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ESCOLA DA MAGISTRATURA

DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

 E M E R J

 

SIMPÓSIO DE PROCESSO CIVIL

 

28/09/2001

 

“Ações de Classe. Direito Comparado e Aspectos Processuais Relevantes”

 

Expositor: Dr. Humberto Dalla Bernardino de Pinho

 

 

É um prazer, mais uma vez, retornar à Escola da Magistratura. Agradeço a todos, na pessoa do seu Diretor, Des. Sérgio Cavalieri Filho.

Estou aqui hoje substituindo, ou tentando substituir, o Prof. Luiz Fux, que se encontra em Brasília, cumprindo um compromisso. É um enorme prazer poder, ou tentar, substituir o Prof. Luiz Fux. É impossível conversar sobre o tema de uma maneira clara e tão profunda como ele costuma fazer. Contudo, tentarei, de alguma forma, não desapontá-los muito. O tema que nos cabe nesse nosso encontro é “A ação de classe no Direito Norte-Americano”, a chamada class action.

Esse tema começou a despertar muito interesse no Direito brasileiro no final da década de 80, no começo da década de 90, contudo tínhamos ainda estudos muitos incipientes sobre a matéria. O primeiro autor que se debruçou sobre o tema, que efetivamente trabalhou e estudou a fundo a matéria, foi o Prof. José Rogério Cruz e Tucci, que tem um livro clássico sobre a matéria, chamado “Class Action em Mandado de Segurança Coletivo”, editado pela Saraiva no ano de 1990.

Após o trabalho do Professor José Rogério, tivemos alguns artigos isolados em doutrina. Temos um artigo do Prof. Cássio Scarpinela Bueno, que está publicado na Revista de Processo. Temos um artigo recente, da autora Ada Pellegrini Grinover, sobre a Class Action for Damages, que seria uma ação de classe indenizatória típica do Direito norte-americano e que influenciou a nossa ação coletiva no Direito brasileiro.

No começo do ano passado, o Prof. Luiz Paulo, que é juiz federal e professor da UERJ, lançou um livro sobre “Ações de Classe”.

Sendo assim, a doutrina foi, então, se preocupando mais com a matéria.

O que conhecemos como ação civil pública, é regulado pela Lei 7347 de 1985, ou seja, um instituto que conhecemos somente há dezesseis anos, o Direito norte-americano já o conhece desde 1820. Desde o século anterior, já se notava uma preocupação no Direito americano, que herdou essa preocupação do Direito inglês.

A primeira disposição que se encontra (e que é referência histórica) seria o bill of peace, datado do século XVII, na Inglaterra, onde já encontramos uma menção às expressões relator action e representative action, que seriam ações nas quais em um dos pólos da relação processual há um número de litigantes muito elevado. Seria como uma concepção embrionária do litisconsórcio como conhecemos hoje na forma do artigo 46 do Código de Processo Civil. Contudo, há entre os integrantes desse pólo uma homogeneidade, uma relação muito íntima do direito de cada um deles.

A legislação evolui em 1820, como disse, surgindo o primeiro precedente em Rhode Island, nos Estados Unidos. Uma ação em princípio, que parecia ser individual, e que acabou refletindo no interesse de todos os habitantes de Rhode Island. Um dos juízes relatou o fato pela primeira vez em uma decisão, e esse é considerado o leading case, o precedente, pelo menos na esfera do common law, onde pela primeira vez se menciona a necessidade ou utilidade de uma ação de classe. Entretanto, até então, só existia uma manifestação na jurisprudência, não havendo ainda lei sobre o assunto.  A primeira lei que tivemos sobre a matéria, em 1845, foi editada nos Estados Unidos, é chamada “Rule 48”. Enquanto nos referimos a artigos e a leis, eles se referem a rules, cuja tradução seria regras. A regra quarenta e oito, data de 1845, sofre uma modificação em 1912, sendo rebatizada como regra 38. E, finalmente, em 1938, é editado o Código de Processo Civil Americano, chamado Federal Rules of Civil Procedure, que teve sua concepção embrionária em 1938 e recebe uma reforma, sendo finalmente modificado em 1966 e manteve a sua redação até hoje.

