', p. ; 3. A inspiração da ação civil
coletiva no direito processual comparado, p. ; 4. A defesa da ordem jurídica e
dos interesses sociais como fundamentos para a legitimidade do Ministério
Público, p. ; 5. Em que sentido os direitos individuais homogêneos são, de
fato, interesses indisponíveis, p. ; 6. O entendimento jurisprudencial, p. ; 7.
A legitimidade em sede de interesses de contribuintes, p. ; 8. Conclusão, p. ;
9. Bibliografia, p. .
1. Apresentação
A
reconstrução democrática do Brasil coincide com o florescimento da função
promocional do Ministério Público. A derrocada do Estado autoritário constituiu
momento propício para que as novas concepções da tarefa ministerial, forjadas
gradualmente desde a década de sessenta, encontrassem eco nos reclamos
libertários da sociedade brasileira, sensibilizando o legislador - e,
posteriormente, o constituinte – para a elaboração de leis que consagravam este
Ministério Público ímpar, de funções que em muito transcendiam a de seus
congêneres estrangeiros.
Embora
décadas antes já se desenhasse uma reformulação do perfil institucional do parquet,
os anos oitenta foram responsáveis pela implementação desta mudança. Datam do
período a primeira lei orgânica da Instituição (Lei Complementar nº 40/81), a
primeira lei a atribuir ao Ministério Público legitimidade para pleitear
indenização por violação a interesses transindividuais (Lei nº 6.938/81, que
regula a Política Nacional de Meio Ambiente) e a Lei da Ação Civil Pública; em
1988, a nova Constituição da República veio coroar este processo, revelando-se
um verdadeiro divisor de águas na história do parquet brasileiro.
Inobstante
os inegáveis e profundos avanços ocorridos em outras esferas, foi no campo dos
interesses transindividuais que este período de transformação se mostrou mais
profícuo, sobretudo diante do ineditismo das funções atribuídas ao Ministério
Público, sem paralelo em outros ordenamentos.
Como
é cediço, o principal veículo de resguardo dos interesses transindividuais é a
ação civil pública, instrumento processual instituído pela Lei nº 7.347/85,
destinado à tutela de interesses difusos, coletivos e, a partir de modificação
introduzida pela Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), inspirada
nas class actions norte-americanas, também dos direitos individuais
homogêneos. Situações jurídicas transindividuais, que anteriormente não
possuíam meio adequado de tutela processual, tornaram-se sindicáveis através de
ações movidas pelo Ministério Público, por associações e órgãos públicos
especificamente destinados a tal fim. A este respeito, vale observar que,
inobstante a legitimação concorrente, o Ministério Público, concretamente,
integra o pólo ativo de mais de noventa por cento destas ações.
A
Constituição de 1988 referiu-se à ação civil pública em seu art. 129, III.
Neste dispositivo, incumbiu o Ministério Público de instaurar inquérito civil e
ajuizar ação civil pública "para proteção do patrimônio público e social,
do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos". Rompendo com
o sistema originário de enumeração numerus clausus, o Texto Maior
viabilizou a propositura de ação civil pública para a defesa de quaisquer
interesses.
A
ênfase conferida pela Constituição à defesa dos interesses transindividuais
inspirou uma série de mudanças de ordem prática. Verifica-se que quase todos os
Estados da Federação, ao longo da última década, criaram Promotorias de Justiça
especializadas em defesa de interesses transindividuais - consumidores, meio
ambiente, patrimônio público, infância e juventude, deficientes físicos etc. As
ações civis públicas, tão exíguas até 1988, sofreram um impulso considerável a
partir da Constituição e da Lei nº 8.078/90.
O
Promotor de Justiça, perante a sociedade, passou a ser identificado com a
concretização de políticas públicas: de segurança; de atendimento a crianças,
adolescentes, idosos e portadores de deficiência; de proteção ao meio ambiente,
ao patrimônio histórico, artístico e cultural; de salvaguarda do Erário e da
moralidade administrativa; de defesa do consumidor, da família e dos
hipossuficientes. Sua atuação não consiste mais na mera reafirmação burocrática
do status quo; nas mais diferentes arenas, passa a ser uma atuação
orientada finalística e estrategicamente, tendo sempre a Lei - e,
primordialmente, a Constituição - como instrumento para atingimento de seus
objetivos.
Esta
função promocional do Ministério Público, ao contrário do que
apressadamente poder-se-ia conceber, de modo algum significa a obsolescência do
antigo perfil do Promotor de Justiça, devotado a questões criminais. Muito
apropriadamente, certos autores já salientaram que a velha dicotomia entre as
atuações do Ministério Público no âmbito criminal e no âmbito cível afigura-se
ultrapassada. Ao invés de uma opção entre o Promotor criminal e o Promotor
cível, o que se pretende é que a Instituição saiba manejar todos os
instrumentos de que ora dispõe, com vistas ao atingimento de seu fim
institucional de defesa da sociedade.
Sensíveis
a isto, os Ministérios Públicos de diversos Estados da Federação já
reformularam sua organização, de modo a que o mesmo órgão que cuida da defesa
cível de um direito transindividual (p.ex., uma Promotoria de Defesa do
Consumidor) seja responsável, também, pelos inquéritos policiais e ações penais
concernentes à matéria. Destarte, sem qualquer prejuízo para a independência
funcional, logra-se manter, por trás das diferentes formas de atuação
ministerial, uma unidade de estratégia. A especialização dos órgãos do
Ministério Público deixa, progressivamente, de basear-se no instrumento
jurídico que será utilizado para adotar como critério o interesse material que
se visa a resguardar, através dos diversos meios processuais e extraprocessuais
pertinentes.
O
motor que leva à articulação do presente ensaio é, justamente, o intuito de
contribuir para o fortalecimento desta Instituição renovada. Diversas pesquisas
e a prática profissional têm demonstrado que as ações civis públicas,
instrumentos imprescindíveis da ação promocional do parquet, têm
apresentado índices de extinção sem julgamento do mérito excessivamente altos.
Tal fenômeno atinge, sobretudo, as ações civis coletivas, modalidades de
ação civil pública destinadas à tutela dos interesses individuais homogêneos, e
deve-se à vulgarização, em certos meios doutrinários e judiciários, da tese de
que o Ministério Público não se encontraria legitimado para sua propositura.
2. A tese da ilegitimidade do Ministério Público para o ajuizamento de
ação civil coletiva, quando os interesses versados não são 'indisponíveis'
Alguns
órgãos do Poder Judiciário, sensibilizados pela argumentação expendida por
certos doutrinadores - alguns dos quais de renome incontestável - têm acolhido
a tese de que o Ministério Público não pode titularizar a ação civil coletiva,
ou seja, a ação civil pública destinada à tutela de interesses individuais
homogêneos.
Antes
de aprofundar tal discussão, insta tecer algumas considerações quanto à
tipologia dos interesses perseqüíveis por intermédio da ação civil pública
(tipologia que, a despeito de figurar na lei protetiva dos consumidores,
aplica-se à generalidade das ações civis públicas, por força do art. 21 da Lei
nº 7.347/85).
Nos
termos do art. 81, parágrafo único da Lei nº 8.078/90, os interesses ou
direitos tuteláveis através da ação civil pública compreendem:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos
deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular
grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária
por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.
Impende
salientar que um mesmo fato - a existência de uma cláusula contratual nula, por
exemplo - pode ensejar o surgimento de uma pretensão difusa, coletiva e
individual homogênea. É equivocado supor que a classe do direito - difuso,
coletivo ou individual homogêneo – decorre automaticamente de características
intrínsecas ao ilícito praticado. Aferir se o direito sindicado é difuso,
coletivo ou individual homogêneo exige observar, antes de mais nada, o pedido
formulado: assim, diante de uma cláusula contratual abusiva, pode-se pedir a
veiculação de contrapropaganda (direito difuso, cujos beneficiários são todas
as pessoas que, direta ou indiretamente, tiverem acesso àquela informação), a
declaração de nulidade da cláusula (direito coletivo, titularizado pelo grupo
de clientes que celebraram o prefalado contrato), ou ainda a condenação do
fornecedor infrator ao ressarcimento dos consumidores lesados (direito
individual homogêneo).
Ao
presente estudo releva, em especial, a ação civil pública para tutela de
direitos individuais homogêneos - que o art. 91 do Código denomina,
especificamente, ação civil coletiva. Para o ajuizamento desta ação, o
Código legitimou o Ministério Público (art. 92; art. 82, I), sendo certo que
outros atores processuais - entes de direito público interno, órgãos da
administração pública destinados à defesa de direitos transindividuais,
associações etc. - também poderão promovê-la (art. 82, II a IV). Vale ressaltar
que, no toca à legitimidade ministerial, esta foi repisada na Lei nº 8.625/93 -
Lei Orgânica Nacional do Ministério Público -, que preceitua:
Art. 25. Além das funções previstas nas Constituições Federal e
Estadual, na Lei Orgânica e em outras leis, incumbe, ainda, ao Ministério
Público: [...]
IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei:
a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio
ambiente, ao consumidor, aos bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico, e a outros interesses difusos, coletivos e
individuais indisponíveis e homogêneos; [...]
Inobstante
a previsão da legitimidade nestes dispositivos legais não aludir expressamente
a qualquer restrição, permanece influente a tese de que o parquet
somente pode ajuizar a ação civil coletiva para salvaguarda de direitos
individuais homogêneos indisponíveis. Os defensores deste ponto de vista
baseiam-se, em primeiro lugar, na redação algo dúbia da legislação orgânica,
que alude a direitos "individuais indisponíveis e homogêneos".
