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A anulação convencional dos negócios jurídicos e suas repercussões

 

 

 

 

Isaac Sabbá Guimarães*

 

 

 

Nota Prévia

 

A presente monografia é parte integral de um trabalho apresentado na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, no ano de 1997, durante o curso de mestrado do autor. Portanto, os dispositivos legais nela mencionados, referem-se à legislação civil portuguesa. Mas é de salientar-se que a matéria transcende os limites daquele país. É vasta comportando acaloradas discussões no universum jurídico, tanto no meio acadêmico como no mundo da praxis forense. O trabalho põe em cotejo diversos sistemas, sendo que boa parte da doutrina sobre nulidade e anulabilidade dos atos serve perfeitamente para o regime doutrinal brasileiro. Além do mais, outros aspectos sobre a lei civil portuguesa poderão interessar aos estudiosos, que no mister da investigação sempre mostram o lado inerente ao jurista: o da curiosidade.

 

Xanxerê, outono de 1999

 

 

O autor

 

 

 

SUMÁRIO

 

1. Introdução

1.1. Considerações preliminares sobre a ineficácia negocial

1.2. Da nulidade e da anulabilidade

1.3. O caráter de relatividade, intrínseco aos atos anuláveis e o seu significado para a doutrina e para o direito substantivo civil.

 

2. Os sistemas de anulação

2.1. O sistema judicial

2.2. O sistema unilateral

 

3. Um terceiro gênero: a anulação convencional

3.1. Convenção: anulação por ato formal ou informal? Os modos de anulação convencional.

3.2. As condições para a anulação convencional.

3.2.1. As partes com prerrogativas para a anulação.

3.2.2. Fato anulável típico e atípico.

3.3. A validade da convenção

3.3.1. Será necessária a intervenção judicial?

3.4. Os efeitos da anulação convencional

 

4. Conclusões

1. Introdução

 

A invalidade dos negócios jurídicos, advinda, grosso modo, de defeitos de sua elaboração, pode ser delimitada pela ineficácia relativa e sanável, caso em que se depara com o fato anulável típico. Esta espécie de ineficácia negocial, como seu característico de relatividade implicitamente deixa entrever, pode ser resolvida pela sua declaração em atividade judicial, cuja provocação pertence a quem tenha prerrogativa para tal, extinguindo, pois, seus efeitos ab initio.

 

Não se pode olvidar que os atos anuláveis trazem consigo, não um aspecto de menor importância em relação aos fatos nulos, mas o intrínseco caráter de relatividade, uma vez que o âmbito de interesses está atrelado a particulares, sem que se afetem interesses do ordenamento público. Daí que se restringe o elenco de pessoas a declarar a ineficácia do negócio, ou com prerrogativas para invocar a tutela jurisdicional.

 

O presente trabalho, ao adentrar nessa "matière qui est déjà suffisamment complexe et délicate par elle-même", alinhará, no seu intróito, aspectos genéricos sobre a ineficácia negocial, para, num segundo instante, delimitar a anulabilidade. Feito isto, passar-se-á a uma breve incursão sobre os modos de declaração da anulabilidade, para, só, então, dedicarmo-nos à anulação convencional - aspectos doutrinários e sua ocorrência na legislação civil.

 

A questão de fundo, e que suscita um maior grau de interesse no tema da monografia, é a repercussão causada pela anulação convencional. Surgirão, à medida que as idéias sejam expostas, questões acerca da validade da convenção e sobre a proteção aos direitos de terceiros intervenientes nos negócios jurídicos. Questões para as quais dar-se-ão respostas consentâneas com a doutrina e a legislação civil em vigor.

 

 

1.1. Considerações Preliminares sobre a Ineficácia Negocial

 

A complexidade da matéria, muito apropriadamente notada por de Page, já surge nos contornos doutrinários sobre as espécies de ineficácia. Inúmeras classificações são propostas pelos autores e o direito positivo, por vezes, ao adotar uma ou outra classificação, acaba por incidir em graves imperfeições jurídicas. Imperfeições que, por sinal, tentou o legislador alemão evitar, tornando o texto do BGB o mais isento possível de uma perspectiva doutrinária, ao menos no que se refere ao título dos negócios jurídicos.

 

A ineficácia, segundo uma posição consensual dos autores, pode ser vista no seu sentido mais amplo, a chamada ineficácia lato sensu, comportando outras modalidades de defeitos jurídicos e num sentido mais específico, in stricto sensu.

 

Segundo a definição amplamente aceita, a ineficácia lato sensu ocorre quando "um negócio não produz, por impedimento decorrente do ordenamento jurídico, no todo ou em parte, os efeitos que tenderia a produzir, segundo o teor das declarações respectivas". Trata-se, pois, da ocorrência de causas intrínsecas ou extrínsecas ao negócio que o maculam de defeito, de vício suficientemente capaz de toldar a consecução de seu fim. Ocorre pela inobservância dos requisitos legais para o negócio, bem como pode emanar da expressão de vontade obtida, v.g., mediante fraude, quando a lei quer que os contraentes se pronunciem de forma livre, consciente e espontânea. Enfim, a idéia de ineficácia suscitaria uma vasta gama de exemplos perfeitamente adaptáveis ao âmbito de "impedimento decorrente do ordenamento jurídico". Por isso, a melhor doutrina costuma, a partir desse tronco, dividir em modalidades a ineficácia.

