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A
responsabilidade objetiva no direito brasileiro como regra geral após o advento
do novo Código Civil
Gustavo Passarelli da Silva
Advogado em Campo Grande (MS),
professor de Direito da Universidade Católica Dom Bosco.
INTRODUÇÃO
O
instituto da responsabilidade civil é quase tão antigo quanto a história da
humanidade, porquanto sempre houve ações ou omissões por parte dos seres
humanos, que de alguma forma vieram a ocasionar dano a outrem, surgindo, por
conseguinte, a subsequente necessidade de ressarcimento.
No
início, donde se tem as primeiras notícias do instituto, vigorava a vingança
generalizada (vindicta), onde não se buscava a restauração do status
quo ante, mas tão somente impingir ao ofensor dano de igual magnitude ao
que foi causado.
Ao
depois, com a evolução das relações sociais, tornou-se mais interessante a
reparação do dano de forma subsidiária (em pecúnia), quando então o Estado
avocou para si referida tarefa, o que se percebe denotadamente pela Lex
Aquilia, onde, inclusive, reconheceu-se a necessidade de demonstração da
culpa para que se pudesse exsurgir o direito à indenização.
Todavia,
pode-se dizer que foi no direito francês que o instituto experimentou evolução
maior, pois o Código de Napoleão, em seus artigos 1382 e seguintes, veio a
regulamentar a idéia da culpa como sucedâneo da responsabilidade de indenizar
os prejuízos causados.
De
outro tanto, as legislações pátrias, desde o Código Criminal de 1830 até o
Código Civil de 1916 buscaram inspiração no direito francês, razão pela qual a
responsabilidade civil sempre foi pautada na idéia de existência de culpa por
parte do ofensor. É o que se percebe da leitura do artigo 159 da revogada Lei
Adjetiva Civil, ao determinar que "Aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, causar prejuízo a
outrem, fica obrigado a reparar o dano."
Pode-se
afirmar, sem margem a questionamentos, que a responsabilidade civil no direito
brasileiro sempre pautou-se na necessidade de demonstração de três requisitos
principais: o ato ilícito, o dano e o nexo causal, ou seja, a
culpa como pressuposto para que haja a obrigação de reparar o prejuízo
experimentado.
Com
efeito, a responsabilidade civil surgiria a partir do momento em que o
indivíduo deixa de cumprir determinada obrigação, ou ainda, que sua atitude
venha a ocasionar dano a outrem, surgindo daí o entendimento de que se trataria
de um dever jurídico sucessivo, vindo somente a existir após a violação de um
dever jurídico originário (contratual ou extracontratual).
Neste
sentido, CARLOS ROBERTO GONÇALVES ensina que "Responsabilidade civil
é, assim, um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente
da violação de um dever jurídico originário." (Comentários ao
Código Civil, Volume XI, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, p. 07)
Portanto,
a responsabilidade civil deve ser encarada como fato humano, ou seja, a
necessidade de se proporcionar a devida reparação em virtude de ato causador de
dano. Cumpre transcrever, por oportuno, o escólio de CÁIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA:
"Como sentimento
humano, além de social, à mesma ordem jurídica repugna que o agente reste
incólume em face do prejuízo individual. O lesado não se contenta com a punição
social do ofensor. Nasce daí a idéia de reparação, com estrutura de
princípios de favorecimento à vítima e de instrumentos montados para ressarcir
o mal sofrido. Na responsabilidade civil está presente uma finalidade punitiva
ao infrator aliada a uma necessidade que eu designo de pedagógica, a que não é
estranha a idéia de garantia para a vítima, e de solidariedade que a sociedade
humana deve-lhe prestar."
(Responsabilidade
Civil, Editora Forense, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1990, p. 15)
Todavia,
como sói ocorrer em diversos casos, a demonstração de culpa não é de simples
constatação, vale dizer, em muitos casos, fazer tal exigência à vítima seria o
equivalente a negar o direito à reparação.
Neste
panorama, foi necessária a construção, doutrinária e jurisprudencial, também
com origens no direito francês (Saleilles e Josserand), de novas formas de
atender aos anseios de justiça que inspiram o instituto da responsabilidade
civil, de modo a ampliar as possibilidades de indenização, fornecendo uma
entrega de tutela jurisdicional de forma mais eficaz, proporcionando, assim, a
pacificação social, que é o escopo principal do processo civil moderno.