O
argumento mais forte invocado pelos opositores da legitimidade do Ministério
Público procura depreender esta limitação da própria configuração institucional
delineada no Texto Maior. O art. 129, III da Constituição, ao cuidar da tarefa
de promover a ação civil pública, não menciona os direitos individuais
homogêneos. A legitimidade legalmente conferida, diante disto, somente poderia
ter, por fundamento de validade, a regra insculpida no art. 129, IX, que
permite ao legislador ordinário cometer ao Ministério Público outros afazeres,
desde que consentâneos com seus fins institucionais. Entretanto, o caput
do art. 127, ao rascunhar as finalidades do parquet, lhe teria conferido
a defesa dos direitos individuais indisponíveis; destarte, apenas os
direitos individuais homogêneos que atendessem a este requisito de
indisponibilidade poderiam ser tutelados por iniciativa do Ministério Público.
Esta
tese recebeu a adesão de figuras preeminentes do cenário jurídico nacional,
como por exemplo Hugo Nigro Mazzilli, que assim se manifestou:
Na ação civil pública ou coletiva, em defesa do consumidor, a atuação do
Ministério Público deverá levar em conta o tipo de interesse e o tipo de
pedido.
Tratando-se da defesa de interesses difusos, pela abrangência dos
interesses, a atuação do Ministério Público sempre será exigível. Já na matéria
de interesses coletivos e interesses individuais homogêneos o Ministério
Público atuará sempre que: a) haja manifesto interesse social evidenciado pela
dimensão ou pelas características do dano ( mesmo o dano potencial); b) seja
acentuada a relevância do bem jurídico a ser defendido; c) esteja em questão a
estabilidade de um sistema social, jurídico ou econômico.
Assim, se a defesa de um interesse, ainda que apenas coletivo ou
individual homogêneo convier direta ou indiretamente à coletividade como um
todo, não se há de recusar ao Ministério Público de assumir sua tutela. Quando,
porém, se tratar de interesses coletivos ou individuais homogêneos, de pequenos
grupos, sem característica de indisponibilidade nem suficiente abrangência
social, pode não se justificar a iniciativa do Ministério Público.
Por fim, na defesa de interesses estritamente individuais, dos
consumidores, raramente se justificará a iniciativa da instituição.
A atuação do Ministério Público em defesa de interesses individuais de
consumidores, poderá ocorre quando a questão diga respeito à questões de saúde,
educação e outras matérias indisponíveis ou de grande relevância social.
Secundando
o entendimento desta parcela da doutrina, alguns acórdãos foram prolatados na
direção da ilegitimidade ministerial. Neste sentido, o Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro, através da 7ª Câmara Cível, houve por bem excluir o Ministério
Público do pólo ativo de ação civil pública destinada à reparação das vítimas
do desabamento do Edifício Palace II; em alguns Estados, foram extintas ações
que objetivavam a restituição de taxas de iluminação pública indevidamente
auferidas por Municipalidades; noutros, foram extintas ações que pleiteavam a
reposição de descontos por encargos abusivos previstos em contratos bancários.
O próprio STJ, conforme será analisado pormenorizadamente adiante, demonstra
posicionamento algo dúbio acerca do tema.
Afora
a importância de cada uma destas ações caso fossem acolhidas, há de se
ressaltar o custo social de toda a investigação que a precede - lotação do
Promotor de Justiça e de funcionários no órgão que a ajuíza, papel,
correspondências, tinta etc. Torna-se imperioso, diante de toda o proveito
prático que poderia advir do julgamento destas ações, bem como de todos estes
recursos humanos e materiais mobilizados, precisar exatamente se estas ações
são ou não cabíveis, à luz das leis e da Constituição. Esta a tarefa a que se
propõe a presente digressão.
Enquadrar
a titularidade da ação civil coletiva entre as tarefas institucionais do
Ministério Público exige, antes de mais nada, clarificar a importância desta
ação dentro do direito processual contemporâneo. Impõe-se, assim, um breve
relato acerca da inspiração da ação civil coletiva brasileira.
3. A inspiração da ação civil coletiva no direito processual comparado
A
ação civil coletiva, modalidade de ação civil pública dirigida à defesa dos
interesses individuais homogêneos, foi instituída a partir da constatação de
que o direito processual clássico não fornecia remédios adequados a solucionar
litígios envolvendo interesses de grupos de pessoas. Do ponto de vista do Poder
Judiciário, estes interesses coletivos, para serem compostos, acarretavam (e
ainda acarretam) uma enxurrada de ações que, entulhando a Justiça, tornavam sua
atuação mais morosa e onerosa; ademais, davam margem a decisões conflitantes, o
que ia de encontro à necessária igualdade entre os jurisdicionados. Do ponto de
vista do cidadão, fazia com que este tivesse de dispender um tempo enorme em
tratativas com advogados, ou aguardando ser atendido pela assistência
judiciária gratuita. Enfim, o tratamento processual tradicionalmente conferido
a essa espécie de interesses se mostrava absolutamente inadequado. Frise-se
ainda que certos atos ilícitos, prejudicando minimamente os patrimônios
individuais mas atingindo grande monta quanto globalmente considerados, ficavam
na prática a salvo de qualquer impugnação judicial, já que, sopesando custos e
benefícios, o lesado terminava por conformar-se à agressão a seu direito.
Evidenciou-se assim, na esteira do movimento por acesso à justiça, a
necessidade de criar-se um remédio processual capaz de proporcionar efetividade
na tutela dos interesses patrimoniais lesionados em massa, sem aqueles
inconvenientes acima mencionados.
Já
no século XVII o Reino Unido contava com uma modalidade de ação civil coletiva,
que viria a ser estendida aos demais países da Commonwealth -
notadamente Canadá, Nova Zelândia e Austrália. Atualmente, países europeus de
tradição romano-germânica também contam com instrumentos destinados à proteção
molecular de direitos individuais homogêneos. Inobstante a primazia britânica e
a ulterior disseminação por todo o mundo, foi nos Estados Unidos que tal
instrumento processual mais se desenvolveu, sob a forma das class actions.
Um
dos maiores defensores da ação coletiva nos Estados Unidos foi, ainda na
primeira metade do século passado, o Justice Story, da Suprema Corte. No
curso do voto proferido no caso West vs. Randall, em 1820, Story
realizou uma vasta digressão acerca da ação coletiva, identificando certos
casos em que as cortes deveriam reconhecer, sem a necessidade de litisconsórcio
expresso, a representação dos ausentes pelo autor coletivo:
Onde as partes são muito numerosas e a corte percebe que será quase
impossível trazê-las perante o tribunal, ou onde a questão é de interesse geral
em que uns poucos podem promover uma ação em benefício de todos, ou onde houver
uma associação voluntária com fins públicos ou privados em que seja possível a
representação dos direitos e interesses de todos que dela fazem parte; nesses e
em casos análogos, a ação se demonstra não ser meramente em nome dos autores,
mas de todos os outros interessados; o pedido para formação de litisconsórcio
necessário deverá ser repelido e o tribunal deverá dar prosseguimento ao
processo até a decisão de mérito.
Inspirados
pelos votos e estudos de Story, em 1845 a Suprema Corte promulgou a Equity
Rule 48, compilação de práticas processuais que consagravam a tutela
coletiva. Atualmente, as class actions são reguladas pela regra 23 do
Código Federal de Processo Civil.
Desde
que surgiu a class action, um de seus aspectos mais discutidos, senão o
mais discutido, é o da titularidade ativa. O que distingue a ação coletiva do
litisconsórcio ativo é, justamente, o fato de que terceiros são atingidos pela
ação mesmo que não manifestem expressamente o propósito de ingressar com uma
ação. Surge assim a questão: como se explica que estas pessoas possam,
eventualmente, ser prejudicadas pela eventual improcedência de uma ação que não
moveram? Não se deve reconhecer ao titular do direito lesionado a prerrogativa
de escolher seu advogado, sua estratégia processual, o momento da propositura
da ação, e até mesmo se pretende, efetivamente, recorrer às vias judiciais para
ver seu direito reconhecido?
Desde
meados do século passado, a jurisprudência e as leis norte-americanas se
preocupam em evitar que o titular do direito tutelado seja prejudicado por
ações coletivas mal formuladas. Para tanto, socorreram-se do conceito de representatividade
adequada, pelo qual passava-se a exigir do autor coletivo algumas condições
para que fosse possível o conhecimento da class action. Atualmente, nos
termos da regra 23(b)(3), exige-se que sejam intimados todos os membros
identificáveis da classe tutelada, mas não para que concordem com sua inclusão
no pólo ativo (hipótese em que a ação se tornaria uma espécie de litisconsórcio
ativo), e sim para que, caso o desejem, requeiram sua exclusão (sistema opt
out).
Mesmo
considerando que a presunção é de inclusão, havendo necessidade da expressa
solicitação do titular do direito para que seu nome seja excluído do rol de
atingidos pela ação coletiva, muitas críticas são dirigidas a esta necessidade
de notificação. Na prática, o que se tem constatado é que poucas vezes os
beneficiários da tutela coletiva expressam sua discordância com a inclusão na class
action, o que torna a providência inútil. Além disso, muitas associações de
menor porte não têm como arcar com o ônus destas notificações.