O Direito Brasileiro tenta, de alguma forma, obter os mesmos parâmetros do Direito norte-americano no que se refere à legitimidade e ao processamento das ações coletivas. É óbvio que é impossível traçar uma linha de comparação retilínea, porque de um lado existe um sistema de common law e de outro de civil law; em outras palavras, qualquer problema que surja no exame daquela ação coletiva, qualquer questão procedimental que não esteja prevista em lei, o juiz simplesmente resolve aquela matéria e com aquele precedente cria uma norma; isso é o commom law. O juiz brasileiro não tem esse poder, não tem essa autorização legal, porque vivemos no sistema do civil law, o sistema romano-germânico, onde o juiz tem a sua atuação balizada, muitas vezes excessivamente balizada, pelo texto legal.

O Direito norte-americano cria algumas teorias para explicar a razão de ser, a necessidade de uma ação coletiva; fala-se em teoria da comunhão de interesses, em teoria do consentimento e em teoria substantiva. A primeira teoria, que é a da comunhão de interesses, dizia que uma ação de classe é justificada na medida em que você tem um grupo de pessoas com um interesse em comum. A segunda teoria, que é chamada a do consentimento, desloca o eixo dessa ação de classe do interesse e o recoloca no eixo do consentimento. Para que eu tenha uma ação de classe, dizem esses teóricos, basta que eu tenha um grupo de pessoas que autorizem um único representante, uma única entidade a ir a juízo postular e defender os seus interesses. Nenhuma das duas teorias é satisfatória, razão pela qual hoje na doutrina americana elas estão abandonadas e segue-se a terceira teoria, que é a substantiva. A teoria substantiva procura fugir dessa controvérsia toda, ou seja, saber se o pólo está no interesse ou está no consentimento. Ela é uma teoria extremamente franca. Ela entende que o ideal é que não se precisasse ter uma ação coletiva, contudo há determinados casos em que ou adota-se a ação coletiva ou o Poder Judiciário submergirá numa enorme quantidade de processos. A teoria substantiva prega, portanto, que a ação coletiva é uma manifestação do movimento de acesso à Justiça sempre que a prestação da jurisdição estiver inviabilizada pelo elevado número de ações individuais que seriam propostas.

Seguindo os ditames desta teoria, temos, na regra 23, uma série de incisos, de alíneas, que regulamenta esse procedimento, ou seja, como se deve dar a atuação do Poder Judiciário. A primeira questão que me chama a atenção no Direito norte-americano é a da certificação da classe. Na regra 23, existem requisitos para a admissibilidade de uma ação coletiva e existem requisitos para a manutenção dessa ação coletiva. O direito brasileiro conhece uma forma de controle um pouco diversa. Aqui falamos em condições da ação ou, sendo mais técnico, condições para regular o exercício do direito de ação. É por isso que encontramos com bastante freqüência despacho ou decisões dizendo que a petição inicial será indeferida ou que o processo será extinto sem julgamento do mérito, pois se entende que o Ministério Público é parte ilegítima para o ajuizamento dessa demanda ou, ainda, que a petição será indeferida porque se entende que essa associação de classe não guarda uma relação de pertinência temática com o objetivo daquela ação civil pública (legitimidade e interesse), basicamente as duas formas que o juiz brasileiro tem para controlar aquela representação adequada.

No direito norte-americano utiliza-se conceito um pouco diverso. O juiz, ao receber a petição inicial, examinará se aquilo que está sendo postulado representa realmente o interesse de uma classe. Se ele achar que o que está escrito naquela petição inicial é verdadeiramente a tradução de interesse de uma classe, ele emite um certificado de classe, que eqüivaleria, no direito brasileiro, ao nosso despacho liminar de conteúdo positivo, como se o juiz recebesse aquela petição inicial e entendesse que, ao menos, em um primeiro momento, examinando aquela matéria no plano das asserções, estão presentes os requisitos mínimos para a constituição e para o regular desenvolvimento daquela relação processual.

Então como isso se dá na prática? Como o juiz emitirá esse certificado da classe? Diz a legislação norte-americana, o juiz se orientará por dois princípios básicos: primeiramente, precisa definir quantas pessoas compõem essa classe. E o direito norte-americano diz que é preciso que esse número seja bastante elevado; que o juiz se convença de que é mais razoável, de que é mais interessante, (por critérios de conveniência e oportunidade) que a prestação jurisdicional seja efetivada de forma mais adequada por intermédio de uma ação coletiva que por uma ação individual. E aí, certamente, você pode perguntar: Existe um número mágico para isso?Cem, duzentas, mil, quinhentas, cinqüenta, mil pessoas ?