 

Comumente aceita foi, até bem pouco tempo, a divisão tripartida de ineficácia. Falava-se, então da inexistência; da invalidade e da simples ineficácia. Classificação esta que não angariou a simpatia de um expressivo número de civilistas, que marcadamente impõem restrições ao estranho conceito de inexistência. Preferem deslocar essa categoria para um campo autônomo da ineficácia.

 

Surgida na doutrina francesa do século passado, a figura da inexistência caracteriza-se pela inocorrência das condições essenciais ao negócio, de tal forma grave e defeituosa que faria supor o negócio como materialmente inexistente. Na bem colocada doutrina de Manuel Andrade, a inexistência é vislumbrada "quando nem sequer aparentemente se verifica o corpus de certo negócio jurídico. Quando nem sequer na aparência existe uma qualquer materialidade que corresponda à própria noção de tal negócio. Temos ainda inexistência quando, embora exista essa aparência, a realidade não corresponde todavia àquele conceito" . E a idéia de inexistência é tão vaga, posto que não se pode conceber um início de negócio ou sua efetivação que em nada venha a resultar sequer materialmente, que os exemplos surgem bastante escassos. Essa própria noção turva de inexistência leva a uma posição extremada de sua eliminação como categoria dos defeitos dos negócios jurídicos, à maneira de como expressa-se Galvão Teles. Cunha Gonçalves, que não vê de maneira clara a fronteira entre a figura da nulidade e da inexistência, afirma, de maneira peremptória, que "a distinção entre inexistência legal e nulidade absoluta tem mais valor teórico do que prático, poisque uma e outra produzem idênticos efeitos".

 

É questão bizantina mover-se nos meandros desse conceito tão pouco claro e aceito pela doutrina. Mas vale lembrar o clássico exemplo em que se empregou sua noção. O caso de duas pessoas do mesmo sexo, dirigirem-se ao oficial público para convolarem matrimônio. Ante a impossibilidade da concretização do casamento entre pessoas do mesmo sexo, têm-se inexistente aquele ato. Curiosamente, o Código Civil português acolheu a figura de inexistência precípua e unicamente no capítulo referente à invalidade do casamento.O art. 1628º considera inexistente o casamento celebrado por quem não tinha competência para o ato, trantando-se de casamento urgente; quando o casamento urgente não for homologado; quando tenha faltado declaração de vontade de um ou de ambos nubentes ou do procurador de um deles; o casamento contraído por intermédio de procurador, quando cessado os efeitos da procuração, ou quando esta não tenha sido outorgada por quem nela figura como constituinte, ou quando seja nula por falta de concessão de poderes especiais para o ato ou de designação expressa do outro contraente; por fim, quando o casamento for contraído por duas pessoas do mesmo sexo.

 

A conseqüência importante do enquadramento da inexistência é a de se fixar a absoluta ausência de efeitos jurídicos. Enquanto que a anulabilidade e, até mesmo a nulidade podem gerar efeitos, a inexistência é estéril. Contudo, o enquadramento dos casos não resulta complicado, posto que o ordenamento positivo só concebeu a figura de inexistência em relação ao casamento.

 

Seguindo a taxionomia amplamente aceita, os civilistas incluem a ineficácia em sentido estrito que, ao invés de significar a eiva ou defeito intrínseco ao negócio jurídico, como se verifica nas invalidades, forma-se a partir de "alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação complexa (fattispecie) produtiva de efeitos jurídicos". Subdivide-se, por sua vez, em ineficácia absoluta, que opera erga omnes, que pode ser invocada por qualquer interessado; e em ineficácia relativa, restrita a certas pessoas que intervêm diretamente no negócio e que só a elas diz respeito a ineficácia..

 

Por fim, temos as invalidades negociais, sobre as quais dedicaremos maior atenção, não por representarem categorias mais importantes da ineficácia negocial, mas, sim, por estarem estreitamente conexionadas com o tema do trabalho. É verdade, também, que o direito positivo acolheu as invalidades, deixando as demais figuras sem aplicação, à exceção, como já citado acima, da figura da inexistência.

 

Segundo uma doutrina já não usual, as invalidades decorriam das nulidades absolutas e das nulidades relativas, sendo aquelas caracterizadas por uma maior gravidade em relação a estas. As nulidades absolutas eram assim classificadas "por motivos de interesse público", enquanto que as nulidades relativas diziam respeito ao "interesse particular". Em matéria já tão pejada de confusões e dificuldades doutrinárias, a terminologia então usada e também adotada pelo antigo Código Civil português, contribuía ainda mais para agravar a situação.