No
que toca mais diretamente à presente exposição, vale salientar que, quando
alguma entidade pública é autora, fica dispensada de notificar os interessados.
Presume-se, nesta hipótese, a representatividade adequada.
Constata-se
assim que a defesa molecular dos interesses individuais homogêneos constitui
uma necessidade percebida mundialmente, da qual o Brasil não pode permanecer
afastado. Aliás, é importante enfatizar que nosso país conta com uma das
legislações mais avançadas acerca deste tema, havendo encontrado soluções
próprias e claras para certos problemas que ainda hoje intrigam os
processualistas estrangeiros, como a representatividade adequada e o fluid
recovery (destinação subsidiária da condenação, na hipótese de não ser
promovida a execução pelos interessados).
Traçado
este breve panorama da ação coletiva no direito comparado, há que se retornar à
questão da legitimidade do Ministério Público para promovê-la, no Brasil. Será
demonstrado, num primeiro momento, que a legitimidade do parquet não
depende exclusivamente da existência de interesses indisponíveis,
devendo-se levar em consideração a defesa da ordem jurídica e dos interesses
sociais, bem coma regra residual do art. 129, VI da Constituição. Em
segundo lugar, será visto que os direitos individuais homogêneos constituem um
grupo de direitos decomponíveis em dois momentos normativos, sendo que apenas o
primeiro destes, efetivamente indisponível, é objeto da tutela coletiva.
Finalmente, serão analisadas a jurisprudência e a doutrina mais autorizada
acerca do tema, conferindo-se especial atenção a brilhante acórdão, da lavra do
eminente Min. Maurício Corrêa, que corretamente identifica os direitos
individuais homogêneos como consectários dos direitos coletivos,
cuja persecução o art. 129, III do Texto Maior confere ao parquet, sem
traçar qualquer restrição no que pertine à indisponibilidade dos interesses
individualmente considerados.
4. A defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais como fundamentos
para a legitimidade do Ministério Público
Conforme
já explanado, diante da cláusula final do art. 127 da Constituição Brasileira,
alguns doutrinadores e juízes manifestaram o entendimento de que a legitimidade
do parquet, quanto aos direitos individuais homogêneos, restringir-se-ia
àqueles de caráter indisponível. De plano, este argumento esbarra em uma perplexidade:
se os direitos individuais homogêneos são sempre direitos patrimoniais, como
poderiam alguns deles ser considerados, em termos rigorosos, direitos indisponíveis?
Na condição de direitos de crédito, serão sempre suscetíveis de renúncia. Se a
ação civil coletiva limita-se sempre aos direitos indisponíveis, então será
sempre inconstitucional, não se justificando a ressalva quanto à
indisponibilidade.
Sustentam
alguns que os direitos individuais homogêneos referentes a mensalidades
escolares, por exemplo, seriam exceção, já que dizem respeito à educação,
direito indisponível. Ora, embora a educação, em si mesma, afigure-se
inegavelmente um direito indisponível - o acesso ao ensino obrigatório e
gratuito é reconhecido, em sede constitucional (art. 208, §1º), como direito
público subjetivo, e os teóricos dos direitos fundamentais reconhecem no
ensino fundamental um direito inerente à dignidade da pessoa humana -, as
mensalidades escolares decerto não o são. A própria Medida Provisória nº 1477,
que regula suas fixações, deixa evidente o propósito de obter soluções
negociadas entre pais e donos de escola. Fosse um interesse indisponível, isto
não seria possível.
A
tese da ilegitimidade ministerial, superestimando a cláusula que consagra à
instituição a defesa dos interesses indisponíveis, parece descuidar-se quanto
ao restante das finalidades insculpidas no art. 127. Este dispositivo também
alude aos fins de defesa da ordem jurídica e dos interesses sociais, cláusulas
que fornecem a chave para a compreensão do problema ora enfocado.
Com
efeito, caso o texto constitucional se limitasse a elencar a defesa de direitos
indisponíveis como finalidade a legitimar a atuação do Ministério Público,
disto resultaria não apenas a inconstitucionalidade da legitimidade para a ação
coletiva, mas também a ausência de supedâneo para a intervenção da Instituição
em ações acidentárias, por exemplo, dado o caráter disponível do benefício.
Diversos outros casos de intervenção do Ministério Público, na condição de custos
legis, teriam de ser considerados inconstitucionais. Recursos interpostos
nestas ações deveriam deixar de ser conhecidos. Estes exemplos evidenciam que a
intervenção do parquet ocorre, também, em função da
indisponibilidade do direito, mas não apenas nesta hipótese.
Impõe-se
a conclusão de que a atuação ministerial, nos termos do dispositivo mencionado,
também se respalda nas funções institucionais de defesa da ordem jurídica e
dos interesses sociais. São estes valores, mais do que uma interpretação
extensiva da defesa dos interesses indisponíveis, que fundamentam a tutela
molecular dos direitos individuais homogêneos, tutela esta cuja provocação é
constitucionalmente cometida, por excelência, ao Ministério Público. Se a
apropriação indevida de uma quantia que deveria pertencer a consumidor é
realizada por uma empresa, não configura isto um atentado contra a ordem
jurídica, a demandar a intervenção do parquet? Se, para a satisfação
de seus direitos - direitos, por vezes, a quantias ínfimas - milhares de
pessoas têm de propor uma enxurrada de ações individuais, atravancando juizados
especiais e juízos comuns, não haverá aí interesse social na solução
rápida de inúmeras lides, através da atuação molecular do Ministério Público?
Quando
julga uma ação civil pública de repercussão social inegável - como ocorreu no
caso Palace II, em que se objetivava sancionar oferta lesiva responsável pela
morte de diversas pessoas, ou nas ações destinadas ao ressarcimento de centenas
de milhares de contribuintes e consumidores prejudicados por cobranças ilegais
-, o Judiciário demonstra à população em geral sua capacidade de resolver
eficazmente os conflitos sociais, consolidando assim seu respeito junto à
sociedade e a confiança na ordem jurídica. Esta confiança no Estado de Direito,
que a tutela coletiva fortalece, enquadra-se na cláusula que comete ao parquet
a defesa do regime democrático e da ordem jurídica.
Tal
entendimento é esposado por diversos doutrinadores de expressão, como por
exemplo Nelson Nery Junior e Rosa Maria Andrade Nery, que, com pertinência ao
tema ora versado, assim se manifestaram:
O que legitima o MP a ajuizar ação na defesa de direitos individuais
homogêneos não é a natureza destes mesmos direitos, mas a circunstância de sua
defesa ser feita por meio de ação coletiva. A propositura de ação coletiva é de
interesse social, cuja defesa é mister institucional do MP (CF 127 caput),
razão por que é constitucional o CDC 82, I, que legitima o MP a mover ação
coletiva na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. No
mesmo sentido, tese de Nelson Nery Junior aprovada por unanimidade no 9º
Congresso Nacional do Ministério Público (Salvador-BA, setembro de 1992) .
No
contexto da discussão acerca da legitimidade ministerial, assume relevo
evidente o inciso IX do art. 129 da Constituição, cláusula de fechamento das
que regulam as funções institucionais do Ministério Público, e que permite à
lei atribuir novas incumbências ao parquet, "desde que compatíveis
com sua finalidade".
Inobstante
o aparentemente evidente propósito ampliativo do dispositivo em questão, muitos
autores contrários à legitimidade, enfatizando a necessidade de que os poderes
adicionais sejam compatíveis com a finalidade da instituição,
sustentaram que tais novas atribuições não poderiam importar a tutela de
interesses individuais que não fossem indisponíveis. Tal argumento, na linha do
que foi assinalado acima, peca por desconsiderar o munus ministerial de
zelar pelo interesse social e pela ordem jurídica.
Nesta
direção, Ada Pellegrini Grinover, uma das mentoras do Código do Consumidor
brasileiro, em célebre parecer redigido por solicitação do IDEC – Instituto
Brasileiro de Defesa do Consumidor -, demonstra como a legitimidade do parquet
pode ser extraída da cláusula residual do art. 129, IX, desde que se atente
para a finalidade institucional de defesa do interesse social:
[...] Muito embora a Constituição atribua ao Ministério Público apenas a
defesa de interesses individuais indisponíveis (art. 127), além dos difusos e
coletivos (art. 129, III), a relevância social da tutela coletiva dos
interesses ou direitos individuais homogêneos levou o legislador ordinário a
conferir ao MP a legitimação para agir nessa modalidade de demanda, mesmo em se
tratando de interesses ou direitos disponíveis. em conformidade, aliás, com a
própria Constituição, que permite a atribuição de outras funções ao MP, desde
que compatíveis com sua finalidade (art. 129, IX).
A dimensão comunitária das demandas coletivas, qualquer que seja seu
objeto, insere-as sem dúvida na tutela dos interesses sociais referidos no art.
127 da CF. É o que afirmei no artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo
de 14.12.91, já citado.
15. Vale lembrar, a esse respeito, as preciosas colocações de Kazuo
Watanabe: "... o legislador claramente percebeu que, na solução dos
conflitos que nascem de relações geradas pela economia de massa, quando
essencialmente de natureza coletiva, o processo deve operar também como
instrumento de mediação dos conflitos sociais neles envolvidos e não apenas
como instrumento de solução de lides. A estratégia tradicional de tratamento
das disputas tem sido de fragmentar os conflitos de configuração essencialmente
coletiva em demandas-átomo. Já a solução dos conflitos na dimensão molecular,
como demandas coletivas, além de permitir o acesso mais fácil à Justiça, pelo
seu barateamento e quebra de barreiras sócio-culturais, evitará a sua
banalização pela técnica da fragmentação e conferirá peso político mais
adequado às ações destinadas à solução desses conflitos coletivos" (Código
Brasileiro cit., pp. 501 e 502).