Exemplos
dessa atividade podem ser encontrados em vários precedentes jurisprudenciais
pátrios, em especial no que diz respeito aos acidentes em transportes de
passageiros, onde buscou-se uma interpretação inegavelmente extensiva do artigo
17 do Código das Estradas de Ferro.
Ainda,
no que diz respeito à responsabilidade por ato de terceiro, tal como previsto
nos artigos 1527 e seguintes do Código Civil de 1916, havia interpretação dos
pretórios totalmente contrária ao texto da lei. A despeito dessa situação, essa
foi a forma que a jurisprudência, à míngua de um diploma legal que regulasse
apropriadamente a matéria, encontrou de fornecer a tutela pretendida pelas
partes.
É
importante a análise dos fatos acima, ainda de que forma superficial, para
demonstrar o tema a ser abordado neste estudo, qual seja a tendência
irrefragável de se adotar em nosso direito a responsabilidade objetiva como
regra geral, eis que mais consentânea com os ideais de justiça e eqüidade que
norteiam as atividades do indivíduo no século XX.
CONSIDERAÇÕES
SOBRE A RESPONSABILIDADE SUBJETIVA
Como
salientado, o direito brasileiro sempre buscou inspiração nas legislações
francesas, mormente no Código de Napoleão, que, conforme preceituam seus
artigos 1382 e seguintes, busca na culpa o fundamento para a existência da
obrigação de reparar o dano causado, teoria essa que deve ser creditada a DOMAT
e POTHIER.
Nosso
Código Civil de 1916 adotou expressamente essa concepção – da responsabilidade
subjetiva – dado que em seu artigo 159 era expressamente prevista a idéia de
conduta culposa do agente como pressuposto para o dever de indenizar.
Segundo
a teoria da responsabilidade subjetiva, para que haja a obrigação de indenizar
é necessário que seja demonstrada a culpa do suposto violador do direito da
vítima, sendo desta última a incumbência de provar tal situação para que tenha
direito à indenização. Utiliza-se, novamente, do ensinamento de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:
"Conforme
o fundamento que se dê à responsabilidade, a culpa será ou não considerada
elemento da obrigação de reparar o dano.
Em face da
teoria clássica, a culpa era fundamento da responsabilidade. Essa teoria,
também chamada teoria da culpa, ou "subjetiva", pressupõe a culpa
como fundamento da responsabilidade civil. Em não havendo culpa, não há
responsabilidade.
Diz-se, pois,
ser ‘subjetiva’ a responsabilidade quando se esteia na idéia de culpa. A prova
da culpa do agente passa a ser pressuposto necessário do dano indenizável.
Dentro dessa concepção, a responsabilidade do causador do dano somente se
configura se agiu com dolo ou culpa."
(ob.
cit., p. 28)
Como dito, a responsabilidade subjetiva,
de um modo geral, remonta da interpretação inicialmente conferida aos
dispositivos do Código Civil francês, bem como à palavra faute, sendo
importante a citação do pensamento de CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:
"A
doutrina da culpa assume todas as versas de uma fundamentação ostensiva e
franca com o Código de Napoleão. (...). Sobre este preceito a corrente
exegética assentou que o fundamento da reparação do dano causado é a culpa. Os
autores franceses desenvolveram-na em seus caracteres e construíram por todo o
século passado, e ainda neste século, a doutrina subjetiva."
(ob.
cit., p. 19)
Os defensores dessa teoria, dentre eles
os irmãos Mazeud, buscavam fundamento na Lei Aquilia, considerando-a como o
primeiro diploma legal a regulamentar a questão, reconhecendo-se a culpa como
elemento caracterizador da responsabilidade civil.
Os
questionamentos a respeito da necessidade de culpa para que houvesse a
responsabilização do agente surgiram ainda no direito romano (onde em princípio
prevalecia a responsabilidade objetiva), em casos de pessoas que não
responderiam por seus atos, e por conseguinte, não poderiam ser sujeitos
passivos da reparação.
AGUIAR
DIAS, principal expressão doutrinária sobre o tema, como que alertando o leitor
a respeito de seu posicionamento contrário à teoria subjetiva, bem como
explicando os fundamentos em que se baseavam seus defensores, pondera que:
"A teoria
da culpa, resumida, com alguma arrogância, por VON IHERING, na fórmula
"sem culpa, nenhuma reparação", satisfez por dilatados anos à
consciência jurídica, e é, ainda hoje, tão influente que inspira a extrema
resistência oposta por autores insignes aos que ousam proclamar a sua
insuficiência em face das necessidades criadas pela vida moderna, sem aludir ao
defeito da concepção em si mesma."