 

 

1.2. Da Nulidade e da Anulabilidade

 

É bem provável que essas dificuldades advindas da antiga terminologia das espécies de invalidades, não só dos doutrinadores, mas também do exegeta, que por vezes tropeçava em conceitos pouco precisos e em preceitos do direito positivo às vezes confusos, tenham levado à adoção de uma nova taxionomia.

 

Assim, ao invés de usar-se o termo nulidade absoluta, passou-se a usar, simplesmente, nulidade. Para exprimir-se a idéia de nulidade relativa, utiliza-se o termo anulabilidade. Dessa forma, a concepção que se tinha de nulidade absoluta, amolda-se, perfeitamente, à figura de nulidade, assim como o conceito de nulidade relativa serve à anulabilidade.

 

Falou-se, a pouco, que a nulidade absoluta tinha um grau mais elevado de gravidade em relação à nulidade relativa, e que ela pressupunha a salvaguarda de interesses públicos. Tais princípios servem à nulidade. Também falou-se que a nulidade relativa dizia respeito a interesses de ordem privada, o que, mutatis mutandi, qualifica o regime da figura de anulabilidade. Mas até agora vimos traços muito genéricos dessas categorias de invalidades. São elementos que, a princípio, não permitem uma perfeita caracterização das invalidades. Caracterização esta que não se pode olvidar, na medida em que elas em muito vão importar quando chegarmos ao ponto axial deste trabalho.

 

O estabelecimento do regime de interesses em que se fundam as categorias da nulidade e da anulabilidade, são o ponto de partida para traçar-se sua caracterização. Da idéia de salvaguarda dos interesses de natureza pública, advem, de forma consentânea, a configuração da nulidade, assim como o pressuposto de interesse privado oferece-nos o perfil da anulabilidade.

 

As características da nulidade, segundo Ferrara são:

 

"a) il negozio non produce gli effetti propri del gruppo cui appartiene; b) l’azione de nullità è dechiarativa o di mero accertamento; c) il negozio non può sanarsi nè per convalida (che è, di regola, inammisibile - articolo 1423 - ; per le eccezioni, vedi tra breve) nè per prescrizione dell’azione che è, appunto, imprescrittibile (art. 1422, cod. civ. ); d) di regola (art. 1421) la nullità può rilevarsi di ufficio e può farsi valere da chiunque vi ha interesse (in tal senso, nullità assoluta); e) la nullittà è, di regola, opponibile anche contro e terzi".

 

Com referência a anulabilidade, o citado autor italiano cita as seguintes características:

 

"a) produce gli effetti, finché non viene annullato; b) l’annullamento ha luogo a mezzo di una sentenza costitutiva (risolutiva); c) di regola, l’annullabilità può farsi valere solo da una parte determinata; il negozio annullabile può sanarsi (per convalida, prescrizione o altre cause); e) l’annullabilità è, di regola, opponibile ai terzi; ma le eccezione a tale opponibilità sono più numerose di quelle poste per la nullità".

 

A doutrina de Ferrara, no entanto, por ser demais minuciosa, está sujeita a restrições. Aqui, por exemplo, não nos interessa a natureza da sentença de nulidade ou de anulabilidade. O que importa é a perfeita tipificação das duas categorias de invalidade. Por isso, é preferível traçar-se as caraterísticas da nulidade e da anulabilidade em linhas mais amplas, que não comportem dúvidas ou exceções, segundo a doutrina aceita por um vasto número de autores.

 

Assim, quanto à nulidade pode-se arrolar as seguintes características:

 

a. opera ipso iure ou ipsa vi legis . Quer dizer, não é necessário se intentar uma ação para ver declarada a nulidade. Devido sua relação com interesses de natureza pública, a nulidade pode ser declarada ex officio pelo tribunal. Essa característica, aliás, vem expressa no art. 286 do Código Civil português.

 

b. Também em razão do interesse público, justifica-se que a nulidade possa ser invocada por qualquer pessoa interessada. É óbvio que a expressão "qualquer interessado", inclusivamente utilizada pelo referido art. 286, não remete a uma generalidade indistinta de pessoas com a legitimidade para tal desiderato, mas, somente, ao "sujeito de qualquer relação jurídica afectada, na sua consistência jurídica ou práctica, pelos efeitos que o negócio se dirigia" .

 

a. A nulidade é insanável pelo decurso do tempo (a essa característica também refere-se o art. 286), podendo, pois, ser invocada a qualquer tempo. Entretanto, o fato de poder ser invocada a todo tempo não significa que a sua declaração resulte positivamente. Contra a argüição de nulidade, pode-se levantar, como objeto de defesa, o usucapião, como forma de prescrição aquisitiva.

 

b. A nulidade é insanável por confirmação (é o que se depreende pela interpretação, a contrário, do art. 288). Isso quer dizer que a nulidade não tem remédio. Nem por ato dispositivo do sujeito que teve o negócio invalidado pela eiva pode-se consertar a nulidade. Por outro lado, nada impede às partes intervenientes que renovem o ato nulo.