Qual é o número a partir do qual o juiz vai entender que se configura uma classe e vai emitir o certificado dessa classe? Não existe esse número. E esse dilema, essa questão complicada existe no direito brasileiro também. O artigo 81, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor quando define as espécies de direito meta-individual, (direito difuso, direito coletivo, direito individual homogêneo) em nenhum momento, (aliás nem o Código de Defesa do Consumidor, nem a Lei da Ação Civil Pública) diz qual o número que fixará, ensejará, o cabimento de uma ação coletiva. Em duas oportunidades - uma no Superior Tribunal de Justiça e outra no Tribunal de Justiça de Minas Gerais - essa questão já foi discutida. E, nas duas oportunidades, o Tribunal entendeu que, se esse número não for suficientemente elevado, não haveria um direito transindividual, um direito coletivo. Também não seria um interesse individual, alguns julgadores entenderam por bem criar uma classificação intermediária, uma classificação mediana entre o interesse individual e o interesse coletivo. É o que eles chamam de interesse plúrimo. O interesse plúrimo nada mais é do que um litisconsórcio.

E como diferenciar na prática um litisconsórcio multitudinário de uma ação coletiva? Então darei o seguinte exemplo: quinhentas pessoas sofreram um acidente de consumo. Essas quinhentas pessoas têm, em tese, direito a uma indenização por danos patrimoniais e, eventualmente, por danos morais. Essas quinhentas pessoas resolvem ingressar em litisconsórcio facultativo ativo, em uma mesma demanda ou, ao invés disso, essas quinhentas pessoas procuram alguém que tenha uma representação adequada e pede que essas pessoas ajuízem a ação para elas.

Qual seria a diferença, na prática, no direito brasileiro entre um simples litisconsórcio multitudinário e uma ação coletiva? À primeira vista, pode parecer que não há diferença alguma, pode parecer que havendo uma quantidade exagerada se estaria diante de um litisconsórcio. Até porque, basicamente, o fundamento do litisconsórcio é o mesmo da ação coletiva - tem que haver uma comunhão de interesses.

O artigo 46 do Código de Processo Civil, que trata do litisconsórcio, a todo momento fala, com diversas palavras, que o pressuposto básico do litisconsórcio é a comunhão de interesses. E todos os doutrinadores, que se debruçam sobre a lei da ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor, também falam que para que haja uma ação coletiva, uma ação de classe é preciso que entre os interessados haja uma comunhão de interesses. Qual é então a diferença? A diferença reside na relevância social daquele direito, na relevância social da prestação jurisdicional. Quando há um litisconsórcio, há uma simples e mera soma de interesses individuais. Quando se está diante de uma pretensão coletiva, quando se provoca a jurisdição coletiva, há não só a soma de interesses individuais, mas também um plus especializante. Essa soma de interesses individuais assume uma relevância social, uma relevância coletiva. É por isso que se discute, hoje, muitas vezes, se o direito é ou não disponível. Se é disponível, o Ministério Público não pode ir a juízo tutelá-lo. Mas se o interesse é indisponível, o Ministério Público tem autorização para ir a juízo tutelar esse direito.

O que é disponível ou indisponível?Quem pode me dizer um artigo da legislação brasileira, quer esteja no Código, quer esteja em uma legislação extravagante, que defina direito disponível e direito indisponível? Ninguém encontrará a definição disso. A doutrina, caso a caso, vem dizendo o direito que é disponível ou indisponível. E, por vezes o mesmo direito é disponível e indisponível, dependendo do referencial de exame. Como isso ocorre? Por exemplo: o direito a alimentos, para quem está prestando, é disponível; para quem está recebendo, é indisponível.

Guardadas as devidas proporções, faço a mesma comparação com a ação coletiva. Por exemplo: o direito das pessoas que fizeram parte de um consórcio é um direito disponível. A subsistência deles não depende de vencer ou perder aquela ação. Se você considerar cada direito individualmente, ele é indisponível. Mas se considera que a soma daqueles direitos provocou um impacto na sociedade, provocou um sentimento de insegurança e desconfiança, parece-me que isso indisfarçavelmente adquire uma natureza indisponível.

Então, dizer que um direito é disponível ou indisponível é, pelo menos em um primeiro momento, definir qual a premissa que está sendo utilizada, ou melhor dizendo, qual o referencial que está sendo usado. Se você está partindo de um referencial meramente individual ou se está partindo de um referencial coletivo, de um referencial social.

Mas, voltando ao Direito norte-americano, na regra vinte e três, alínea “a”, encontramos os requisitos que são utilizados para a formação, para a admissibilidade de uma ação de classe. Ao invés de ler o dispositivo em inglês, vou ler a tradução que o Professor José Rogério Cruz e Tucci faz desse dispositivo:

São quatro requisitos apresentados pela legislação americana:

Então dispõe o artigo 23, alínea “a” do Federal Rules:

“Um ou mais membros da classe podem demandar ou serem demandados como representantes no interesse de todos.