(Da
Responsabilidade Civil, Volume I, Editora Forense, 7ª Edição, Rio de Janeiro,
1983, p. 36)
Por
certo, em nosso direito a interpretação literal dos dispositivos constantes do
Código Civil de 1916, em especial o artigo 159 e 1523, por exemplo, não deixam
dúvida de que, segundo palavras do autor em referência, a doutrina legal a
respeito da responsabilidade civil é a subjetiva.
Todavia,
fato é que a responsabilidade subjetiva há muito tempo já não vinha sendo uma
forma satisfatória de se proceder a entrega da tutela jurisdicional, dado que
em muitos casos era impossível à vítima fazer prova da conduta faltosa do autor
do dano, como sói ocorrer nos casos de acidente de trabalho, em que ao
empregado era praticamente impossível demonstrar a negligência do patrão, seja
pela dificuldade na colheita de provas documentais, seja ainda pela ausência de
testemunhas, todas zelosas no sentido de manterem seus empregos.
Em
termos de direito comparado, os primeiros questionamentos começaram a surgir
após a Revolução Industrial, onde o aumento de acidentes de trabalho, com a
subsequente impossibilidade de demonstração de culpa por parte do patrão,
apenas para citar exemplo mais comum, acabava por relegar o direito de obter a
competente indenização a um plano meramente hipotético, senão utópico, dada a
dificuldade na produção da prova.
Diante
de situações como a acima externada, e de outros exemplos que poderiam se
perpetuar, o que também ocorreu em nosso direito, foram surgindo algumas
legislações esparsas, de modo a possibilitar, em alguns casos, a
responsabilização de forma objetiva, independente da culpa do autor do dano,
servindo de exemplo o Código das Estradas de Ferro, Lei do Acidente de
Trabalho, Código Brasileiro do Ar e mais recentemente o Código de Defesa do
Consumidor.
Os
diplomas legais referidos, certamente abriram caminho para a reparabilidade
plena, fundada na teoria do risco, onde o simples exercício de determinada
atividade com o proveito econômico daí decorrente, cria o dever de indenizar
eventuais danos causados a terceiros.
Nesse
panorama e contexto histórico é que se mostrou necessária a reformulação das
regras concernentes à responsabilidade civil, transmudando-se conceitos antigos
e inadequados à realidade do desenvolvimento das relações sociais, de modo a
conferir e ampliar de forma objetiva as possibilidades daquele que foi lesado
em seu direito de obter a correspondente indenização. Importante, neste sentir,
transcrever a lição de AGUIAR DIAS, no que diz respeito à crítica sobre a
adoção da responsabilidade subjetiva como regra:
"Aceitando,
em termos, a opinião, é conveniente ponderar que, naquilo em que não seguir a
orientação moderna, o nosso legislador ficou extremamente aquém das conquistas
do direito da responsabilidade. Nele, predomina o critério da culpa, e nas suas
exigências mais retrógradas, porque as presunções que se admitem não alcançam a
extensão com que, na maioria das legislações modernas, se procurou facilitar,
aliás pouco cientificamente, em proveito do prejudicado, a caracterização da
culpa."
(ob.
cit., p. 41)
Também RUI STOCO faz importante
ponderação a respeito do sentimento de insatisfação, decorrente da utilização
generalizada da teoria da responsabilidade subjetiva, como forma de caraterizar
a obrigação de reparar o dano causado:
"A
insatisfação com a teoria subjetiva, magistralmente posta à calva por Cáio
Mário, tornou-se cada vez maior, e evidenciou-se a sua incompatibilidade com o
impulso desenvolvimentista de nosso tempo. A multiplicação de oportunidades e
das causas de danos evidenciaram que a responsabilidade subjetiva mostrou-se
inadequada para cobrir todos os casos de reparação."