 

As características concernentes à anulabilidade são as seguintes:

 

a. tem de ser invocada pela pessoa dotada de legitimidade. Aqui estamos diante de interesses privados e por isso a anulabilidade só é aproveitada pelas pessoas diretamente intervenientes no negócio. Assim, exclui-se a possibilidade de declaração ex officio por parte do tribunal. Este só age quando provocado em competente ação de anulabilidade, ou declara-a quando invocada por meio de exceção.

 

b. Apenas determinadas pessoas podem invocar a anulabilidade. Pessoas "em cujo interesse a lei" estabelece legitimidade (art. 287), que estão diretamente conexionadas ao negócio contaminado de vício.

 

a. A anulabilidade sana-se pelo decurso do tempo. Quer dizer, se a parte interessada (detentora de legitimidade) não invocar a anulabilidade no prazo prescrito em lei, o seu direito preclui e o vício é sanado, passando o negócio a produzir todos os efeitos a que tendia. Para a generalidade dos casos, o art. 287 estabelece o prazo de um ano para a argüição da anulabilidade, mas outros prazos existem para casos específicos.

 

d. A anulabilidade pode ser sanada pela confirmação. A confirmação, como já se disse de passagem em outro momento, é o ato unilateral, praticado por quem tenha a legitimidade para argüir a anulabilidade e consiste na vontade de conceder eficácia ao negócio. Seus efeitos geram eficácia retroativa, mesmo em relação a terceiro.

 

Extrai-se dessa rápida incursão pelas características da nulidade e da anulabilidade que, sendo a primeira das categorias voltada para a salvaguarda de interesses públicos, podendo até mesmo ser declarada ex officio pelo tribunal e não sendo passível de sanação pelo decurso de tempo e pela confirmação, sua natureza muita mais rigorosa do que a da anulabilidade, não permite, de modo algum, a prevalência da vontade das partes diretamente em jogo. Quer dizer, uma vez constatado o vício caracterizador da nulidade, outro remédio não há senão a renovação. Já a anulabilidade, cujo regime destina-se à proteção dos interesses privados, declarada unicamente pela manifestação nesse sentido da parte legítima, diretamente envolvida no negócio, conhece a possibilidade de sanação, tanto pelo decurso de tempo, como pela confirmação. Basta que a parte legitimada deixe fluir o prazo de argüição da anulabilidade, para que o negócio se tenha como sanado. Por outro lado, pode também a pessoa com tal prerrogativa confirmar o negócio, para que dele surtam seus efeitos esperados, sanando-se, pois, a eiva. É, assim, uma categoria de invalidade menos rigorosa em relação à nulidade. Permite certa flexibilidade no uso de meios como remédio da eiva. E se é flexível quanto à sanação, também pode comportar possibilidades quanto aos modos de sua argüição, como, aliás, já deixa entrever o art. 291, nº 1, in fine.

 

Dessa primeira aproximação, conclui-se pela impossibilidade da convenção em matéria de nulidade. Os supremos interesses de ordem pública não permitem uma transação sobre a nulidade. O seu rigor exige a proclamação judicial e, até mesmo, sua intervenção independetemente da vontade das partes diretamente envolvidas. São os interesses maiores a requerer a providência. Já no que toca à anulabilidade, como dito anteriormente, vislumbra-se maior possibilidade de uma declaração convencional, até porque sua gênese está num negócio que envolve interesses privados. Partindo dessa premissa, fixa-se o ponto central do trabalho na anulabilidade.

 

1.3. O Carácter de Relatividade, Intrínseco aos Atos Anuláveis e o seu Significado para a Doutrina e para o Direito Substantivo Civil.

 

 

Ao mencionarmos a antiga terminologia das invalidades usada pelos civilistas e adotada pelo anterior código civil, tivemos em vista o propósito de realçar a tipologia da anulabilidade. Com inteira propriedade, escreve Rui de Alarcão que "Existe inegável afinidade entre aquelas classificações, mas não uma verdadeira identidade. Poderá falar de identidade quem defina o negócio nulo como um negócio cuja invalidade é, necessariamente, automática (isto é, operante «ispo iure»), absoluta (quer dizer: invocável por quem quer que seja) e insanável (não podendo, pois, o negócio ser convalidado), e atribua ao negócio anulável precisamente os caracteres opostos - invalidade não automática, relativa e sanável".

 

A relatividade no contexto doutrinário significa, justamente, que a anulabilidade, antes de poder ser invocada por um número indeterminado de pessoas ou, até mesmo declarada ex officio pelo tribunal, encontra um âmbito mais restrito. Sua argüição dependerá da vontade da pessoa legitimada para esse desiderato. Assim é que se refere expressamente o art. 287 do código civil:

 

"Só tem legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece…"

 

Mas nem toda nulidade corresponderá exatamente às caracterísitcas já assinaladas, na mesma medida em que há exceções na morfologia das anulabilidades. Algumas, por exemplo encontram um âmbito mais amplo de pessoas com prerrogativa de argüição. Por essa razão é que não se pode conceber como precisa a relação que alguns civilistas estabelecem entre a antiga terminologia e a atual.