Requisitos:

1º– a categoria for tão numerosa que a união de todos os demandados, como representantes, se torne impraticável.

2º – quando houver questões de direito e de fato comuns ao grupo.

3º - quando os pedidos ou defesa dos litigantes forem idênticos aos pedidos ou defesas da própria classe.

4º - quando os litigantes atuarem ou protegerem adequadamente os interesses da classe”.

O legislador americano se fixa muito na comunhão de interesses e na representação adequada. A comunhão de interesses é o segundo elemento que define a postura do juiz, como dissemos anteriormente. Assim sendo, é preciso ter um número de interessados muito grande, eles têm que guardar entre si uma relação de pertinência, uma comunhão de interesses e, além disso, aquele que for escolhido para representar o interesse de todos deve fazê-lo de forma adequada (representação adequada), deve ter legitimidade para ocupar aquela posição, para postular, para apresentar aquela pretensão e interesse para ir a juízo e buscar aqueles objetivos.

Na parte da legitimidade, o Direito norte-americano apresenta algumas variantes em relação ao Direito brasileiro. É certo que há um traço comum entre ambos os ordenamentos. Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, a representação ou, melhor dizendo, a legitimidade para propositura de uma ação de classe, é concorrente. No caso brasileiro, essa matéria está disciplinada no artigo 129, § 1º da Constituição Federal, que dispõe que as ações cíveis, que podem ser intentadas pelo Ministério Público não serão de forma exclusiva ou  de forma privativa. Sabemos que no Direito brasileiro só existem duas hipóteses de legitimidade privativa do Ministério Público: o exercício da ação penal pública e a instauração do inquérito civil. As demais são concorrentes. A regra, no Direito brasileiro, é que a ação cível, a ação coletiva cível tenha uma natureza, uma legitimidade concorrente.

No Direito norte-americano isso também é mantido, mas com algumas variantes. Lá, por exemplo, é reconhecida a capacidade postulatória a algumas agências governamentais. Então, o FDA, que é a agência que regula alimentos e medicamentos, tem capacidade postulatória para ir a juízo, tem capacidade para ajuizar uma ação civil pública, para ajuizar uma class action, caso o seu representante entenda que o interesse dos consumidores está sendo lesado ou violado.

No Direito brasileiro, não se outorga, ainda, essa capacidade postulatória às agências. Até porque a criação de agências no Direito brasileiro é algo recente. Desde o primeiro mandato do Presidente Fernando Henrique, houve um processo de desconcentração, de descentralização, em que atribuições, que antes eram acometidas aos Ministérios e às Secretarias, passaram a ser, gradativamente, acometidas às agências de controle de energia elétrica, das telecomunicações, do petróleo, etc. Contudo, não há ainda no Direito brasileiro uma autorização para que essas agências venham a ingressar em juízo, não há ainda capacidade postulatória outorgada a essas agências. Outra diferença que se verifica é quanto à postura do Ministério Público. No Brasil o MP é uma instituição autônoma, obviamente ele não é um quarto poder, mas também não se insere dentro de nenhum dos outros três poderes. Assim, como o Tribunal de Contas, ele é um órgão autônomo, um órgão de fiscalização.

Já no Direito norte-americano é diferente; o Ministério Público está formalmente, e até mesmo materialmente, inserido no Poder Executivo. Basta dizer que, em nível Federal, o Procurador Geral da República é, ao mesmo tempo, o Ministro da Justiça, escolhido discricionariamente pelo Presidente da República. Em âmbito estadual, o Procurador-geral é eleito, na maioria dos Estados, na mesma chapa do Prefeito. Então, há um grau de comprometimento muito grande entre o Ministério Público e o Poder Executivo nos Estados Unidos. O que atrapalha ou, até mesmo, inviabiliza qualquer tipo de pretensão contra o governo. É praticamente impensável, nos Estados Unidos, visualizar um membro do Ministério Público ajuizando uma ação de improbidade administrativa contra um membro do governo, pois ele está intimamente relacionado àquele governo.

Excepcionalmente, quando é preciso, eles necessitam buscar soluções extravagantes, extraordinárias.  Lembram-se do caso em que o próprio Presidente norte-americano foi investigado? Qual era a denominação dada a quem era o Procurador encarregado? Ele era um Promotor independente, ele era um Procurador independente. Era necessário criar quase que um cargo novo, uma função nova para que pudesse haver um mínimo de controle.