(Responsabilidade
Civil e sua Interpretação Jurisprudencial, Editora Revista dos Tribunais, 4ª
Edição, São Paulo, 1999, p. 76)
A
título de ilustração, vale dizer que dentro deste mesmo espírito de se conferir
maior eficácia aos provimentos jurisdicionais, proporcionando a pacificação
social, tem-se entendido que a conversão das obrigações para as perdas e danos
não mais deve servir como regra, sendo mitigado o respeito inabalável que
outrora era conferido à intangibilidade da vontade humana, o que se mostra
particularmente verdadeiro na análise dos artigos 461 e 461-A do Código de
Processo Civil, ao tratarem da execução específica das obrigações, e sendo
necessária a indenização subsidiária, que se dê pela forma mais completa
possível.
Outrossim,
conforme se perceberá da análise dos dispositivos do Código Civil vigente, é
lícito afirmar que existe no direito brasileiro a tendência irrefragável de se
adotar a responsabilidade objetiva como regra geral nos casos de indenização
por danos causados a outrem, seja porque mais se coadunam com a realidade das
relações sociais, seja ainda porque o antigo sistema fundado na existência de
culpa mostrou-se insatisfatório como meio de proporcionar a reparabilidade
plena.
A
RESPONSABILIDADE OBJETIVA - TEORIA DO RISCO
Costuma-se
conferir ao direito romano o período primeiro onde se reconheceu a existência
da responsabilidade objetiva. Com efeito, nesta época não interessava a
verificação da culpa, mas simplesmente impor ao lesado o direito recíproco de
impingir dano de igual magnitude ao experimentado, sendo somente ao depois, com
a promulgação da Lei Aquilia, instituída efetivamente a necessidade de apuração
da conduta faltosa como fundamento para a responsabilidade.
AGUIAR
DIAS, o mais expressivo e importante defensor da responsabilidade sem culpa em
nosso direito, citando MARTON, alude ao equívoco que fez com que vários diplomas
legais adotassem a responsabilidade subjetiva como regra:
"O
reputado professor de Budapeste, investigando a causa que teria levado a
ciência jurídica ao acolhimento de construção teórica tão defeituosa, como é o
princípio da culpa subjetiva, chegou à conclusão de que "o fenômeno tem
uma explicação histórica, contida no fato de que a ciência do direito se
inspira no direito romano, onde a responsabilidade extracontratual nunca foi um
problema. (...). O grande erro e a grave omissão da teoria moderna do direito
civil consistem precisamente em que, embora assistindo à obra de distinção
entre o delito e a reparação, libertando esta idéia das restrições objetivas da
Lei Aquilia – obra generalizada pelas codificações européias e, em primeiro
lugar, pelo Código francês – pensava poder manter esse ponto de vista ingênuo e
antiquado, segundo o qual o fundamento da reparação não se poderia encontrar
senão no delito, e que, portanto, sempre que se deparasse uma responsabilidade
sem delito, conviria de qualquer forma imaginá-lo."
(ob.
cit., p. 42)
A partir do momento em que a apuração da
culpa, ou melhor dizendo, a necessidade de prova da conduta ilícita para que
surgisse o direito à indenização, deixava muitos dos casos apresentados aos
tribunais sem a devida resposta, ocasionando a insatisfação social, que, por
seu turno, acabou por impulsionar estudos a respeito de outros fundamentos para
a responsabilidade civil que não a culpa.
Foi
novamente no direito francês, com Saleilles e Josserand, que a teoria da
responsabilidade objetiva foi construída e definitivamente imiscuída nos demais
ordenamentos jurídicos. Cita-se, por importante, CÁIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA:
"O maior
valor da doutrina sustentada por Raymond Saleilles, e que seria, por certo, a
razão determinante da conquista de espaço em seu país e no mundo ocidental, foi
ter engendrado a responsabilidade sem culpa, assentando-a em disposições do
próprio Código Civil francês, que desenganadamente é partidário da teoria da
culpa, proclamada por expresso no art. 1.382.(...). Neste estudo, Saleilles
desenvolve a sua tese, argumentando: o art. 1.382 do Código Civil significa que
"o que obriga à reparação é o fato do homem, constitutivo do dano.(...) O
âmago de sua profissão de fé objetivista desponta quando diz que "a teoria
objetiva é uma teoria social que considera o homem como fazendo parte de uma
coletividade e que o trata como uma atividade em confronto com as
individualidades que o cercam."
(ob.
cit., p. 21/22)
Com efeito, referidos autores buscaram
uma nova interpretação aos artigos 1382 e seguintes do Código de Napoleão, em
especial ao artigo 1384, inciso I, no sentido de buscar o fundamento para sua
teoria.