 

Por existirem aspectos variantes nas invalidades é que se fala de uma categoria mista. Mota Pinto a ela refere-se, mencionando que "A lei, por vezes, afasta-se da simetria das construções para estabelecer invalidade de carácter misto (p. ex., art. 1939º, nºs. 1 e 2). Quebra, assim, a harmonia estética do sistema, mas configura soluções (invalidades mistas) mais adequadas aos interesses que constituem a matéria da respectiva regulamentação". Haveria para este autor uma terceira categoria de invalidades, com características da anulabilidade e da nulidade.

 

Rui de Alarcão, no entanto, contesta a criação de uma terceira espécie de invalidades, tendo em vista que a caracterização das nulidades e anulabilidades não constituem definições estanques. Por isso mesmo é que alerta para o princípio falho de correspondência estabelecida entre a terminologia atual e a anterior. E lui-même conclui seu raciocínio segundo o qual ordena as nulidades em típicas e atípicas e as anulabilidades típicas e atípicas.

 

A lei estabelece várias hipóteses em que a anulabilidade cede campo ao um interesse mais pungente, de natureza pública. Não se nega, por exemplo, a proeminência do caráter público em matéria de matrimônio. Justamente por isso é que a anulabilidade fundada em impedimento dirimente pode ser argüida não só pelos próprios cônjuges, mas também "por qualquer parente deles na linha reta ou até ao quarto grau em linha colateral, bem como os herdeiros e adoptantes dos cônjuges e o Ministério Público", conforme dispõe o art. 1639, nº 1. É caso exemplar da anulabilidade atípica.

 

Nos casos em que a anulabilidade tem uma forte carga de interesse público, constituindo-se, pois, na forma atípica, deve ser afastada a hipótese de sua argüição através de convenção. Aliás, o art. 1632 do código civil adverte que "A anulabilidade do casamento não é invocável para nenhum efeito, judicial ou extrajudicial, enquanto não for reconhecida por sentença em acção especialmente intentada para esse fim". Afastada, pois, de forma peremptória, a possibilidade de anulabilidade do casamento por livre disposição das partes. Trata-se de preceito coerente com a importância que se deve dar à instituição do matrimônio.

 

2. Os Sistemas de Anulação.

 

Já foi dito que para levar a cabo os efeitos da anulação torna-se necessária sua argüição dentro do prazo de lei (para que o direiro não se preclua), pela pessoa legitimada. A legitimação decorre da proteção da lei erigida em favor de quem tem seu interesse lesado pelo vício. Mas a doutrina e os tribunais vêm há muito discutindo sobre os modos ou sistemas de declaração das anulabilidades, havendo, por vezes, tentativa de sua flexibilização, o que, aliás, é bem adequado ao instituto de cariz notoriamente privado.

 

Rui de Alarcão assinala dois sistemas de anulação: o da anulação judiciária, expressamente adotado pelo vigente código civil português (art. 287º, nº 2) e o sistema de anulação unilateral (adotado pelo direito positivo alemã).

 

2.1. O Sistema Judicial

 

O direito substantivo civil portugûes adotou o sistema judicial de anulação (art. 287º, nº 2), segundo o qual a declaração de anulabilidade necessita de uma ação própria, colimando a atividade positiva do judiciário. Sistema esse já existente no antigo código civil e que permaneceu incólume na reforma operada. Por isso, permanece atual a lição de Galvão Telles:

 

"a intervenção dos órgãos da justiça torna-se aqui juridicamente indispensável. O acto simplesmente anulável constitui uma fonte viva que só o tribunal pode estancar".

 

Assim, sem a declaração por sentença, a anulabilidade não se opera e o negócio continua a gerar seus efeitos como se válido fosse. Validade precária, é importante frisar, pois que a situação muda de figura quando a sentença declara a anulabilidade.

 

Dentro do sistema judicial de anulação, há lugar para sua argüição através de exceção (art. 287º, nº 2, in fine). Ela consiste em matéria de defesa por parte de quem é chamado a juízo para dar cumprimento ao negócio

 

2.2 O Sistema Unilateral

 

O sistema de anulação unilateral, como já referido antes, coaduna-se com o enquadramento da matéria no campo dos interesses privados. Aqui prevalece o interesse particular colocado em jogo, quando a parte legítima vislumbra a ocorrência de algum vício do negócio determinante de anulabilidade.

 

Ao invés de utilizar-se dos complexos caminhos processuais, objetivando a declaração da anulabilidade, basta a simples declaração privada da pessoa dotada de prerrogativa para esse exercício. É , pois, a «einseitige empfamgsbedürftige Willenserklärung» expressa no § 143 do BGB, que Rui de Alarcão transportou para o seu projeto de código civil. Apesar de uma aparente fragilidade desse sistema, o declarante que encontrar resistência ou oposição da contraparte, poderá buscar o apoio judicial, que declarará por sentença se a anulação preenche os requisitos legais.