E mais: "Em linha de princípio, somente os interesses individuais
indisponíveis estão sob a proteção do Parquet. Foi a relevância social da
tutela a título coletivo dos interesses ou direitos individuais homogêneos que
levou o legislador a atribuir ao Ministério Público e a outros entes públicos a
legitimação para agir nessa modalidade de demanda molecular, mesmo em se
tratando de interesses e direitos disponíveis" (ob. cit., p. 515).
[...]17. Decorre daí que, pelo simples fato de serem tratados numa
dimensão coletiva, os direitos individuais assumem relevância social,
inserindo-se sua tutela, pela legitimação do MP, no art. 127 da CF, c/c o art.
129, IX. Não é por outra razão que o CDC determinou a atuação obrigatória do MP
no processo, se não for ele autor da ação em defesa dos interesses (ou
direitos) individuais homogêneos (art. 92 do CDC).
O Código de Defesa do Consumidor e a LACP não pretenderam
"esclarecer" o art. 129, III da CF - como pareceu ao eminente Prof.
Miguel Reale - mas ampliaram a legitimação do MP, como permitia o art. 129, IX,
observada a relevância social dos direitos individuais, quando coletivamente
tratados (art. 127 da CF).
Aliás, a Constituição Federal estabelece um patamar mínimo, que o
legislador ordinário pode ampliar, desde que não se desvirtuem os objetivos
institucionais do órgão. E tal desvirtuamento não houve, como se demonstrou.
[...] É inconstitucional a legitimação do MP às ações coletivas em
defesa de interesses individuais homogêneos, outorgada pelo CDC e pela LACP?
Resposta - De forma alguma. Encontra ela perfeito embasamento na
Constituição Federal.
Aliás,
análise histórica revela que a maior preocupação do constituinte, ao restringir
a possibilidade de cometimento pelo legislador ordinário de tarefas ao parquet,
foi a de evitar que a instituição permanecesse realizando as funções de
advocacia de entes públicos, notadamente da União Federal - incumbência anômala
que perdurou até 1993, quando foi criada a Advocacia da União. Tal preocupação
chegou a ser cristalizada no texto da alínea em comento, na qual se inscreveu,
expressamente, a vedação de "representação processual e consultoria de
entidades públicas".
Ainda
com relação à suposta restrição da legitimidade aos casos de direitos
individuais homogêneos indisponíveis, há que se mencionar a tese segundo a qual
o art. 25, I, a da Lei nº 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério
Público), ao assentar a legitimidade do Ministério Público para a defesa de
direitos e interesses "individuais indisponíveis e homogêneos" teria
pretendido afastar qualquer dúvida quanto à necessidade de que os direitos
fossem, simultaneamente, indisponíveis e homogêneos. Ora, já do ponto de vista
sintático, esta conclusão não parece nada pacífica, já que a redação acima
permite dupla compreensão: direitos simultaneamente indisponíveis e
homogêneos como também direitos alternativamente indisponíveis e
homogêneos.
Sob
um ponto de vista lógico-jurídico, então, a interpretação do dispositivo
torna-se estreme de qualquer discussão, impondo-se a segunda das exegeses acima
propostas. Como pode ser facilmente constatado, o art. 25, que trata das
funções institucionais do parquet, em nenhum momento menciona,
isoladamente, a função de defesa dos direitos individuais indisponíveis. O
único dispositivo que alude à função de defesa de direitos indisponíveis -
absolutamente consagrada, que ninguém pensaria em considerar fora do âmbito de
atribuições do Ministério Público - é a prefalada alínea a do inciso I.
Ora, será que alguém defenderia que os direitos de incapazes, por exemplo,
somente poderiam ser defendidos de fossem tratados homogeneamente, em ações
coletivas? Impende reconhecer, portanto, que o Ministério Público encontra-se,
nos termos de sua Lei Orgânica, legitimado a atuar quer se trate de direito
indisponível, quer se trate de direito homogêneo.
5. Em que sentido os direitos individuais homogêneos são, de fato,
interesses indisponíveis
Muito
do que se afirma acerca da ilegitimidade ministerial para postulação de
direitos individuais homogêneos decorre da falta de compreensão da estrutura
destes direitos e, conseqüentemente, do mecanismo de sua efetivação judicial.
Na seção anterior, demonstrou-se como a legitimidade do Ministério Público
independe da indisponibilidade dos direitos dos beneficiários da ação civil
pública, individualmente considerados; neste passo, cuida-se de demonstrar
como, ainda que a indisponibilidade fosse exigida, em certo sentido o direito individual
homogêneo é, de fato, indisponível.
Inicialmente,
cumpre reconhecer que a indisponibilidade ou não de um direito decorre da lei.
A despeito da discussão acerca da existência de direitos fundamentais cujo
caráter indisponível preexista ao direito posto, cumpre reconhecer que, dentro
da ordem jurídica brasileira, incumbe ao legislador ordinário disciplinar, de
acordo com seu juízo político, as hipóteses de indisponibilidade. Certos
defensores da tese da ilegitimidade ministerial equivocam-se a conceber a
indisponibilidade de um direito como algo transcendente, que procuram aferir
sem atentar para os termos da lei.
Ao
Ministério Público não é dado dispor da ação civil pública. Corrobora esta
assertiva a Lei nº 7.347/85, que estabeleceu, em seu art. 5º, §3º, a
impossibilidade de extinção da ação civil pública por desistência, ao estatuir
que, "em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação
legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade
ativa". Portanto, por opção do legislador, o direito individual, por
definição, será indisponível sempre que, observados os requisitos legais, for
tutelado através de ação civil pública, titularizada pelo parquet.
Ora,
então qualquer direito individual homogêneo ter-se-ia transformado em direito
indisponível? A questão não comporta resposta tão simples. Na realidade, é
necessário compreender a estrutura dual dos direitos indisponíveis. Enquanto
este direito ainda é um reflexo do direito coletivo, enquanto ainda é tratado
de forma molecular, não-individualizada, será, efetivamente, um direito
indisponível. Contudo, uma vez findo o processo de conhecimento da ação civil
pública, a satisfação dos créditos reconhecidos dependerá de iniciativa
individual, através da habilitação a que aludem os arts. 91 e ss. da Lei nº
8.078/90.
Embora
a tutela coletiva seja indisponível, a satisfação pessoal do crédito nunca o
será. A legitimidade do Ministério Público se extingue, efetivamente, a partir
do momento em que o direito, antes tratado indivisamente, passa a ser objeto de
quantificação individual.
Esta
foi a forma encontrada pelo legislador pátrio para resolver a questão da
representatividade adequada na ação civil coletiva: em primeiro lugar, os
efeitos da coisa julgada somente se estendem erga omnes no caso de
procedência do pedido (art. 103, III da Lei nº 8.078/90); em segundo lugar, a
liquidação depende da iniciativa do interessado. Consoante preceitua o Código
do Consumidor, aplicável à generalidade das ações civis coletivas,
Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em
número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do artigo 82
promover a liquidação e execução da indenização devida.
Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o
fundo criado pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1995 [grifou-se].
Portanto,
o Ministério Público não poderia obrigar o consumidor, contra sua vontade, a
haver um crédito ao qual pretenda renunciar. Isto seria uma ingerência indevida
na esfera privada. O que a ação civil pública proporciona, na realidade,
através do julgamento coletivo, não-individualizado, do processo de
conhecimento, é a possibilidade de, no momento seguinte, o consumidor,
valendo-se de forma verdadeiramente livre de sua vontade, pleitear a execução
de seu crédito ou, caso realmente o queira, a ele renunciar. A execução somente
poderá ser promovida pelos autores coletivos, inclusive pelo Ministério
Público, em face de fluid recovery, de quantia não executada por
particulares, que reverterá ao Fundo de Direitos Difusos.
Este
entendimento, acerca da legitimidade do Ministério Público limitada à primeira
fase da efetivação dos interesses individuais homogêneos, é analisada com
perfeição por Teori Albino Zavascki, Juiz do TRF da 4ª Região. Depois de
brilhantemente discorrer acerca da moderna concepção do processo, vinculada à
noção de efetividade, esclarece que
III.5 Não será difícil concluir, de todo o exposto, que a legitimação do
Ministério Público para a defesa de "interesses individuais
homogêneos" dos consumidores e dos investidores no mercado financeiro,
estabelecida nas Leis 6.024/74, 7.913/89 e 8.078/90, é perfeitamente compatível
com a incumbência constitucional de defender os interesses sociais, imposta
pelo art. 127 da Carta de 1988. É de se anotar, mais uma vez, que esta
legitimação, em todos os casos, tem em mira a obtenção de sentença genérica. A
atuação do Ministério Público dá-se em forma de substituição processual e é
pautada pelo trato impessoal e coletivo dos direitos subjetivos lesados. E é
nesta dimensão, e somente nela, que a defesa de tais direitos individuais -
divisíveis e disponíveis - pode ser promovida pelo Ministério Público sem
ofensa à Constituição. Aliás, por esta mesma razão, não há como supor-se
legítima, sob o enfoque constitucional, a atuação do Ministério Público na
execução das sentenças, em benefício individual dos lesados.