O que encontramos hoje no cenário da jurisprudência norte-americana é o MP agindo sempre que o réu não é um agente governamental, ele age, na maioria dos casos, contra particulares, contra empresas. Há muitas ações ajuizadas e, até mesmo, já encerradas contra empresas produtoras de derivados do fumo, tabaco, cigarros, charutos, etc. por motivos ligados ao câncer. Há, também, um grande número de ações coletivas ajuizadas contra empresas por acidentes com peças defeituosas de automóveis. Geralmente, a postura, a atuação do MP americano se dá na área do Direito do Consumidor, enquanto no Direito brasileiro essa postura se coloca tanto na área do Direito do Consumidor quanto na área ambiental do patrimônio histórico e, principalmente nos últimos tempos, na área da improbidade administrativa.

Seguindo o exame do Direito norte-americano, ainda na regra 23, enquanto a alínea “a” trata dos requisitos para a admissibilidade da ação coletiva, a alínea “b” trata dos requisitos para a manutenção dessa ação coletiva, ou seja, não basta que o juiz emita o certificado da classe, não basta que o juiz reconheça que está presente a comunhão de interesses, que está presente a relevância, o grande número de interessados naquele caso. Outros requisitos devem ser satisfeitos no curso do processo, e é isso que dispõe a alínea “b”. Na tradução do Prof. José Rogério Cruz e Tucci, uma ação pode desenvolver-se como class action desde que satisfeitos os pressupostos da alínea “a” e ainda se: 1º) o ajuizamento de ações separadas por ou em face de membros do grupo, faça surgir risco de que as respectivas sentenças (nelas proferidas em prol do litigante contrário à classe)  prejudiquem, ou tornem extremamente difícil, a tutela dos direitos de partes dos membros da classe estranhos ao julgamento.

Há uma preocupação muito grande no Direito norte-americano com o risco das chamadas decisões conflitantes. É muito melhor reunir em uma única demanda todas aquelas pessoas que possam ter interesse naquela situação, e obter um único provimento judicial e uma única sentença do que correr o risco de permitir diversas ações individuais (ou algumas individuais e uma coletiva) e haver entre essas demandas um antagonismo.

Esse antagonismo, muitas vezes, ocorre no Direito brasileiro. No site do STJ, encontramos a questão da litispendência, que não é tecnicamente litispendência, pois seria um caso de conexão, entre uma ação individual e uma ação coletiva. E, mais; as vezes, o sujeito ajuíza uma ação individual, obtendo a procedência daquele pedido e, logo depois, como representante daquela classe (Presidente de uma associação de classe, MP ou a própria pessoa jurídica de direito público interno) ajuíza uma ação coletiva e obtém uma decisão de improcedência do pedido. Como vamos coadunar essas duas decisões que se abatem sobre o mesmo fato e cada uma segue um sentido diametralmente oposto ao da outra? O Código de Defesa do Consumidor procura mais ou menos regular essa matéria nos artigos 103 e 104, mas é óbvio que a solução não é técnica, mas sim política. A solução não é jurídica, procura-se encontrar uma solução mais adequada dentro de uma situação de caos, que foi criada pelo do próprio ordenamento jurídico. Procura-se identificar qual seria a melhor ou talvez a única saída para aquele caso ou para aquela situação.

O terceiro ponto que gostaria de enfocar com vocês é, especificamente, a regra 23 na sua alínea “b”, item 3. A doutrina norte-americana chama de damage class action ou a ação de classe indenizatória. Há dois ou três meses saiu publicada a dissertação de mestrado do Prof. Pedro Dinamarco, filho do Prof. Cândido Dinamarco, cujo tema é Ação Civil Pública. Ele se debruça em um dos capítulos da sua dissertação sobre a class action for damage. A Profª Ada Pellegrini Grinover, em 1999/2000, passou uma temporada nos Estados Unidos a convite de uma Universidade Americana fazendo uma pesquisa sobre ações de classe e publicou esse trabalho em diversas revistas, repositórios de doutrina, em que individualizava e exemplificava os principais casos de direito norte-americano desse tipo de ação. A classe action for damage basicamente equivaleria à nossa ação coletiva stricto sensu.