 

3. Um Terceiro Gênero: A Anulação Convencional

 

Apesar de o legislador português não se ter seduzido pelo pragmatismo do sistema alemão, admitiu, mesmo que de forma muito tímida, um seu sucedâneo. Nas entrelinhas do artigo referente à inoponibilidade da nulidade e da anulação, menciona que os direitos de terceiro de boa fé prevalecerão se o seu registro (de bem móvel ou imóvel sujeito a registro) for anterior "ao registo da acção de nulidade ou de anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio" (grifamos. Art. 291º, nº 1, in fine). É a admissão da anulação por mútuo consenso ou convencional, que não se adequando ao sistema judicial, nem ao sistema unilateral (apesar de com ele ter um ponto de contato), pode muito bem figurar como um terceiro gênero.

 

A anulação convencional pressupõe um entendimento entre a pessoa legitimada a invocar a invalidade e a contraparte. Percebendo aquela o vício ocorrente no negócio (um vício de formação, por exemplo), procura a outra parte e expõ-lhe suas razões para invocar a anulação. Em havendo manifestação convergente de interesses e de vontade, o negócio conhece seu termo, cessando, pelo acordo, os efeitos do negócio. É, na prática, um sistema simples e rápido, na medida em que prescinde da atividade judicial.

 

De certa forma, pode estabelecer-se uma certa familiaridade com o sistema unitário, na medida em que o acordo de anulação pode se originar da iniciativa da pessoa legitimada para anular, que procura a outra parte, declara o vício e seu interesse. Mas afasta-se do sistema unitário no momento de operacionalização. Enquanto que no sistema unitário a anulação se esgota com a declaração do interessado (que se opuser resistência remeterá a matéria à apreciação judicial), na anulação convencional o interessado necessitará da adesão de vontade da outra parte.

 

A convenção é em mais de uma vez prevista no código civil. Este estatuto permite que a resolução do contrato se dê através de convenção das partes (art. 432º, nº 1). E logo na disposição seguinte, equipara a resolução do contrato (quanto aos efeitos) à nulidade ou anulabilidade. Mas Castro Mendes faz uma advertência sobre o equívoco cometido pelo legislador:

 

"Uma coisa porém é a revogação, outra a invocação duma causa de nulidade ou anulabilidade, e no segundo caso da vontade de anular, por uma das partes, e a sua aceitação pelos outros interessados. A esta declaração unilateral reconhecida fundada se deve referir o art. 291º, nº 1 pela expressão "acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio".

 

 

Também valemo-nos de Castro Mendes para trazer à colação um exemplo de anulação convencional:

 

"A vende x a B. Entende que a venda foi inquinada de erro relevante. Pode declarar a B querer anular e B reconhecer extrajudicialmente o fundado da pretensão. E o negócio fica anulado"

 

É, aliás, interessante notar, que na lição do citado autor se encontra o descrito ponto de conexão existente entre a anulação por convenção com o sistema unilateral.

 

Em caso de resistência de uma das partes, necessariamente a anulação deverá ser levada ao exame judicial. Passa-se, portanto, de forma alternativa ou subsidiária, ao sistema judicial.

 

3.1. Convenção: Anulação por Ato Formal ou Informal? Os modos da Anulação Convencional.

 

Já mencionamos alhures que tem a anulação convencional certa identidade com o sistema unilateral de anulação, do direito germânico, operada através da manifestação de interesse de quem tenha a prerrogativa para anular o negócio. A anulação dá-se, assim de forma expressa, não admitindo a passividade da parte legitimada para o ato ou seu completo silêncio. Na anulação convencional também ocorre a manifestação expressa do interesse de anular e a aquiescência pela parte contrária. Só que, diversamento do que se verifica no sistema unilateral, aqui entram em jogo as duas partes. Uma emite sua intenção de anular, a outra lança sua concordância, sem a qual a anulação não se verificaria, pelo menos no âmbito extrajudicial. Depreende-se disso que a anulação deve ser expressa, deve provir de forma clara, sem obstáculos para a sua compreensão e validade entre as partes. Mas além de expresso o ato deverá revestir-se de alguma formalidade?

 

Numa primeira tentativa de resposta à indagação, recorremos ao art. 291º, nº 1, do código civil, que fala em "registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio" referente a negócios que envolvam bens sujeitos a registro. E quando se fala em registro, está-se a falar de formalidade, inerente ao negócio e que tem o condão de se fazer valer contra terceiros. Realmente, certos negócios realizam-se mediante atos formais, como é o caso da compra e venda de um imóvel, que está sujeito a registro. Neste caso, a anulação também deve revestir-se de formalidade, registrando-a no órgão competente. Dessa forma, as partes desoneram-se das obrigações assumidas e fazem com que seu ato tenha o caráter erga omnes. Mas todos negócios anulados estarão sujeitos à formalidade?

 

A resposta a essa indagação parece ser negativa. Senão vejamos.