A
necessidade dessa nova interpretação, como mencionado, remontou à Revolução
Industrial, onde um número cada vez mais crescente de acidentes de trabalho
tornavam indenes os prejuízos daí resultantes, dada a impossibilidade de
demonstração da culpa por parte do patrão, valendo ainda exemplos como os casos
de transportes de passageiros.
É
importante a análise dos pontos em referência de modo a demonstrar os
princípios que inspiram a teoria da responsabilidade objetiva, quais sejam a boa-fé
e a eqüidade, como forma de propiciar a entrega de uma tutela jurisdicional
mais justa. Com efeito, a partir do momento em que a evolução das relações
sociais, em confronto com preceitos que inspiraram legisladores de outras
épocas, torna insuficientes os meios para se obter a indenização correspondente
ao dano experimentado, não se deve negar que é preciso rever conceitos antigos.
AGUIAR
DIAS enumera quais os princípios que inspiram a responsabilidade objetiva: do
interesse ativo, da prevenção, da eqüidade ou do interesse preponderante, da
repartição do dano e do caráter perigoso do ato. Óbvio que essa não é
uma definição pacífica e isenta de questionamentos, mas demonstra de forma
clara o espírito que norteou os estudiosos de então e que certamente refletiram
na elaboração de nossa nova codificação civil.
Portanto,
não se pode fugir à conclusão de que a responsabilidade objetiva, que buscou
suporte na teoria do risco, sempre pautou-se em princípios e valores sociais,
como a eqüidade e a boa fé, que ganharam inegável reforço com o advento da
Constituição Federal de 1988, na qual a proteção à dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III) tornou-se fundamento do Estado Democrático de Direito.
De
modo a se conferir maior praticidade ao objeto do estudo, que visa demonstrar a
adoção da teoria da responsabilidade objetiva no direito brasileiro, que
fundamenta-se inegavelmente na teoria do risco, mister se faz tecer algumas
ponderações acerca da teoria do risco.
Nesse
diapasão, e dada a importância e atualidade da obra, não se pode prescindir dos
ensinamentos de CARLOS ROBERTO GONÇALVES:
"Uma das
teorias que procuram justificar a responsabilidade objetiva é a teoria do
risco. Para esta teoria, toda pessoa que exerce alguma atividade cria um risco
de dano para terceiros. E deve ser obrigada a repará-lo, ainda que sua conduta
seja isenta de culpa. A responsabilidade civil desloca-se da noção de culpa
para a idéia de risco, ora encarada como ‘risco-proveito’, que se funda no
princípio segundo o qual é reparável o dano causado a outrem em conseqüência de
uma atividade realizada em benefício do responsável (ubi
emolumentum, ibi onus)".
(ob.
cit., p. 29)
Segundo essa teoria, o dever de indenizar
não mais encontra amparo no caráter da conduta do agente causador do dano, mas
sim no risco que o exercício de sua atividade causa para terceiros, em função
do proveito econômico daí resultante.
Portanto,
consoante referido posicionamento, vale dizer que a parte que explora
determinado ramo da economia, auferindo lucros desta atividade, deve, da mesma
forma, suportar os riscos de danos a terceiros.
Deve-se
mencionar que a insatisfação produzida pela exigência de demonstração da culpa
na responsabilidade subjetiva foi fator preponderante para a mudança de
entendimento sobre os elementos caracterizadores do dever de reparar o dano.
Para
efeitos de esclarecimento dos fundamentos da teoria da responsabilidade
objetiva, deve-se citar o ensinamento de SÍLVIO RODRIGUES:
Na
responsabilidade objetiva a atitude culposa ou dolosa do agente causador do
dano é de menor relevância, pois, desde que exista relação de causalidade entre
o dano experimentado pela vítima e o ato do agente, surge o dever de indenizar,
quer tenha este último agido ou não culposamente.
A teoria do
risco é a da responsabilidade objetiva. Segundo essa teoria, aquele que,
através de sua atividade, cria risco de dano para terceiros deve ser obrigado a
repará-lo, ainda que sua atividade e seu comportamento sejam isentos de culpa.
Examina-se a situação, e, se for verificada, objetivamente, a relação de causa
e efeito entre o comportamento do agente e o dano experimentado pela vítima,
esta tem direito de ser indenizada por aquele."
