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A liberdade de pensamento e os direitos intelectuais

 

Eduardo C. B. Bittar

 

Doutor pelo Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Universidade de São Paulo, Coordenador do Curso de Direito da Universidade São Marcos, Professor de Filosofia do Direito da Universidade São Marcos e Professor de Metodologia da Pesquisa Jurídica dos cursos de graduação e pós-graduação da FAAP.

 

Article XI. "La libre communication des pensées et des opinions est un des droits les plus précieux de l'homme; tout citoyen peut donc parler, écrire, imprimer librement; sauf à répondre de l'abus de cette liberté dans les cas détérminés par la loi".

(Déclaration des droits de l'homme et du citoyen, décrétés par l'Assemblée Nationale dans les Séances des 20,21, 23, 24 et 26 août 1789, aceeptés par le Roi.)

Do texto constitucional podem-se destacar, dentre as demais garantias consagradas (CF/88, art. 5º), aquelas relativas à atividade intelectual, respectivamente postas nos incisos IV, IX, XXVII e XXVIII. A liberdade de manifestação de pensamento, a vedação de censura, os direitos patrimoniais, os direitos morais, a participação individual em obra coletiva, além do princípio da representação sindical e associativa para a proteção das obras intelectuais encontram acolhida na esfera do Texto Maior. São estes os importantes alicerces para o desenvolvimento de uma sociedade fundada no pluralismo das idéias, na liberdade do pensamento e no amplo acesso à cultura. De fato, a proteção ao patrimônio cultural brasileiro recebe menção expressa na textualidade constitucional, ressalvando-se, no art. 216, que: "Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas...".

Aqui, portanto, em sede constitucional, encontram-se os subsídios primígenos para a absorção de categorias que hão de dirigir a estrutura das demais normas possivelmente derivadas. Nem todo regramento normativo é fruto ocasional de uma concepção instantânea do legislador; há um processo de maturação cultural que precede a construção e a operosidade normativas, processo que posteriormente serve para o engajamento das normas na textura dos anseios sociais. As normas, pois, são derivantes das assentadas vigas culturais aceitas pela comunidade à qual se destinam. Na construção destas, vale-se o legislador dos juízos retrospectivo e prospectivo, sem descurar da situação sócio-econômico-cultural existente, para a ideação e para a formação do repertório de grades conceituais e prescritas que irão pairar como orientativas da conduta dos súditos normativos durante sua vigência. Por isso a importância de se investigarem os meandros da construção normativa que vige em sua amplitude principiológica no contexto constitucional, sede das irradiações normativas a ela subordinadas hierarquicamente.

A liberdade do pensamento e a liberdade de expressão são as grandes preocupações constitucionais dos países democráticos. Geralmente marcados por experiências totalitárias, a cláusula constitucional, atualmente, representa mais que um simples direito esculpido em sede constitucional; a norma inserida no texto da Carta Magna de um país é a fonte normativa insuprimível, vez que se encontra entre as garantias fundamentais, que se apõe sobre toda e qualquer investida das formas trevosas de governo. Sabe-se, e este é um paradigma da sociedade ocidental, que a liberdade de manifestação do pensamento inicia-se com a possibilidade de se investigar livremente, passando pela seara da exteriorização informal, e tocando os limites da concreção do pensamento em obra do pensamento. A preocupação do legislador originário, ao expor sua intenção de que nenhuma forma de governo possa obnubilar a construção de uma sociedade livre, é exatamente a de dar ampla proteção aos criadores e às respectivas criações.

Pela fórmula, sociedade livre só se pode entender uma sociedade que impõe a si mesma suas arestas, obviamente dentro dos limites do mínimo ético que cerca o direito. Impossível que as demandas culturais partam de esferas de comando político da sociedade. Impossível que haja plena vigência do espírito democrático em um meio onde as normas culturais são ditadas de cima para baixo. Estas irrompem, sim, de baixo para cima, se impondo, ao longo dos tempos, pelo seu valor intrínseco e reconhecido como valor a ser resguardado pelas gerações. Daí, em sede de teoria da cultura, poder-se afirmar que uma cultura se caracteriza e se singulariza pelo que é, pelo que foi, e pelo que será. Ela é legado, ela é construto, ao mesmo tempo que é um vir-a-ser contínuo. Inconteste, portanto, que os valores não se impõem, mas se compõem pela experiência das gerações.