Aliás,
a ordem jurídica mundial sempre conviveu com processos coletivos, nas causas de
falências. Há séculos admite-se que, por iniciativa de um único credor, se
tenham alteradas as relações jurídicas de todos os demais para com o devedor
falido. Proferida a sentença decretando a quebra, a liquidação será conduzida
por um Síndico, terceiro alheio às relações jurídicas entre credores e falido.
Diante da experiência histórica da ação falimentar, não deveria causar tanta
perplexidade a ação coletiva. Assim como nenhuma voz se levantou argüindo a
não-recepção do processo falimentar pela novel ordem constitucional, não há
motivos para entender inconstitucional a prerrogativa de o Ministério Público
ajuizar ações civis coletivas.
6. O entendimento jurisprudencial
No
Rio de Janeiro, diversas Câmaras já se debruçaram sobre a questão. Na ampla
maioria dos julgados, especialmente nos mais recentes, têm prevalecido o
entendimento favorável à legitimidade ministerial. Exemplificam esta tendência
majoritária os acórdãos proferidos pela 1ª Câmara Cível, nos autos do agravo de
instrumento nº 014/94 (Ministério Público v. Solange Galdino Bocard e outros,
Rel. Des. Ellis Figueira); pela 2ª Câmara Cível, na apelação nº 3.719/97 (Ministério
Público v. Fator Agência de Viagens e Turismo Ltda., Rel. Des. João Wehbi
Dib), e pela 6ª Câmara Cível, na apelação nº 6.761/96 (Ministério Público.
v. Carvalho Hosken S.A. – Engenharia e Construções, Rel. Des. Pedro
Ligiéro).
Em
08/04/99, a 7ª Câmara Cível, em decisão unânime, excluiu do pólo ativo de ação
civil coletiva destinada à reparação das vítimas do Edifício Palace II o
Ministério Público, que havia proposto a ação, diligenciado a obtenção de
provas, descoberto bens para satisfação da condenação etc.
Em
seu voto, a Relatora Des. Áurea Pimentel assim se manifestou:
Quanto à preliminar de ilegitimidade ativa do Ministério Público para a
propositura da presente ação, argüida com destaque na primeira apelação, com
todas as vênias do douto parecer da Dra. Procuradora de Justiça, na verdade
merece ser acolhida, sem embargo do reconhecimento da utilidade da intervenção
do M.P. no processo para a solução da demanda de tão grandes repercussões
sociais.
Ora,
se o litígio em questão possuía "grandes repercussões sociais", como
negar legitimidade ao órgão constitucionalmente destinado à defesa do interesse
social? Ressalte-se, aliás, que o processo apenas não foi extinto porque se
manteve, no pólo ativo, a Associação das Vítimas do Palace II, entidade com
menos de um ano de fundação quando de seu ingresso na ação. Nos termos do art.
5º, §4º, apenas poderia ser admitida esta Associação recém-fundada se a lide
apresentasse "interesse social". Surge então a perplexidade: existe
interesse social para que a Associação seja admitida, mas não para que o
Ministério Público tenha legitimidade?
Prossegue
a ilustre Desembargadora, linhas adiante:
É certo que o Código de Defesa do Consumidor, no inciso III, do
parágrafo único do artigo 81, assegura a defesa, via a ação coletiva, também daqueles
interesses de direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes
de origem comum.
Ocorre que, para serem tutelados pelo Ministério Público, os direitos
individuais homogêneos têm de ser, também, indisponíveis ante os encêrros do
artigo 127 da Constituição Federal.
Direitos indisponíveis, sabidamente, são aqueles a respeito dos quais
não se pode transigir.
Dos mesmos constituem exemplos: o direito à vida, à saúde e à educação.
Quando em discussão estiverem tais direitos de grande relevância social,
como tais indisponíveis, a legitimação do Ministério Público para a propositura
da ação estará sempre presente como adverte Hugo Nigro Mazzilli em sua obra já
citada, página 117.
Foi na linha de tal entendimento e citado o magistério de Hugo Nigro
Mazzilli que o Egrégio S.T.J. no Recurso Especial nº 108.577 - PI, em hipótese
de ação civil pública, movida pelo Ministério Público, para obstar aumento nas
mensalidades escolares, tidas como abusivas, entendeu justificada a atuação do
Ministério Público, "por se tratar de direito à educação, fundamental à
comunidade e definido pela própria Constituição como direito social"(
Acórdão publicado in Rev. Sup. Trib. Just. nº 99, pg. 224/237, Relator Ministro
Carlos Alberto Menezes Direito).
No caso dos autos, contudo, com todas as vênias do M.P. não se está,
desenganadamente, diante de direitos indisponíveis, embora se reconheça que
sejam os mesmos individuais, homogêneos.
É que, submetidos a discussão estão direitos a respeito dos quais podem
os interessados transigir, o que, aliás, já aconteceu, em relação a diversos
prejudicados que, como é notório, celebram acordo com os réus para o
recebimento de indenizações, em alguns casos, aliás já pagas.
Assim sendo, falecendo ao Ministério Público, à luz do estatuído nos
artigos 127 e 129, III, da Constituição Federal, legitimatio para
propositura da presente ação, pode e deve tal ilegitimatio, nesta fase
processual ser reconhecida.
Aderiu
a Câmara, assim, à tese de que o Ministério Público apenas poderá pugnar por
interesses individuais homogêneos indisponíveis, tese esta que se crê haver
refutado, nos itens anteriores deste estudo. Como é natural, a Relatora, cujo
voto foi acompanhado pelos demais membros do órgão colegiado, não atentou para
os termos do art. 129, IX, nem para as cláusulas restantes do art. 127. Caso o
fizesse, dificilmente teria como sustentar a ilegitimidade do parquet.
Curioso
é observar, contudo, que a preclara Des. Marly Macedônio, que acompanhou o voto
da Des. Áurea Pimentel, um mês antes, exatamente em 09/03/99, havia relatado
acórdão da 12ª Câmara Cível no qual se lavrou:
Merecem destaque e aplausos autores como Ada Pellegrini Grinover,
Cândido Dinamarco, José Carlos Barbosa Moreira e Kazuo Watanabe que muito bem
lecionam as diferenças entre direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos e puramente individuais, destacando, outrossim, a distinção de
direitos disponíveis e indisponíveis. Estes autores, e outros que enfrentam a
matéria, são uníssonos em afirmar e clamar pela necessidade de remover
obstáculos jurídicos representados pela dificuldade de litigar para a defesa de
novos direitos que surgem na sociedade de massa, os denominados interesses
supra-individuais, com vistas a, despidos de preconceitos, abrir-se portas para
o ingresso de novas causas.
Ressalte-se que não é apenas a nova realidade social que reclama causas
coletivas, o judiciário, assoberbado de trabalho, implora a concentração das
ações, que indiretamente reduz o número de demandas.
Assim, não bastasse a Constituição vigente tutelar as ações coletivas
(ação civil pública, ação popular, mandado de segurança coletivo), o Código do
Consumidor ampliar o âmbito de atuação do Ministério Público, prevendo
expressamente a possibilidade de defesa dos direitos individuais homogêneos,
além dos difusos e coletivos, as razões meta-jurídicas, acima expostas, já
seriam suficientes para que toda vez que interesses individuais pudessem ser
coletivamente tratados, fosse reconhecida a possibilidade jurídica de fazê-lo,
na medida em que a satisfação de um implica a satisfação de todos. Desta forma,
estar-se-ia evitando inúmeras demandas e decisões conflitantes que versam a
mesma matéria, permitindo-se que uma única decisão se estenda a todos os
interessados que se encontrem sob a mesma relação jurídica base, sejam eles
indeterminados (interesses difusos) ou determinados (interesses coletivos).
[...]
No que concerne ao último pedido, de que a liquidação da possível
sentença procedente seja promovida por cada vítima e seus sucessores, este sim
seria um interesse individual homogêneo, que também não retira a legitimidade ad
causam do parquet, pois nem todo direito individual homogêneo é
disponível, sendo que, como já salientado acima, na presente o Ministério
Público pretende, apenas, o reconhecimento do dano, para que a posteriori
cada vítima possa buscar judicialmente sua reparação, provando seu prejuízo
individual e o nexo de causalidade entre este e o possível dano coletivo
reconhecido na sentença.
É irrefutável a legitimação dos órgãos do Ministério Público para propor
a presente ação [...]
Quanto
à penetrante síntese da Des. Marly Macedônio, ressalve-se, tão-somente, que não
foi uma peculiaridade daquela específica ação o pedido individual homogêneo
limitar-se à genérica pretensão de reconhecimento do dano: é da essência
da ação civil coletiva que, à condenação genérica, siga-se a habilitação dos
indivíduos lesados, sem o que, em princípio, a execução não reverterá aos
consumidores, procedendo-se ao fluid recovery em favor do Fundo do art.
13 da Lei nº 7.347/85.
Mais
recentemente, em acórdão lapidar da lavra do ilustre Desembargador Ronald
Valladares, a Sexta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
assentou:
É verdade que alguns doutrinadores, e algumas decisões judiciais têm
entendido que o Ministério Público só possui legitimidade para promover a ação
civil pública, quando se for tratar de direitos individuais homogêneos
indisponíveis. Esse modo de pensar, porém, não mostra-se consentâneo com o da maioria
dos juristas que vêm examinando a matéria e decidindo sob a luz de ponto
fundamental, que tem alicerce na Constituição Federal de 1988 e na lei sobre a
Defesa do Consumidor.