(Direito
Civil, Volume IV, Editora Saraiva, 19ª Edição, São Paulo, 2002, p. 10)
No
direito brasileiro a teoria da responsabilidade sem culpa foi ganhando espaço
primeiramente em casos específicos, como ocorria no Código das Estradas de
Ferro, que em seu artigo 17 previa expressamente o seu acolhimento, valendo
ainda a ressalva para a Lei dos Acidentes de Trabalho e o Código Brasileiro do
Ar.
Posteriormente,
ganha importância e relevo a interpretação extensiva dada ao citado artigo 17
do Código das Estradas de Ferro, no sentido de reconhecer objetiva a
responsabilidade em praticamente todos os casos de acidentes envolvendo
transportes, sendo que no Código de Defesa do Consumidor o tema veio a ganhar
novos contornos, onde passou a ser reconhecida expressamente a responsabilidade
independente de culpa do fornecedor de produtos ou serviços (arts. 12 a 17,
CDC), baseada na teoria do risco-proveito.
Neste
contexto, o novo Código Civil tem relevo indiscutível, pois proporcionou o
entendimento de que a teoria da responsabilidade objetiva efetivamente
incorporou-se ao direito pátrio, como, aliás, já previa CÁIO MÁRIO DA SILVA
PEREIRA:
"Autores e
tribunais, manifestando franca tendência pela doutrina objetiva, reclamam,
contudo, contra a ausência de disposição genérica a permitir a afirmação de que
ingressou, efetivamente, em nosso direito positivo. No plano puramente teórico,
Rodiere observa que o insucesso da doutrina do risco provém da ausência de um
texto a sustentá-la, como ainda da "contradição irredutível entre o
sentimento que sugere e os resultados que ela propõe.
(...)
O Projeto do
Código Civil de 1975 (Projeto 634-B) absorveu a doutrina e estabeleceu, no art.
929, parágrafo único: Todavia, haverá obrigação de reparar o dano,
independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a
atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para o direito de outrem.
A tendência
manifesta dos dois projetos de reformulação de nosso direito privado faz prever
que, de
iure condendo, a teoria do risco encontrará abrigo em norma genérica de
nosso direito positivo."
(ob.
cit., p. 29/31)
Como dantes mencionado, o novo Código
Civil traz uma manifesta tendência ao acolhimento da responsabilidade objetiva
como regra geral em nossa sistemática, sendo importante a análise dos
dispositivos que permitem chegar a essa conclusão.
DAS
INOVAÇÕES DO CÓDIGO CIVIL QUANTO À ADOÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA
Da
análise dos artigos da Lei nº 10.406/2002 que tratam da responsabilidade civil,
pode-se dizer que as inovações são deveras significativas, mormente no que diz
respeito aos elementos caracterizadores ou que fundamentam o dever de reparar o
dano causado, conquanto é de fácil constatação que em diversos casos não mais
existe a necessidade da demonstração de culpa.
Assim,
o fato, e não a culpa, torna-se o elemento mais importante para
que surja o dever de reparar o dano causado, o que implica em radical evolução
a respeito da responsabilidade civil.
Como
será visto, é possível dizer que atualmente a responsabilidade objetiva veio a
desfrutar do prestígio que lhe apregoavam SALEILLES e JOSERRAND, bem como
arduamente defendido por AGUIAR DIAS.
A
despeito das várias inovações trazidas pelo novo diploma legal, persistiu a
redação do antigo artigo 159, atual 186, ao disciplinar sem maiores novidades
que "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou
imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente
moral, comete ato ilícito."
Por
certo que existem doutrinadores de escol a defender o entendimento de que ainda
persiste em nosso direito a responsabilidade subjetiva como a regra geral,
calcada na necessidade de demonstração de culpa por parte do agente causador do
dano, justificando esse entendimento da continuidade do artigo 186, que
traçaria a regra geral sobre o instituto.
Todavia,
a análise dos dispositivos concernentes à responsabilidade civil dão o nítido
caráter de mudança nos rumos da verificação dos elementos para que nasça o direito
de receber indenização.
O
primeiro e mais importante dispositivo que trata dessa alteração de
entendimento é o artigo 927, parágrafo único, ao estabelecer que "Haverá
obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados
em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano
implicar, por sua natureza, riscos para os direitos de outrem."
