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A
Relativização da Coisa Julgada nas Ações de Investigação de Paternidade
Vladimir Brega Filho
1. INTRODUÇÃO
Os
recentes progressos da ciência têm trazido grandes modificações nas relações
sociais e por conseqüência no Direito. Exames periciais cada vez mais exatos e
complexos têm solucionado muitos processos, outrora resolvidos pelos juízes que
se baseavam em suposições, indícios e presunções.
Um
exemplo claro deste avanço ocorre nas ações de investigação de paternidade. A
"certeza quase absoluta" do exame de DNA (99,99 %) permite que
processos, antes resolvidos em favor do investigado por falta de provas, sejam
julgados em favor do investigante com uma certeza que jamais existiu.
Se
para os casos futuros a solução é simples, resta-nos analisar a possibilidade
de que o exame de DNA seja utilizado para a resolução de processos que ficaram
indefinidos em razão da prova não ser suficiente para a atribuir a paternidade
ao réu. A renovação destes processos esbarra na coisa julgada e neste artigo
analisaremos a possibilidade da renovação destes processos.
2. COISA JULGADA
A
coisa julgada é "a decisão judicial de que não caiba mais recurso"
(LICC, art. 6o, § 3º). Pela coisa julgada "o direito
incorpora-se ao patrimônio de seu titular por força da proteção que recebe da
imutabilidade da decisão judicial".[1]
O
fundamento da coisa julgada "é a necessidade de estabilidade das relações
jurídicas. Após todos os recursos, em que se objetiva alcançar a sentença mais
justa possível, há necessidade teórica e prática de cessação definitiva do
litígio e estabilidade nas relações jurídicas, tornando-se a decisão
imutável".[2]
É
a coisa julgada uma das bases do direito e a imutabilidade decorrente dela é
uma garantia constitucional (art. 5º, inciso XXXVI), sendo por isso direito
fundamental e em razão do disposto no art 60, § 4º, inciso IV, é cláusula
pétrea da Constituição.
3. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Ao
lado do direito fundamental da coisa julgada, existem outros dispositivos
constitucionais que precisam ser analisados para a resolução do problema.
O
primeiro deles é o que estabelece entre os princípios constitucionais
fundamentais, o princípio da dignidade humana (art. 1o da
Constituição), sendo ele fundamento da República Federativa do Brasil.
Inicialmente
devemos destacar, seguindo os ensinamentos de José Afonso da Silva, que "a
dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um
desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência
especulativa, tal como a própria pessoa humana. A Constituição, reconhecendo a
sua existência e a sua eminência, transforma-a num valor supremo da ordem
jurídica, quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do
Brasil constituída em Estado Democrático de Direito".[3]
Sendo
um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, a dignidade humana na
lição de Luiz Alberto David Araujo é "um dos princípios constitucionais
que orientam a construção e a interpretação do sistema jurídico
brasileiro".[4]
No
mesmo sentido é o pensamento de Flávia Piovesan ao escrever que "o valor
da dignidade humana – ineditamente elevado a princípio fundamental da Carta,
nos termos do art. 1o, III – impõe-se como núcleo básico e
informador do ordenamento jurídico brasileiro, como critério e parâmetro de
valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional
instaurado em 1988. A dignidade humana e os direitos fundamentais vêm a
constituir os princípios constitucionais que incorporam as exigências de
justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema
jurídico brasileiro".[5]
Percebemos,
então, que o intérprete terá por obrigação interpretar a Constituição
observando este princípio, ou seja, qualquer interpretação que não garanta a
dignidade humana, haverá de ser tida como inconstitucional.
O
conteúdo axiomático da expressão dignidade humana é difícil de ser determinado,
pois contém um dado subjetivo muito forte. No mínimo podemos dizer, amparados
pelas lições de Celso Bastos e Ives Gandra Martins que "a referência à
dignidade humana parece conglobar em si todos aqueles direitos fundamentais,
quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico".[6]
No mesmo sentido é a conclusão de José Afonso da Silva quando diz que "a
dignidade humana constitui um valor que atrai a realização dos direitos
fundamentais do Homem, em todas as suas dimensões".[7]
De
qualquer forma, mesmo sendo difícil definirmos o conteúdo do princípio da
dignidade da pessoa humana, saberemos identificar situações em que o princípio
está sendo violado e ninguém em sã consciência poderá afirmar que ao impedirmos
a busca da paternidade, e por conseqüência uma série de direitos fundamentais,
estaremos observando o princípio constitucional. Não permitir que o autor,
mesmo com os progressos da ciência, possa descobrir quem é seu pai, é ferir por
completo a dignidade da pessoa humana.