Alguns doutrinadores brasileiros fazem uma distinção entre a ação civil pública e a ação coletiva, ou melhor, entre a ação civil pública stricto sensu e a ação coletiva. Utilizar-se-ia a ação civil pública sempre que o seu direito fosse coletivo ou difuso. E utilizar-se-ia a ação coletiva, propriamente dita, sempre que o seu direito fosse um direito individual homogêneo. Pois bem, a class action for damage é o correspondente nos Estados Unidos à nossa ação coletiva stricto sensu, que busca defender um direito individual homogêneo. Um direito que existe abstrata e genericamente e que diz respeito a uma classe, a uma coletividade, mas um direito que pode ser, num segundo momento, individualizado, um direito que pode ser fracionado. Quando se está diante de um direito coletivo ou de um direito difuso, a principal característica desses direitos é a sua indivisibilidade. Não conseguimos quantificar individualmente aquele direito, por exemplo: uma lesão ao meio ambiente; todos nós que vivemos e usufruímos daquela floresta, daquele rio, daquela lagoa, vamos ser afetados. Mas não conseguimos individualizar uma cota parte, um quinhão, que cada um de nós teria daquele bem que foi violado.

Já no direito individual homogêneo isso é perfeitamente possível em uma relação de consumo. Voltamos àquele velho exemplo: quinhentas pessoas sofrem um acidente de consumo. Genericamente, elas têm o mesmo direito, todas consumiram um produto impróprio para o uso. Contudo, concretamente, cada uma delas sofrerá um grau, um prejuízo em grau diverso. Algumas pessoas simplesmente não vão sentir nada, pois ingeriram pouco daquele alimento; outras perderão um dia de trabalho e terão uma série de problemas no seu dia-a-dia e outras sofrerão de um mal mais grave, sendo até necessária uma internação ou até um procedimento cirúrgico. Consegue-se quantificar tranqüilamente o grau de prejuízos que cada um sofreu. Ela é uma ação cindível, na fase cognitiva é tratada como se fosse uma ação coletiva; na fase executiva (quando se consegue chegar à execução) ela é tratada como se fosse uma ação individual. Cada um dos integrantes daquela classe vai ao cartório e apanha uma cópia reprográfica daquela decisão transitada em julgado, provando ao juízo seu nexo de causalidade com aquela situação e apresentando um memorial de cálculos para evitar uma fase de liquidação de sentença, quando isso é possível, iniciando, desde logo, o procedimento de execução.

O principal problema que encontramos no Direito brasileiro, um dos principais problemas dessa nossa ação coletiva,  se resume a como ter certeza de que todas as pessoas que sofreram aquele acidente de consumo, para voltar àquele exemplo, poderão se beneficiar com aquele decisão, ou mais, como fazer para que aquelas pessoas que sofreram aquele acidente de consumo, mas que não desejam se beneficiar daquela decisão, não sejam atingidas pela coisa julgada que se formará a partir daquele procedimento e a partir daquela decisão?

Nunca é demais  lembrar  que  a  Constituição  Federal  resguarda o direito  de  acesso à  Justiça, mas em nenhum momento ela nos obriga a ir  à Justiça. Em  nenhum  momento  você  está  obrigado a recorrer ao Poder Judiciário, você pode simplesmente renunciar ao seu direito, não só renunciar
à sua pretensão, mas pode efetivamente renunciar ao seu direito (você pode não querer exercer aquele direito material que, em tese, você titulariza). Imaginem a seguinte situação: um (ou mais) desses quinhentos consumidores, simplesmente não quer ir a juízo, não quer aborrecimentos, brigas.  Então, como ele pode fazer para ser excluído dos efeitos dessa decisão? Não temos um mecanismo apropriado no Direito brasileiro. Pela regra do artigo 104, do Código de Defesa do Consumidor, ele precisaria ajuizar uma ação individual no prazo de trinta dias em que tomasse conhecimento do ajuizamento de uma ação coletiva e, permanecendo ou perdurando essa ação individual, o juiz iria presumir que ele está desistindo ou se excluindo da ação coletiva. É um mecanismo um pouco complicado e nem sempre muito fácil de ser implementado na prática, devido ao elevado número de pessoas interessadas e, muitas vezes, falta uma estrutura cartorária capaz de suportar aquela quantidade de demandas e pessoas interessadas. O Direito norte-americano utiliza uma solução muito mais simples, ele utilizam a solução do option in e option out. O que isso? Quando a demanda é ajuizada, quando é emitido o certificado da classe, são feitas as publicações em Diário Oficial e em jornais de grande circulação informando que uma ação de classe está sendo ajuizada ou que uma ação de classe foi ajuizada.  E as pessoas que quiserem se excluir dos efeitos daquela decisão, têm um prazo assinalado de alguns dias para comparecer a juízo e pedir formalmente por escrito a sua exclusão de qualquer efeito que venha advir de uma decisão proferida naquele procedimento. É um mecanismo pelo qual você consegue coadunar o acesso à Justiça na jurisdição coletiva e o direito individual que cada um tem de recorrer ou não ao Poder Judiciário. Se você quer obter uma indenização, mas não quer se aborrecer, basta que você permaneça inerte, basta que você deixe transcorrer aquele prazo e o resultado que for obtido naquela ação de classe vai atingir você.