Com efeito, as posições que apoiam a tese como a sufragada na
respeitável sentença recorrida refletem uma tendência da corrente considerada
individualista do Direito Processual Civil, que é mais tradicional e não
ajustada ao sentido publicístico da disciplina jurídica enfatizada no vigente
Código de Processo Civil, na Lei 7347/85, e no Código de Defesa do Consumidor,
normas de direito editadas modernamente e de modo coerente com os atuais
reclamos da sociedade.
[...] O que faz o Parquet legitimado a vir a Juízo propor ação do tipo
presente, ou seja, a postular em favor de direitos e interesses individuais
homogêneos, não é propriamente a indisponibilidade do direito, mas sim o
interesse coletivo e a dimensão social do problema que está a exigir solução
judicial equânime. [...]
Também
nos demais Estados da Federação a legitimidade do parquet vem sendo
reconhecida em uma pletora de julgados:
1. A legitimidade do parquet – É preciso, primeiramente, dizer que a
antiga noção que dividia os interesses entre público e privado não mais satisfaz.
O que a clássica doutrina liberal atribuía como mera eficácia moral acabou por
constituir-se em interesses públicos latentes. Daí surgiram diversas
categorias, antes desconhecidas dos operadores do direito no Brasil. Os
interesses coletivos propiciaram uma revolução dentro do direito brasileiro.
Permitiram o desenvolvimento das chamadas class actions. [...] Os
interesses ou direitos dos consumidores, sem dúvida alguma, estão abrangidos
pela cláusula de encerramento contida na parte final do texto [qual seja, do
art. 129, III da Constituição].
Também incumbe ao Ministério Público proteger os interesses individuais,
desde que homogêneos e tratados coletivamente, na forma do inciso III do
parágrafo único do art. 81 do Código.
1 – O Ministério Público tem legitimidade ativa, por mandamento
constitucional, na ação civil coletiva, CF, art. 127 e 129, III, e por lei
própria, Lei Complementar 75/93, art. 6º XXII.
2 – O conceito de interesses individuais homogêneos não pode ser óbice à
atuação ministerial. O posicionamento do magistrado contra a matéria não
significa que o mesmo tenha a discricionariedade de impedir o andamento da
ação, indeferindo a inicial.
3 – O fato de serem identificados os titulares do interesse individual
homogêneo não descaracteriza o direito à substituição processual. Acentua-a. O
juízo de conveniência da ação é do Ministério Público e não do juiz.
É
extremamente coerente o posicionamento acima transcrito. De fato, quando
analisa se intervém ou não na qualidade de custos legis, é o Promotor de
Justiça quem afere se há ou não interesse público a justificá-lo. A Procuradora
de Justiça aposentada e Professora Titular de Direito Civil da UERJ, Heloísa
Helena Barboza, em primoroso trabalho, discorreu acerca da discricionariedade
do Ministério Público na aferição do interesse público que pudesse
acarretar sua intervenção em uma determinada causa. A tese aplica-se
perfeitamente às hipóteses em que o Ministério Público atua como parte.
É
fato que o Poder Judiciário, em regra, reverencia o modo como os demais agentes
políticos integram e interpretam dispositivos vagos ou lacunosos que regulam
suas funções respectivas. Para exemplificar tal assertiva, pode-se trazer à
colação o entendimento do Supremo Tribunal Federal em sede de medidas provisórias:
o Excelso Pretório sempre entendeu que cabia ao Executivo avaliar a relevância
e a urgência da medida (admitindo-se, nos termos da Constituição,
que o Legislativo, quando da análise da medida provisória, controlar
politicamente esta avaliação). Reiteradamente, o Tribunal repisou que não lhe
cabia, salvo hipóteses excepcionais de abuso do poder de legislar (que, afinal,
se desenharam quando da edição da Medida Provisória nº 1577-6/97), desacreditar
a avaliação de relevância e urgência feita pelo Executivo.
De
modo análogo, se o órgão do Ministério Público, agente político dotado de
independência, julga existir interesse público numa determinada ação, deve o
Judiciário, em linha de princípio, acolher a avaliação realizada pelo parquet,
salvante hipóteses excepcionais em que o Magistrado, exercitando seu juízo de
razoabilidade, venha a considerar totalmente absurda a posição ministerial.
Prosseguindo
na exemplificação de jurisprudência favorável à legitimidade do parquet,
vale registrar o seguinte julgado, oriundo do Egrégio Tribunal de Justiça do
Distrito Federal e Territórios. Similarmente ao caso do Palace II, a espécie
cuidava de reparação coletiva por lesões perpetradas por construtores de
imóveis. A conclusão, no entanto, contrapôs-se àquela a que chegaram os
desembargadores fluminenses:
1. Edifício residencial condenado ao desabamento, por defeito na
construção, é fato socialmente relevante que legitima o Ministério Público à
propositura de ação civil pública contra os construtores para defesa de
interesses individuais homogêneos.
2. A sentença, na ação civil pública, não impõe aos beneficiários
direitos que não queiram exercer; apenas reconhece a existência do dano e o
dever de indenizar, respeitando a vontade individual quanto à iniciativa de executá-la.
Vistos
alguns exemplos colhidos da produção jurisprudencial dos tribunais estaduais,
cumpre analisar o entendimento das cortes superiores.
Embora
sua jurisprudência, até pouco tempo, se pautasse por uma certa vacilação, hoje
em dia o Egrégio Superior Tribunal de Justiça tem-se posicionado reiteradamente
em favor da legitimidade do Ministério Público:
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA DEFESA DE INTERESSES E
DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. TAXA DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. POSSIBILIDADE.
A Lei nº 7.345, de 1985, é de natureza essencialmente processual,
limitando-se a disciplinar o procedimento da ação coletiva e não se entremostra
incompatível com qualquer norma inserida no Título III do Código de Defesa do
Consumidor (Lei nº 8.078/90).
É princípio de hermenêutica que, quando uma lei faz remissão a
dispositivos de outra lei de mesma hierarquia, estes se incluem na compreensão
daquela, passando a constituir parte integrante de seu contexto.
O artigo 21 da Lei nº 7.347, de 1985 (inserido pelo art. 117 da Lei nº
8.078/90) estendeu, de forma expressa, o alcance da ação civil pública à defesa
dos interesses e "direitos individuais homogêneos", legitimando o
Ministério Público, extraordinariamente e como substituto processual, para exercitá-lo
(artigo 81, parágrafo único, III, da Lei nº 8.078/90).
Os interesses individuais, "in casu" (suspensão do indevido
pagamento de taxa de iluminação pública), embora pertinentes a pessoas
naturais, se visualizados em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcendem
a esfera de interesses puramente individuais e passam a constituir interesses
da coletividade como um todo, impondo-se a proteção por via de um instrumento
processual único e de eficácia imediata - "a ação coletiva".
O incabimento de ação direta de inconstitucionalidade, eis que, as leis
municipais nºs 25/77 e 272/85 são anteriores à Constituição do Estado,
justifica, também, o uso da ação civil pública, para evitar as inumeráveis
demandas judiciais (economia processual) e evitar decisões incongruentes sobre
idênticas questões jurídicas.
Recurso conhecido e provido para afastar a inadequação, no caso, da ação
civil pública e determinar a baixa dos autos ao Tribunal de origem para o
julgamento do mérito da causa. Decisão unânime".
Na
mesma direção, o entendimento da Quarta Turma, em acórdãos que tiveram por
Relator o eminente Min. Sálvio Teixeira:
1. Sob o enfoque de uma interpretação teleológica, tem o Ministério
Público, em sua destinação institucional, legitimidade ativa, uma vez caracterizados
na espécie o interesse coletivo e a relevância social;
2. Na sociedade contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos
de uma nova atmosfera cultural, o processo civil vinculado estreitamente aos
princípios constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério
Público uma instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania.
Como já assinalado anteriormente (REsp 34.155-MG), na sociedade
contemporânea, marcadamente de massa, e sob os influxos de uma nova atmosfera
cultural, o processo civil, vinculado estritamente aos princípios
constitucionais e dando-lhes efetividade, encontra no Ministério Público uma
instituição de extraordinário valor na defesa da cidadania.
Direitos (ou interesses) difusos e coletivos se caracterizam como
direitos transindividuais, de natureza indivisível. Os primeiros dizem respeito
a pessoas indeterminadas que se encontram ligadas por circunstâncias de fato;
os segundos, a um grupo de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária
através de uma única relação jurídica.
Direitos individuais homogêneos são aqueles que têm a mesma origem no
tocante aos fatos geradores de tais direitos, origem idêntica essa que
recomenda a defesa de todos a um só tempo.