A
certeza da paternidade é um dos ingredientes da dignidade da pessoa humana.
4. O DIREITO FUNDAMENTAL DA CRIANÇA À DIGNIDADE, AO
RESPEITO E À CONVIVÊNCIA FAMILIAR (art.227, caput)
Outro
aspecto de suma importância para entendermos a questão posta nos autos é a
colisão de direitos fundamentais, no caso entre a direito à segurança jurídica
decorrente da coisa julgada (art. 5o, XXXVI) e o direito da
fundamental da criança à dignidade, ao respeito e à convivência familiar (art.
227, "caput").
Embora
não incluído no capítulo dos direitos fundamentais, não há dúvida de que o
direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar constitui direito
fundamental da criança, pois constituem o mínimo necessário para a garantia de
uma vida digna.
Lembramos
que a própria Constituição, no art. 5o, § 2o, estabelece
que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem
outros decorrentes do regime e dos princípios por ele adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".
É
possível, portanto, encontrarmos direitos fundamentais fora do Título II (art.
5º ao 17º), sendo que a enumeração feita pelo constituinte, não exclui outros,
ou seja, não é taxativa.
Este
também é o entendimento do Supremo Tribunal Federal que já teve oportunidade de
analisar a questão. Na ADIN 939-7, relatada pelo Min. Sydney Sanches, o Supremo
reconheceu como garantia individual assegurada ao contribuinte o princípio da
anterioridade previsto no art. 150, III, "b", da Constituição
Federal, ou seja, fora do art. 5o, da Constituição.
Trechos
do voto do Ministro Carlos Velloso explicita o entendimento acima referido.
"Ora, a Constituição,
no seu art. 60, § 4o, inciso IV, estabelece que "não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV – os direitos
e garantias individuais". Direitos e garantias individuais não são apenas
aqueles inscritos nos incisos do art. 5o. Não. Esses direitos e
essas garantias se espalham pela Constituição" (trecho do voto do Min.
Carlos Veloso, RSTF 186/164).
Dessa
forma, podemos afirmar com convicção que o direito a dignidade da criança e à
convivência familiar também é direito fundamental e de algum modo deve ser
preservado.
5 . COLISÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Voltando
a análise da questão posta nos autos, podemos afirmar que existem dois direitos
fundamentais em colisão,[8]quais
sejam, a garantia da coisa julgada e o direito ao respeito e à convivência
familiar da criança.
Qual
deles deve prevalecer?
A
resposta é dada pela doutrina.
"Tratando-se de colisão
entre direitos fundamentais não sujeitos à reserva de lei, a solução fica por
conta da jurisprudência, que realiza a ponderação dos bens envolvidos, visando
a resolver a colisão através do sacrifício mínimo dos direitos em jogo."[9]
Deve
prevalecer, portanto, a interpretação que preserve ambos os direitos, não
havendo a possibilidade de que um deles seja totalmente suprimido, sob pena de
estarmos descumprindo a norma constitucional.
Voltemos
novamente ao caso em discussão. Caso a coisa julgada seja considerada direito
fundamental absoluto, estaremos extinguindo por completo o direito ao respeito
e à convivência familiar da criança, pois a criança jamais poderá descobrir
quem é seu pai e exercer direitos decorrentes disso. Por outro lado, caso seja
admitida a rediscussão do caso, estaremos preservando o direito da criança e
apenas arranharemos a garantia da coisa julgada.
Aqui
vale lembrar o alerta feito por Georges Kalinowski, quando fala da
interpretação das normas.
"Por outra parte, se a
interpretação chamada lógica e os argumentos interpretativos chamados lógicos,
terminam em um erro jurídico, desde o ponto de vista da utilidade, de justiça
ou outro critério propriamente jurídico, segundo o qual o jurista julga os
resultados de seu trabalho de jurista, não é que a lógica traga desgraça e sim
porque o jurista elegeu uma má (do ponto de vista jurídico) espécie de
interpretação."[10]
E
não será o risco para a segurança jurídica que irá impedir a propositura da
nova ação de investigação da paternidade. Mais importante que a segurança
jurídica é a dignidade da pessoa humana. Trata-se de princípio constitucional e
não apenas direito.
"Além disso, embora
todo o ordenamento jurídico esteja voltado a oferecer a necessária segurança e
estabilidade nas relações humanas, o certo é que não é a segurança jurídica o
primado último do Direito. Certamente, acima dele encontram-se outros
objetivos. Dentre esses, destaque-se, em especial, o princípio da
justiça."[11]
Assim,
a boa espécie de interpretação é a que relativiza a coisa julgada nas ações de
investigação de paternidade.