Caso você prefira se excluir daquela ação de classe ou caso prefira ajuizar a sua própria demanda individual, pois tem todo direito de achar que naquela hipótese o Ministério Público não vai representar adequadamente os seus interesses, também pode entender que a agência do governo não vá postular de forma tão diligente como você faria naquele caso, você pode pedir a sua exclusão, você pode pedir a sua saída, ingressando individualmente e contratando um advogado para ingressar com uma demanda coletiva. O mecanismo do option in e option out, além de tornar as coisas muito mais claras, facilita a prestação jurisdicional. O juiz, desde o início do processo, já consegue ter uma visão muito mais cristalina da extensão subjetiva da decisão que ele vai proferir. Não é necessário, lá na frente, ao final do processo de conhecimento, na fase de liquidação, na fase executória, determinar ou tentar determinar que pessoas ou quais pessoas vão ser atingidas por aquela decisão.

E, finalmente, o último tópico que gostaria de abordar com vocês, antes das conclusões finais, é a possibilidade de se fazer um acordo em ações coletivas. A alínea “e”, da regra 23 dispõe claramente que os litigantes não podem renunciar ou transigir no âmbito da class action sem autorização do Tribunal, que disporá sobre a notificação na forma em que determinar, no conteúdo da renúncia ou da transação a todos os membros do grupo. No Direito norte-americano, há uma preocupação com essa questão da transação. Realmente o legislador norte-americano deu um passo a mais que o legislador brasileiro. Ele faz a previsão de um acordo, contudo cria uma série de mecanismos de freios e contrapesos, uma série de mecanismos de controle para que as pessoas que estão envolvidas naquela situação possam ter a perfeita noção dos efeitos e das conseqüências daquele acordo que vai ser celebrado. Esse mecanismo não existe no Direito brasileiro.

A Constituição Federal e a Lei 7437/85 outorgam ao Ministério Público, por exemplo, legitimidade para ajuizar uma ação civil pública. E as leis infraconstitucionais, como a lei do Ministério Público, o CDC, o ECA e a Lei da Ação Civil Pública outorgam legitimidade para que o Ministério Público tome o chamado termo de ajustamento de conduta. Mas em nenhum momento é indagado ou pode ser indagado dos particulares (de cada cidadão, de cada um de nós) se concordam com os termos daquele ajustamento de conduta, se acha apropriado, se acha que realmente o seu “representante” deveria ter agido daquela forma ou se deveria ter prosseguido na ação até o seu momento final. E aqui caímos numa questão bastante complicada, que é a questão da legitimação política. De uma hora para outra, vem um artigo da Constituição, da lei, e dispõe que aquele Promotor de Justiça, aquele Procurador do Estado ou aquele Procurador do Município, de agora em diante é o seu anjo da guarda. Ele vai ajuizar essa ação por você, ele vai ser diligente, ele tomará todas as providências e obtem, ao final, uma sentença favorável. Então, você só precisará dar início ao processo de execução. E em um belo dia você acorda, abre o jornal e descobre que ele firmou um ajustamento de conduta e que aquela ação não vai mais chegar ao seu fim. O que você poderá fazer contra isso? Nada, pois não existe nenhuma forma de controle no Direito Brasileiro para esses atos dispositivos. Alguns entendem que o termo de ajustamento de conduta não é um acordo, não é uma transação. Realmente, não é uma transação de direito material, mas assume, de certa forma, uma feição de transação processual.

Todos os autores da Escola Clássica de São Paulo, Rodolfo de Camargo Mancuso, Hugo Mazzilli e José dos Santos Carvalho Filho sustentam claramente que a natureza jurídica do termo de ajustamento de conduta é uma transação processual. É certo que há professores, como o meu mestre Paulo Cézar Pinheiro Carneiro, que sustentam que não se trata de uma transação, mas sim de uma forma de reconhecimento de pedido. Não se está transacionando, não se está fazendo concessões recíprocas, mas adequando uma conduta que antes era ilícita, que antes confrontava, que antes atingia o ordenamento jurídico.  Mesmo seguindo essa teoria que, tecnicamente, parece-me a mais correta, é inegável reconhecer que haverá uma conseqüência processual, de fim daquele processo antes do momento inicialmente previsto e de forma diversa da que foi inicialmente prevista.