A ética social sobre a qual se lastreiam os costumes e as normas de convívio nada mais pode significar que um ethos, ou seja, a partir da semântica grega, um hábito, um quê social reiterado e consagrado entre homens. Se de relações se compõem o espaço social, nestas relações se impõem os hábitos. O aceitável e o inaceitável são retirados de fórmulas sociais de repulsa ou de recepção das engenhosidades relacionais intersubjetivas. É certo que ao legislador resta o papel de orientador das fronteiras relacionais da sociedade, porém não está a ele cominada a tarefa de se tornar a fonte cultural da sociedade. Seu papel é regulamentador, o que não significa um agir sempre a posteriori com relação às instituições sociais; muitas destas derivam da própria mentalidade legislativa.

O discurso aqui presente visa, sobretudo, a explicitar a teleologia de um conjunto de normas que se assentam nos planos constitucional e infraconstitucional. As investidas do poder que podem servir para a facilitação do alcance dos anseios sociais nem sempre correspondem a este ideal, uma vez que a sua manipulação é sempre caminho para a realização de anseios singulares e egoísticos. Estes últimos sãos os diretivos da atuação do poder e se captam, se dessumem, se constroem constantemente através da autocrítica que os próprios membros da sociedade empreendem sobre o ego e sobre a alteridade. Uma vez que os homens são por natureza seres comunicantes - e assim os definamos com vistas à sua capacidade sígnico-logística de construção do pensamento e de expressão do mesmo -, estes empreendem seus ideais e realizam seus papéis dentro do tecido social a partir da constante e referente atividade de comunicação. A comunicação é a exteriorização do pensamento. Uma sociedade democrática se constrói pela maior comunicabilidade do pensamento. Aqui, portanto, o ponto nodal das prescrições enunciadas acima. A garantia de auto-realização da sociedade relaciona-se diretamente com a manutenção de um sistema aberto de comunicação entre seus membros. A supressão deste é a aniquilação, ainda que momentânea, da espontaneidade relacional intersubjetiva.

A supressão da livre comunicação e o exercício da coerção sobre o pensamento equivalem à robotização e à mecanização da liberdade humana. É lição corrente que a supressão do pensamento representa a melhor forma de comando entre os homens. Os súditos tornam-se alvo de uma manipulação flagrantemente simplista exercida pela ideologia ou pela ignorância. A supressão da liberdade de manifestação e de expressão do pensamento é o instrumental de dominação mais amplamente eficaz que se pode lançar para a cunhagem de uma sociedade de vassalos, onde as mais fortes vozes de liberdade tornam-se inócuas em gritar brados de independência; a vassalagem é servil aos princípios por ela absorvidos, e tende a extinguir-se com as próprias forças que a engendraram.

O homem, enquanto ser logístico, tem no lógos (greg., discurso, palavra) sua potência atualizadora do pensamento; restringir esta é restringir aquele, de modo que a afetação de um representa a afetação também do outro. Os armamentos de que procurou o legislador munir a cidadania, para que possa fazer valer seus direitos a todo tempo, e independentemente de qualquer força política, são as normas maiores constantes do texto constitucional, garantia que afeta o individual, por se tratar de garantia do indivíduo, mas, de maneira indireta, também o coletivo, por se tratar de questão profundamente ligada aos próprios anseios da sociedade.

Em poucas palavras, onde há pensamento há crítica, onde há crítica há democracia. Atentar contra a liberdade de interagir com idéias e ideologias diferenciadas daquelas predominantes no exercício do poder é massacrar a oportunidade de abertura de novos horizontes políticos e democráticos.

 

 

Retirado de: www.saraivajur.com.br