Lembro,
também, para demonstrar que o direito fundamental à coisa julgada não deve ser
considerado direito absoluto, que a qualquer momento o pai poderia ir ao
cartório e reconhecer a paternidade. Isso demonstra que a coisa julgada, neste
caso, é mais tabu do que realidade, não podendo servir para violar direito
fundamental do autor.
Frise-se,
porém, que a relativização da coisa julgada só ocorrerá nos casos em que não
ficou demonstrado que o réu era o pai da criança. Nestes casos, a paternidade
não foi excluída e por isso não haveria razão para impedir a rediscussão da
questão relativa à paternidade. Diferente será a solução, quando a sentença
concluiu pela improcedência da ação em razão do laudo pericial ter excluído de
forma absoluta a paternidade. Neste caso há um pronunciamento judicial de
certeza no sentido de que o réu não é o pai da criança, não sendo possível a
rediscussão da questão. Não há que se falar em colisão de direitos, pois há
prova cabal de que o réu não é o pai da criança e por isso não tem a criança
direito algum a preservar em relação ao réu.
Também
não será possível a rediscussão da causa nos casos em que a sentença, mesmo sem
um juízo de certeza, tenha reconhecido a paternidade, pois a atribuição da
paternidade a alguém, após o devido processo, não viola o princípio da
dignidade humana e muito menos viola o direito fundamental do investigado.
6. CONCLUSÕES
O
progresso dos exames periciais, especialmente os relativos a determinação da paternidade,
permite que ações de investigação de paternidade julgadas em desfavor dos
autores possam ser rediscutidas, pois os exames determinam com uma certeza
quase absoluta (99,999 %) a paternidade.
A
revisão destes processos, porém, esbarra na coisa julgada, que está prevista no
texto constitucional como sendo direito individual (art. 5º, inciso XXXVI)
sendo por isso inviolável.
O
direito individual relativo à coisa julgada não pode ser observado isoladamente.
O princípio da dignidade humana (art. 1o, III) é valor supremo da
ordem jurídica e deve ser observado na interpretação das normas
constitucionais. Também o direito fundamental da criança à dignidade, ao
respeito e à convivência familiar (art. 227, caput) deve ser considerado na
solução da questão e no conflito entre este direito e o direito à coisa
julgada, observando-se o princípio da dignidade humana, a única solução
aceitável é a que torna relativa a coisa julgada, permitindo a rediscussão da
paternidade nas ações em que não tenha sido excluída a paternidade.
NOTAS
1. Celso Bastos, Dicionário de direito constitucional,
p. 20.
2. Vicente Greco Filho, Direito Processual Civil
Brasileiro, p. 246.
3. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a
Constituição), p. 146.
4. Luiz Alberto David Araujo, A proteção
constitucional do transexual, p. 102.
5. Flávia Piovesan, Temas de direitos humanos, p.
34.
6. Comentários à Constituição do Brasil, v. 1, p.
425.
7. Poder constituinte e poder popular (estudos sobre a
Constituição), p. 149.
8. Edilsom Pereira de Farias (Colisão de direitos, p.
155) afirma que ocorre a colisão de direitos fundamentais "quando o
exercício de um direito fundamental por parte de um titular colide com o
exercício do direito fundamental por parte de outro
titular". 9. Edilsom Pereira de Farias, ibid, p. 155.
10.
Georges Kalinowski, Concepto, Fundamento y Concreción del Derecho, p.
121.
11. Celso Ribeiro Bastos, Hermenêutica e interpretação
constitucional, p. 31.
BIBLIOGRAFIA
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fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Livraria Almedina,
1998.
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do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000.
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Silva. Comentários à Constituição do Brasil, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 1988.
BASTOS, Celso Ribeiro. Hermenêutica e Interpretação
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Editor, 1999.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. A
honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liberdade de expressão
e informação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1996.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil
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1997.
KALINOWSKI,
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MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 8a
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PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São
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ROTHENBURG,
Walter Claudius. Princípios
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SILVA, José Afonso da. Poder constituinte e poder
popular (estudos sobre a Constituição). São Paulo: Malheiros, 2000.
________. Curso de direito constitucional positivo. 12a
edição, São Paulo: Malheiros, 1996.
Professor na Faculdade de Direito do Norte Pioneiro - Jacarezinho-PR
Mestrando em Direito pelo Centro de Pós-graduação - Faculdade de Direito de
Bauru
Promotor de Justiça no Estado de São Paulo
Colaborador da revista virtual Travelnet Jurídica
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