Compreensão
semelhante esposou o douto Min. Ruy Rosado de Aguiar, em lapidar acórdão:
São interesses metaindividuais, que não são nem públicos nem privados,
mas interesses sociais, como ensina a douta Profª Ada Pellegrini Grinover:
"São interesses de massa, de configuração coletiva, caracterizados por uma
coflituosidade, também de massa, que não se coloca no clássico contraste
indivíduo versus indivíduo, nem indivíduo versus autoridade, mas que é típica
das escolhas políticas" ... "Novos grupos, novas categorias, novas
classes de indivíduos, conscientes de sua comunhão de interesses, de suas
necessidades e de sua fraqueza individual, unem-se contra as tiranias da nossa
época, que não é mais exclusivamente a tirania dos governantes: a opressão das
maiorias, os interesses dos grandes grupos econômicos, a indiferença dos
poluidores, a inércia, a incompetência ou a corrupção dos burocratas. E
multiplicam-se as associações dos consumidores, defesa da ecologia, de amigos
de bairros, de pequenos investidores" ("A ação civil pública e a
defesa dos interesses individuais homogêneos, Dir. do Consumidor, nº 5/206).
Enquanto essas associações não se organizarem, enquanto não se fortalece a
consciência da cidadania, como recomenda a ilustrada mestra, oficia
subsidiariamente o Ministério Público como titular das ações coletivas. Cortar
a possibilidade de sua atuação, na fase em que vive a nossa sociedade, será
cercear o normal desenvolvimento dessa tendência de defesa de interesses
metaindividuais e impedir, através da negativa de acesso à Justiça, o reiterado
objetivo das modernas leis elaboradas no país.
A aversão a estes novos instrumentos processuais, que surgiram
exatamente para atender a novas expectativas e necessidades sociais, mantém-nos
sempre presos ao modelo clássico da ação individual, como se só houvesse o
interesse individual. Lembro, a propósito, as palavras do eminente Professor
José Carlos Barbosa Moreira, no encerramento de sua aula inaugural na
Universidade do Rio de Janeiro: "A filosofia do egoísmo, que impregnou a
atmosfera cultural dos últimos tempos, não concebe que alguém se possa deixar
mover por outra força que o interesse pessoal. Nem faltou quem ousasse enxergar
aí a regra de ouro: a melhor maneira de colaborar na promoção do bem comum
consistiria, para cada indivíduo, em cuidar exclusivamente de seus próprios
interesses. O compreensível entusiasmo com que se acolheu há dois séculos e se
cultua até hoje, em determinados círculos, essa lição de Adam Smith explica o
malogro da sociedade moderna em preservar de modo satisfatório bens e valores que,
por não pertencerem individualmente a quem quer que seja, nem sempre se vêem
bem representados e ponderados ao longo do processo decisório
político-administrativo, em geral mais sensível à influência de outros
fatores." ("A Tutela dos Interesses Difusos", p. 105).
Tratando de caso assemelhado aos dos autos, escreveu o Prof. Nelson Nery
Jr.: "O direito perseguido pelo Ministério Público nesse caso do AI nº
127.154-1, aqui analisado, poderia ser considerado coletivo, em face da relação
jurídica base que existe entre uma das partes (grupo mantenedor da escola) e
alunos e seus pais. Mas não é só. O direito seria coletivo porque os alunos e
seus pais, embora indeterminados, não são indetermináveis, porquanto serão
sempre determináveis, na medida em que se tiver o controle do quadro completo
do alunado ou em que se puder dimensionar o universo desses consumidores,
quantificando-os e qualificando-os" (Cód. Bras. de Defesa do
Consumidor", p. 622).
Registro que este Tribunal já examinou a mesma questão em julgados anteriores,
inclinando-se pela ilegitimidade (Resp 37.171 e 35.644, relator em. Min. Garcia
Vieira; REsp 47.019, rel. em Min. César Rocha). Parece-me, data venia, melhor a
corrente contrária.
Isto posto, conheço do recurso, pela alínea 'a', e lhe dou provimento,
para afastar a preliminar de ilegitimidade do Ministério Público,
desconstituídos acórdão e sentença, para que outra seja proferida.
Recentemente,
em 06/05/99, em Recurso Especial interposto pelo Ministério Público deste
Estado (REsp 168.859-RJ), o Min. Ruy Rosado de Aguiar relatou acórdão
reconhecendo a legitimidade do parquet para propor ação civil pública
contra empresa de engenharia que, em seu contrato de adesão para aquisição de
imóveis, estipulava cláusulas para correção monetária que desrespeitavam a
legislação do Plano Real, impondo o pagamento de resíduo inflacionário.
Em
seu voto, o eminente Ministro ressalta que a 3ª e a 4ª Turmas do Superior
Tribunal de Justiça, que integram sua Seção de Direito Privado, "têm se
inclinado por aceitar a legitimidade do Ministério Público para promover a ação
coletiva de defesa de direitos individuais homogêneos, quando configurado
interesse público relevante". Do aresto em tela – em que o universo de
beneficiários nem era tão grande, e onde os direitos em jogo eram fracamente
disponíveis -, conclui-se que a compreensão do STJ acerca da relevância
social é bem mais elástica do que aquela admitida pelos doutrinadores
avessos à legitimidade ministerial.
Resta
abordar, por fim, a produção jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal. Em
acórdão unânime da 2ª Turma, da lavra do Min. Maurício Corrêa, a Corte
posicionou-se claramente em favor da legitimidade do Ministério Público para
tutela dos interesses individuais homogêneos, compreendidos como consectários
lógicos dos interesses coletivos:
O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 81, inciso III, considera
os chamados interesses ou direitos individuais homogêneos assim entendidos os
decorrentes de origem comum. A mensalidade escolar se constitui em interesse
nitidamente homogêneo porquanto nasce de uma mesma origem e é aplicada a todos
os usuários da escola. Como os interesses individuais homogêneos são uma
subespécie dos interesses coletivos, o Ministério Público com amparo no art.
129, II da Constituição Federal de 1988 tem legítima capacidade postulatória
ativa para propor a ação civil pública, na defesa de um grupo lesado pela
estipulação abusiva de anuidades escolares.
27. Evidencia-se, quantum satis, que os interesses defendidos
neste recurso são nitidamente homogêneos porquanto nascidos de uma mesma
origem, ou seja, mensalidades escolares cobradas abusivamente, com um
mesmo índice de aumento, aplicado a todos os usuários da escola; por
conseguinte homogêneos, porque na verdade todos da mesma natureza;
e como homogêneos são também uma subespécie de interesses coletivos,
como antes abordei, legítima é a capacidade postulatória do recorrente.
28. Ao mencionar a norma do art. 129, III, da CF, que o MP está
credenciado para propor a ação civil pública, relacionada a "outros
interesses difusos e coletivos", outorgou-se-lhe a prerrogativa para agir
na defesa de um grupo lesado com a ilegalidade praticada. Não se trata de
intromissão da iniciativa ministerial na área específica reservada à atuação de
advogados, senão a de defender, em nome coletivo, pessoas vítimas de
arbitrariedade praticada com aumento abusivo de mensalidades escolares. Dentre
os atingidos, muitos dos pais não teriam condições de arcar com despesas
judiciais e honorários, como é o caso daqueles que procuraram o MP indignados e
revoltados com o aumento perpetrado; e por mal terem condições de pagar os
estudos de seus filhos, não possuíam condições de suportar despesas extras.
Ademais, estava o Parquet mais do que impelido a promover a ação, pelo
dever de ofício, quanto mais quando se trata de interesses que se elevam à
categoria de bens ligados à educação, amparados, como se sabe, constitucionalmente,
como dever do Estado e obrigação de todos (CF, art. 205).
Alguns
doutrinadores que cuidam da questão da legitimidade do Ministério Público nas
ações civis coletivas, conforme já visto, restringem-na às hipóteses de
prestações vinculadas, ainda que indiretamente, a direitos sociais fundamentais
tais como a educação, a saúde etc. Análise perfunctória do acórdão em tela
poderia, assim, levar à conclusão apressada de que o Excelso Pretório se
posicionou favoravelmente à legitimidade, in casu, exclusivamente por
cuidar-se de mensalidades escolares.
Leitura
mais acurada, todavia, permite constatar que em nenhum momento se cogitou da indisponibilidade
do direito como requisito para a legitimidade do Ministério Público. Ela
decorre, diretamente, do preceito insculpido no art. 129, III da Constituição.
Este, ao cometer ao Ministério Público, sem ressalvas, a tutela dos interesses
difusos e coletivos, por via de conseqüência atribuiu, também, a persecução dos
interesses individuais homogêneos. Tal legitimidade, conforme bem salientou o
eminente Ministro Relator, resulta ainda mais incontestável quando se está
diante de um fato de inegável repercussão social. De qualquer sorte, ainda
assim não haveria que se falar, tecnicamente, em indisponibilidade.
Saliente-se
que a Primeira Turma deste Egrégio Pretório, em acórdão da lavra do eminente
Min. Ilmar Galvão (RE-190976/SP), invocou as mesmas razões de decidir expostas
pelo Min. Maurício Corrêa para fundamentar sua posição, favorável à
legitimidade ministerial.
7. A legitimidade em sede de interesses de contribuintes
Atualmente,
a defesa do contribuinte é o campo em que se verifica o maior dissenso no que
toca à legitimidade do Ministério Público. Isto porque a Lei nº 7.347/85, ao
listar os direitos perseqüíveis por intermédio de ação civil pública, cuida
expressamente da tutela do consumidor (inciso II), mas deixa de mencionar a
defesa do contribuinte. Invoca-se, diante disto, o inciso IV – regra residual
que alude à defesa de "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" –
como fundamento legal para a proteção molecular deste último grupo. Ocorre,
porém, que o referido inciso, caso fosse interpretado de modo puramente
literal, não ampararia os direitos individuais homogêneos dos
contribuintes, mas só os interesses difusos e coletivos.