Então, afastar definitivamente a natureza de transação processual é um pouco complicado para essa situação. O que temos no Direito brasileiro como forma de controle desse termo de ajustamento de conduta, é tentar, de alguma forma, levar essa questão a um segundo juízo que pudesse efetivar um controle de legalidade e, até mesmo, de conveniência e oportunidade daquele ato. Como é que isso se dá? Depende. Se você ainda está em sede de inquérito civil, pode fazer esse controle por intermédio do Conselho Superior do Ministério Público. Se você já tem uma ação civil pública ajuizada. O controle é feito pelo juiz, ao homologar ou não o Termo de Ajustamento de Conduta. Essa questão do T.A.C. traz à baila novamente o Instituto da Legitimidade em sede de ação coletiva.

Sabemos que no nosso ordenamento existem três esferas de legitimidade em jurisdição coletiva: uma legitimidade para instaurar o inquérito civil, que é privativa do Ministério Público, uma legitimidade para ajuizar a ação civil pública, que é a do Ministério Público, da pessoa jurídica de direito público interno, das associações de classe e também existe uma terceira dimensão da legitimidade, que é justamente a legitimidade para tomar o ajustamento de conduta, que é uma legitimidade intermediária. Ela é maior que a do inquérito civil e menor que a do ajuizamento da ação civil pública. Só podem tomar ajustamento de conduta o MP e as pessoas de direito público interno. E surge uma questão bastante interessante, que já tivemos na prática, inclusive, submetida ao Tribunal e que, hoje, pende de recurso no STJ e no próprio STF: um determinado Município ajuizou  ação civil pública em face de certa empresa. Essa ação foi encerrada por um ajustamento de conduta. O Ministério Público se pronunciou de forma contrária, entendendo que aquele acordo não era benéfico à sociedade, recorrendo, então, dessa decisão, estando a questão submetida aos Tribunais Superiores com o objetivo de examinar qual o grau de influência da manifestação de vontade do Ministério Público nesse tipo de acordo.

Em outras palavras, poderia haver a homologação de um termo de ajustamento de conduta contra o posicionamento do Ministério Público? Lembrando que, nesse caso, o Ministério Público não está agindo em nome próprio, ele está representando toda a sociedade. O argumento é o seguinte: se estou em uma ação civil individual e as partes resolvem fazer um acordo, o juiz só homologa esse acordo depois que todas as partes tomam ciência e os respectivos advogados também estão de acordo.

Em uma ação coletiva, não tenho como passar uma lista por todos os habitantes de uma cidade para que cada um deles assine que está de acordo. Preciso pegar um “de acordo” com o suposto representante ou presentante daquela sociedade que, no caso, seria o Ministério Público. Trata-se de mais uma forma de controle que se tenta colocar, introduzir, no Direito brasileiro. Não há dispositivo legal sobre a matéria, os Tribunais Superiores estão decidindo e vão decidir ainda se deve ou não haver mais essa forma de controle no termo de ajustamento de conduta.

Concluindo, gostaria de dizer o seguinte: o direito norte-americano (e aqui fizemos uma abordagem muito rápida, procura fazer as coisas da forma mais prática, rápida, desburocratizada, mas mesmo assim algumas questões ainda permanecem sem solução, pois são inerentes à própria problemática da ação coletiva. Sempre que se tem um grupo de pessoas sendo representadas em juízo, é muito difícil coadunar o interesse, é muito difícil se obter uma comunhão efetiva dos interesses de todos os integrantes daquele grupo. Então, essa situação extrajurídica, que é social e política gerará efeitos no Direito no momento da legitimidade, do procedimento, dos efeitos da sentença e, principalmente, na parte da coisa julgada.

De qualquer forma, fica a noção de que o Direito brasileiro realmente pega por empréstimo diversas regras do Direito norte-americano, embora nem sempre essas regras se aplicam adequadamente. Não se pode pegar o que foi “bolado”, o que foi idealizado pelo sistema da commom law e simplesmente recortar e colar em um sistema que vive sob a égide do civil law. São necessárias alterações, modificações, aperfeiçoamentos, que ainda estão por vir, há uma série que projetos em andamento no Congresso Nacional em comissões de reformas pelo país inteiro, para que isso possa ser aperfeiçoado da melhor forma possível.


Retirado de: http://www.amperj.org.br/associados/dalla/artigo58.htm