Nos
dizeres de CARLOS ROBERTO GONÇALVES, "A inovação constante do
parágrafo único do art. 927 do Código Civil será significativa e representará,
sem dúvida, um avanço, entre nós, em matéria de responsabilidade civil. Pois a
admissão da responsabilidade sem culpa pelo exercício de atividade que, por sua
natureza, representa risco para os direitos de outrem, da forma genérica como
consta do texto, possibilitará ao Judiciário uma ampliação dos casos de dano
indenizável. Pode-se antever, verbi gratia, a direção de veículos
motorizados ser considerada atividade que envolve grande risco para os direitos
de outrem. (ob. cit., p. 32).
Com efeito, a alteração introduzida pelo
dispositivo em comento é efetivamente aquela que pode ser considerada como uma
das mais importantes no campo da responsabilidade civil, porquanto relega ao
Judiciário a atividade de interpretar a atividade desenvolvida como de risco ou
não, para efeitos de atribuir a responsabilidade como objetiva. Este também é o
posicionamento de SÍLVIO RODRIGUES, ao comentar o parágrafo único do artigo 927
do Código Civil:
"A segunda
hipótese é de considerável interesse, pois se inspira diretamente na teoria do
risco em sua maior pureza. Segundo esta, como vimos, se alguém (o empresário,
por exemplo), na busca de seu interesse, cria um risco de causar dano a
terceiros, deve repará-lo, mesmo se agir sem culpa, se tal dano adveio. (...)
Muito aplauso
merece o legislador de 2002 pela inovação por ele consagrada.
Em conclusão,
poder-se-ia dizer que o preceito do novo Código representa um passo à frente na
legislação sobre a responsabilidade civil, pois abre uma porte para ampliar os
casos de responsabilidade civil, confiando no prudente arbítrio do Poder
Judiciário o exame do caso concreto, para decidi-lo não só de acordo com o
direito estrito, mas também, indiretamente, por eqüidade."
(ob.
cit., p. 162)
Em se admitindo a tendência atual da
doutrina e jurisprudência, pendente em ampliar o acesso à reparabilidade plena,
aceitando a teoria do risco, não se pode negar que a atividade do Judiciário,
no sentido responsabilizar objetivamente o empresário ou comerciante, pelos
danos que causar em função do exercício de sua atividade será um caminho fértil
para o enraizamento da responsabilidade objetiva como regra geral.
Portanto,
um dos principais méritos que devem ser concedidos aos codificadores civilistas
reside justamente no fato de possibilitar uma interpretação extensiva do que se
pode entender por atividade que envolva risco para terceiros, aumentando,
assim, as hipóteses de responsabilidade sem culpa, que mais se coadunam com os
ideais de justiça que inspiram o instituto e o pensamento da sociedade moderna.
Por
certo que somente o tempo demonstrará o acerto ou equívoco dessa afirmação, mas
não se pode negar que os últimos precedentes jurisprudenciais levam à indelével
conclusão de que o Poder Judiciário utilizar-se-á de forma ampla do disposto no
parágrafo único do artigo 927 do Código Civil como forma de aumentar as
hipóteses de indenização sem culpa.
No
entanto, para se chegar à conclusão de que a teoria do risco foi aceita pela
nova sistemática não se pode analisar isoladamente o artigo 927, mas todos os
outros dispositivos que tratam do tema.
O
artigo 931, a despeito de parecer tratar de relações de consumo, é o retrato do
que se vem tentando demonstrar no caso deste estudo, ou seja, o acolhimento em
nosso direito da responsabilidade objetiva, fundada na teoria do risco. Diz o
dispositivo em enfoque:
"Art. 931.
Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais
e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos
produtos postos em circulação."
A
explicação para a inserção do artigo no Código Civil reside justamente para
aquelas hipóteses em que, apesar de tratar-se de relação de consumo, não se
possa dizer que se trata de assunto afeto ao direito do consumidor.
Neste
caso, prevê o Código Civil que o empresário responderá de forma objetiva – isto
é, sem que seja necessária a verificação da culpa – pelos danos que forem
causados em função do produto ou serviço, bastando tão somente demonstrar a
existência do dano.
Pode-se
dizer, inclusive, que o artigo 931 é como que um complemento ao parágrafo único
do artigo 927, todos do Código Civil, ao delimitar que os riscos inerentes à
exploração de determinada atividade econômica são os fatos geradores do dever
de indenizar.