Dividem-se
assim, tanto a doutrina quanto os tribunais, em duas correntes: a dos que,
sensíveis ao espírito da nova processualística, procuram estender a ação civil
coletiva aos direitos de contribuintes, e a dos que, mais apegados à letra da
lei, consideram-na descabida.
Curiosa
é a jurisprudência das Turmas que integram a Seção de Direito Público do
Superior Tribunal de Justiça. Nos autos do Recurso Especial nº 168.415, a 1ª
Turma proferiu acórdão assentando que "o Ministério Público não tem
legitimidade para promover a ação civil pública na defesa de contribuintes do
IPTU, que não são considerados consumidores". Causa espécie, porém, que o
referido julgado tenha sido deliberado de forma unânime, quando, pouco tempo
antes, três dos cinco Ministros que compunham a Turma manifestaram, na condição
de relatores de outros recursos (todos julgados unanimemente, frise-se),
entendimento diametralmente oposto.
No
Recurso Especial nº 0109013/MG/96, julgado em agosto de 1997, o eminente Min.
Humberto Gomes de Barros asseverou que "o Ministério Público está
legitimado para o exercício de ação civil pública, no objetivo de proibir
cobrança de taxa ilegal".
O
douto Min. Demócrito Reinaldo, por sua vez, foi relator do julgado proferido
nos autos do Recurso Especial nº 49272/RS/94, cuja ementa foi reproduzida
linhas acima.
Por
fim, o Min. José Delgado, menos de seis meses antes de votar contrariamente à
legitimidade do Ministério Público, cerrava fileiras com a tese defendida neste
trabalho, em magistral acórdão cuja ementa ora se transcreve:
Processual Civil. Ministério Público. Legitimidade. Ação Coletiva. Taxa
de Iluminação.
1 - Conforme disposto na Constituição de 1988, a atuação do Ministério
Público foi ampliada para abranger a sua legitimidade no sentido de promover
ação civil pública para proteger interesses coletivos. Não há mais ambiente
jurídico para se aplicar, em tal campo, a restrição imposta pelo art. 1º da Lei
nº 7.347/85.
2 - Em se tratando de pretensão de uma coletividade que se insurge para
não pagar taxa de iluminação pública, por entendê-la indevida, não há que se
negar a legitimidade do Ministério Público para, por via de ação civil pública,
atuar como sujeito ativo da demanda. Há situações em que, muito embora os
interesses sejam pertinentes a pessoas identificadas, eles, contudo, pelas
características de universalidade que possuem, atingindo a vários estamentos
sociais, transcendem a esfera individual e passam a ser interesse da
coletividade.
3 - O direito processual civil moderno, ao agasalhar a ação civil
pública, visou contribuir para o aceleramento da entrega da prestação
jurisdicional, permitindo que, por via de uma só ação, muitos interesses de
igual categoria sejam solucionados, pela atuação do Ministério Público.
4 - Agravo regimental improvido.
Difícil
se afigura imaginar o que poderia ter causado tal alteração de entendimento.
Uma coisa é certa: do trecho acima transcrito, pode-se afirmar, sem sombra de
dúvidas, que os Ministros conheciam a fundo o problema versado, o que salta aos
olhos da cuidadosa fundamentação. Afasta-se, destarte, a possível precipitação
nas deliberações anteriores, supostamente corrigidas através do acórdão mais
recente, desfavorável ao Ministério Público.
Recentemente,
a 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou julgado,
proferido pela 4ª Vara Cível da Comarca de Niterói, em que se declarava a
nulidade de reajustes ilegais de IPTU, rechaçando a tese da ilegitimidade
ministerial. No acórdão, manteve-se a condenação do Réu à restituição dos
valores cobrados a maior, enquanto vigeu o reajuste nulificado.
No
que pertine ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, aliás,
verifica-se a existência de um argumento adicional favorável à sua legitimidade
em sede de direitos de contribuintes. A Lei nº 8.625/93, além de listar certas
atribuições do parquet, expressamente incorpora as "funções
previstas nas Constituições Federal e Estadual". Ora, a Constituição do
Estado do Rio de Janeiro, em seu art. 170, III, consagra à instituição o munus
de
III – promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente, do consumidor, do
contribuinte, dos grupos socialmente discriminados e de qualquer outro
interesse difuso ou coletivo.
Torna-se,
destarte, estreme de dúvidas a legitimidade do Ministério Público do Estado do
Rio de Janeiro para a propositura de ação civil coletiva referente a interesses
de contribuintes.
8. Conclusão
Duas linhas forças podem ser identificadas como resultado dos esforços
pela transformação do processo individualista, cunhado para acudir os conflitos
de interesses individuais, num processo social, adequado à sociedade
contemporânea. De um lado, o processo desperta para a necessidade de assegurar
a tutela jurisdicional a conflitos de interesses que por sua dimensão
metaindividual mal se acomodariam no quadro dos esquemas processuais clássicos.
De outro, busca imprimir ao próprio tratamento dos conflitos interindividuais
feição mais consentânea com certas exigências básicas do Estado Social de
Direito, facilitando o acesso à justiça, independentemente de desníveis
culturais, sociais e econômicos, de modo a tornar operativo o princípio do
plano substancial. As duas vertentes conduzem ao rumo da universalidade da
tutela jurisdicional.
Ao
longo desta exposição, procurou-se demonstrar a fragilidade da tese segundo a
qual a legitimidade do parquet para o ajuizamento de ação civil coletiva
depende da indisponibilidade do direito versado. Expôs-se, inicialmente, que a
titularidade do Ministério Público fulcra-se no art. 129, IX do Texto Maior,
que admite o cometimento de outras funções ao parquet, em combinação com
as cláusulas da defesa da ordem jurídica e do interesse social, estampadas no
art. 127 da Constituição como finalidades da instituição. Demonstrou-se que os
direitos salvaguardados através da ação civil coletiva - que uma vez tratados
individualmente serão sempre disponíveis -, tornam-se indisponíveis justamente
por força de sua tutela molecular, já que a lei veda a desistência da ação pelo
órgão ministerial.
Consoante
a doutrina mais avançada, quando a Constituição, em seu art. 5º, XXXV, enuncia
o princípio da inafastabilidade - "a lei não excluirá da apreciação do
Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" -, está traçando não apenas
uma regra negativa - a de que a legislador não pode, através de um ato
normativo, excluir certo litígio da apreciação da Justiça -, mas também uma
regra positiva: o legislador está obrigado a estabelecer
procedimentos destinados a assegurar eficientemente todos os direitos. Por
ausência de instrumento processual, um direito material não pode ser
simplesmente convertido em letra-morta. Este princípio fundamental da
inafastabilidade, que se aplica diretamente ao legislador, deve também orientar
a aplicação da lei, de tal forma que o intérprete privilegie sempre a exegese
que caminhe ao encontro deste postulado.
A
interpretação restritiva dos poderes do parquet poderia ter cabida em
outras épocas, quando sua atuação era eminentemente repressora; atualmente, a
atuação da instituição na implementação dos direitos transindividuais, dado seu
conteúdo promocional da liberdade e da dignidade dos cidadãos, deve ser
compreendida de modo diverso, e interpretadas extensivamente as normas que a
regulam. Reza a hermenêutica clássica que se deve restringir o odioso, e isto
parece haver influído decisivamente na forma como são compreendidos os poderes
do parquet. A função promocional do Ministério Público, entretanto, não
possui tal componente, e deve ser enxergada sob prisma diverso. A Constituição
- e isto não pode escapar ao aplicador - pretendeu alargar o espectro de
funções do Ministério Público na área cível; quando enumera princípios, funções
e finalidades institucionais, não o faz com o intuito de ser taxativa ou
restritiva, mas sim com o propósito de exemplificar e incentivar as diversas
vertentes de atuação institucional no contexto da nova ordem democrática.
Note-se a incoerência: houvesse a Constituição simplesmente silenciado acerca
do Ministério Público, e não haveria espaço para a contestação de sua
legitimidade; como os constituintes resolveram prestigiar a instituição,
outorgando-lhe uma série de finalidades socialmente relevantes, pretendem alguns
pinçar expressões isoladas desta regulação para criar obstáculos à consecução
dos fins evidenciados ao longo do Texto Maior. Data venia, invocar-se a
cláusula da defesa dos interesses individuais indisponíveis para limitar
a atuação do parquet em outras áreas é uma clara usurpação.
A
tutela coletiva - necessidade que o justamente admirado mestre Barbosa Moreira
já enfatizava, com sua pena elegante, há mais de quinze anos – periga
transformar-se em discurso vazio devido à compreensão estreita das funções institucionais
do Ministério Público. Ao profissional do direito que se sensibiliza com esta
questão, tanto o conformismo de capitular ante a tese aparentemente mais cômoda
quanto o puro e simples ativismo de advogar a tese da legitimidade
através de um manifesto panfletário vazio de argumentos jurídicos afiguram-se
posturas igualmente impróprias. Conforme salientou Luís Roberto Barroso em
passagem lapidar, "ao jurista cabe formular estruturas lógicas e prover
mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas".
Com
o estudo que ora se conclui, pretende-se haver contribuído, através da
sistematização de antigos e novos argumentos jurídicos, para a solução de um
importante obstáculo ao almejado acesso à justiça.
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Retirado de: http://www.amperj.org.br/associados/dalla/artigo37.htm