 

O disposto no art. 291º, que prevê a anulação convencional, refere-se ao seu registro na hipótese de o negócio relacionar-se a bens móveis ou imóveis sujeitos a registro. A lei, portanto, excluiu a necessidade de registro para os negócios de natureza não formal.

 

Havendo pontos de conexão entre o sistema unilateral e a anulação convencional e adequando-se ambos à natureza privada do instituto da anulabilidade, a anulação convencional, assim como aquele sistema, também deixa para um segundo plano os atos de caráter formal.

 

Por fim, valemo-nos das palavras de Japiot sobre a anulação convencional, quando ele arrolava suas vantagens em relação ao sistema germânico:

 

"No direito francês, na hipótese de anulação convencional, o acordo não será concuído pelas partes a não ser que o titular do direito de anulação aceite nítidamente vincular-se, pois a contraparte não consentirá vincular-se ela própria, reconhecer a nulidade, salvo se obtiver daquele uma vinculação igualmente segura; e as partes, discutindo livremente, não aceitarão obrigar-se a não ser que cada uma delas obtenha da outra uma prova segura do acordo, por exemplo, através de um escrito em duplicado; com maior razão será assegurada em proveito de ambas a prova da declaração e do seu carácter definitivo se houver acção".

 

Vê-se, portanto, que a convenção não necessita de qualquer formalidade. Apenas deve ser documentada a proposta do anulante e a respectiva aceitação da contraparte, visando-se provar o ato em caso de ação judicial.

 

3.2. As Condições para a Anulação Convencional.

 

Através do que até o presente momento foi dito acerca da anulação convencional, pode-se extrair as condições essenciais para a sua efetivação. Aprioristicamente podemos relacioná-las da seguinte forma:

 

a. ocorrência de vício inerente ao negócio, que repercuta na esfera dos interesses privados;

b. expressa manifestação de anulação do negócio viciado e a respectiva aceitação pela contraparte;

c. exercício do direito antes da convalidação do negócio, ou seja, como regra, dentro do prazo de um ano (art. 287º, do código civil);

d. legitimidade das partes que intervierem na convenção.

 

Já discorremos no curso deste trabalho sobre as condições da anulação, seja no quadro geral da anulabilidade, seja nos itens que especialmente destacaram a anulação por convenção. Voltaremos a falar, em tópicos próprios, sobre duas das condições que ainda não tiveram uma análise detida. Já as demais, não carecem de atenção mais aprofundada.

 

Ficou certo e em mais de um lugar a característica foi salientada, que a anulação diz respeito a interesses privados protegidos pela lei. Só às partes diretamente envolvidas no negócio diz respeito o direito de anulação. Não se admite a intervenção de terceiros, como o Ministério Público, que efetivamente, não têm condições de avaliar a necessidade de anulação ou, pelo contrário, de convalidação do negócio.

 

Em havendo um sistema erigido em favor dos interesses de ordem privada, nada mais certo que se deixe o modus operatório ao critério dos envolvidos. Dispensam-se as formalidades, mas exige-se que a convenção, como emanação e convergência da livre e espontânea vontade das partes, seja clara e expressa. Daí que o anulante deve expor sua pretensão e colher o consentimento da contraparte. A inxigibilidade de uma roupagem formal, não escusa as partes de documentarem a convenção, para sua própria segurança.

 

Como a anulabilidade é passível de sanação, a convenção deve operar-se dentro do prazo em que ela (sanação) não se verifique. Transcorrido o prazo, sanando-se o vício, o direito não mais poderá ser invocado, sob pena de recusa da contraparte em dar seu consentimento.

 

Resta ainda falar-se da legitimidade das partes intervenientes na anulação convencional e avançar, além do bosquejo acima traçado, sobre a caracterização do fato anulável.

 

3.2.1. As Partes com Prerrogativas para a Anulação

 

Quando situamos a matéria ora enfocada no quadro geral das invalidades, salientamos que a nulidade, por compreender interesses de natureza pública, pode ser invocada por um universo de pessoas bem mais amplo do que aquele referente à anulabilidade. Esta categoria de invalidade diz respeito a interesses de ordem privada, não admitindo, por exemplo, a declaração oficiosa pelo juiz que tenha conhecimento de um vício determinante de anulabilidade. A anulabilidade, como o próprio texto legal dispõe, deve ser argüida pelas "pessoas em cujo interesse a lei a estabelece" (art. 287º, do código civil). Por isso mesmo é que essa modalidade revela a característica de relatividade.

 

Será assim, em princípio, também no sistema de anulação convencional. A parte interessada, com legitimidade para a anulação, declarará sua intenção à contraparte, exercendo, pois, o direito que lhe é colocado à disposição. A contraparte, por sua vez (e aqui acrescentamos, somente ela por si ou através de representante legalmente constituído), emitirá a expressa aquiescência, celebrando o acordo. Mas este sistema de anulação é mais flexível em relação ao sistema tradicional (de anulação judicial), permitindo a intervenção de terceiro.