De
outro tanto, os artigos 932 e 933 vêm a explicitar o posicionamento que a
doutrina e a jurisprudência já tinham adotado antes mesmo do advento do novo
Código Civil, com relação aos antigos artigos 1521 a 1523 do diploma de 1916.
De
efeito, pela interpretação literal do artigo 1523 do Código Civil de 1916 não
se poderia chegar a outra conclusão senão de que a responsabilidade por atos de
terceiros seria sempre fundamentada na culpa, in vigilando ou in
contrahendo.
Ocorre
que a insatisfação decorrente desse entendimento, bem como o disparate com a
evolução das relações sociais, fez com que se desse nova interpretação aos
dispositivos, no sentido de entender que nesses casos a responsabilidade
deveria ser objetiva, buscando-se fundamento legal em legislações esparsas. É o
que se poderia dizer, a princípio, de julgamentos contra legem.
No
entanto, o Código Civil vigente veio a acabar com a controvérsia, disciplinando
de forma nova a matéria, como se percebe da leitura do artigo 933:
"Art. 933.
As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não
haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali
referidos."
Outros
dispositivos também trazem a inafastável conclusão de que a responsabilidade
civil objetiva realmente foi aceita pelo direito pátrio como regra geral, como
sói ocorrer com os artigos 936 a 940 do Código Civil.
Certamente,
aquele que tem animal sob sua guarda responderá objetivamente pelos danos que
vierem a ser causados por terceiros, porquanto seria difícil, senão impossível,
a demonstração da negligência, imperícia ou imprudência em um caso como este.
Ocorre, no caso do artigo 936 do CC, a nítida inversão do ônus da prova, ou
seja, o dono do animal somente se isentará do dever de ressarcir se conseguir
provar que se tratou de culpa exclusiva da vítima, ou ainda de força maior.
Referido
pensamento é completamente justo, pois aquele que possui animal perigoso
(oriundo de sua carga genética ou do modo de criação) deve assumir os riscos
dos danos que eventualmente possam ser causados, de modo a evitar-se casos de
impunidade, como freqüentemente ocorria.
O
mesmo se verifica com os proprietários de edifícios ou construção no que diz
respeito aos danos provenientes da ruína e de objetos que dele forem atirados,
consoante leitura dos artigos 936 e 937 do Código Civil.
Neste
caso também a responsabilidade será analisada tão somente pelo fato (existência
do dano). Vale dizer, para efeitos de verificação do dever de indenizar, deverá
ser demonstrado tão somente o dano para que resulte o direito ao ressarcimento.
Também
o credor que demandar por dívida já paga assume a responsabilidade objetiva de
indenizar o dobro do valor cobrado, e se ainda não for vencida, a aguardar o
tempo que faltava, descontando os juros correspondentes (art. 939 e 940), sem
se cogitar da necessidade de demonstração de culpa de sua parte.
Essas,
pode-se afirmar, foram as mais importantes alterações introduzidas pelo novo
Código Civil de 2002, donde é lícito concluir que a responsabilidade objetiva
ganhou notória importância, valendo ainda dizer que pode ser considerada como
regra geral no que diz respeito ao instituto.
De
efeito, a inclusão da responsabilidade objetiva como regra geral, ou mesmo como
forma mais ampla de se conceber o instituto da responsabilidade civil, se
coaduna com o moderno posicionamento do processo civil, no tocante à
necessidade veemente de se conferir maior efetividade ao provimento
jurisdicional.
Essa
conclusão torna-se insofismável, porquanto a análise dos dispositivos em
comento denotam a inequívoca intenção do legislador em ampliar os casos de
indenização sem culpa, como forma de providenciar o acesso à justa reparação, e
ao processo civil, que atinja seu escopo precípuo, que é a pacificação social.
É importante, contudo, dizer que o excesso conduz indiscutivelmente a injustiças, valendo ressaltar que em determinados casos, agora excepcionais com o advento do novo Código, deve persistir a responsabilidade subjetiva, tal como ocorre com os médicos e profissionais liberais, dentre outros, sob pena de engessamento do progresso econômico, o que redunda, em outro ponto, na impossibilidade de alcance dos objetivos previstos no artigo 1º da Constituição Federal.
Retirado de: www.jusnavigandi.com.br