 

Ao invés de o terceiro aguardar sua sorte, decidida numa demanda judicial acerca da declaração de anulação, ele pode intervir diretamente no acordo das partes originárias, integrando a decisão de restituição do objeto do negócio ao status quo ante. Válida a esse propósito a situação paradigmática criada por Castro Mendes, que desdobra um negócio realizado inicialmente entre A e B num segundo negócio, agora realizado entre B e C:

 

"Suponhamos porém que B havia já vendido x a C. A anulação entre A e B é res inter alios acta para C. Mas a anulação poderá fazer-se plenamente se, em face de uma declaração de anular feita por A, B e C reconhecerem ambos o bem fundado da pretensão".

 

Assim, os efeitos da declaração da anulação operam-se imediatamente e mediante a simples expressão de vontade das partes envolvidas.

 

3.2.2. Fato Anulável Típico e Atípico.

 

Mas nem sempre a anulação envolve uma situação de meros interesses privados. O que até agora foi visto, retrata a proteção legal estabelecida em favor dos interesses de um menor grau de relevância e que, por isso, não clamam pela intervenção oficiosa do juiz ou pela atuação funcional do Ministério Público. A categoria de invalidade que permite a intervenção de outros interessados, pelo que apriositicamente se depreende, é a de nulidade. Mas essa figura das instituições não é rígida e comporta alguns traços divergentes e exemplos claros insculpidos no código civil.

 

As imperfeições de modelos criados pela lei, admitindo uma certa interação entre as características da nulidade e das anulabilidades, levou alguns civilistas a proclamarem a existência das invalidades mistas. Nessa terceira categoria, podia-se encontrar, por exemplo, uma anulabilidade com uma ampla repercussão, admitindo a intervenção de terceiros não apenas diretamente ligados ao negócio.

 

Contra essa formulação doutrinária insurge-se Rui de Alarcão, para quem a invalidade mista só poderia ser admitida "se traçássemos o conceito de nulidade e o de anulabilidade nos precisos termos em que classicamente se configuram a nulidade absoluta e relativa. Então, sim, aqueles casos de regime especial, não podendo subpor-se ao conceito de nulidade nem ao de anulabilidade, teriam de subsumir-se numa nova figura, que seria a tal invalidade mista". Para Rui de Alarcão a moderna terminologia, amplamente adotada pelos civilistas e pela lei substantiva civil, não deve conhecer uma área de abrangência semelhante a dos antigos conceitos. O caráter de automático, absoluto e insanável, não deve corresponder aos característicos essenciais da nulidade, assim como o caráter não automático, relativo e sanáve não deve estabelecer uma figura indelével da anulabilidade. Assim é que o citado autor prefere classificar as nulidades em típicas e atípicas, assim como as anulabilidades podem corresponder a formas típicas e atípicas. As nulidades e anulabilidades típicas conservariam aquelas características identificadoras, e as categorias atípicas comportariam exceções.

 

Em matéria de direito matrimonial, encontram-se algumas das anulabilidades atípicas que, por envolverem interesses de natureza pública, admitem a intervenção de um círculo maior de interessados, além das pessoas diretamente envolvidas no negócio. Assim, a anulação do casamento fundada em impedimento dirimente pode ser argüida por qualquer parente em linha reta ou até o quarto grau da linha colateral dos cônjuges, além destes próprios e de seus herdeiros, adotantes e do Ministério Público (art. 1639º, nº 1, código civil). Também a anulação fundada na falta de vontade pode ser argüida por quaisquer pessoas prejudicadas com o casamento (art. 1640º, nº 1, código civil).

 

Sendo essas situações de anulabilidade (do direito matrimonial) atípicas, por dizerem respeito a interesses de natureza pública e por isso mesmo admitindo a intervenção de outros além dos próprios envolvidos no negócio, o legislador preferiu cercar a matéria de garantias. Assim, dispôs no art. 1632º que "A anulabilidade do casamento não é invocável para nenhum efeito, judicial ou extrajudicial, enquanto não for reconhecida por sentença, em acção especialmente intentada para esse fim". Isso quer dizer que em matéria de matrimônio, em que surgem os exemplos mais significativos de anulabilidade atípica, fica excluída a possibilidade de acordo entre as partes para deliberarem sobre a invalidade do negócio. Seus efeitos só passam a ser conhecidos a partir da declaração judicial.

 

3.3. A Validade da Convenção.

 

Em arremate, pode-se dizer que se a situação de um caso concreto preencher as condições ante mencionadas (não tendo transcorrido o prazo de sanação, havendo a expressa convergência de vontade das partes diretamente envolvidas no negócio ou ainda de terceiro do negócio subseqüente e tratando-se de anulação não compreendida pelo direito matrimonial), nada obstará à validade do acordo celebrado. Ele reflete a forma mais livre e mais consentânea com a natureza privada dessa categoria de invalidade. Prescinde-se de formalidades especiais e circunscreve-se à liberdade das partes do negócio jurídico.

 

3.3.1. Será Necessária a Intervenção Judicial.

 

Pelo que foi dito acima, a simples e expressa convergência de vontades no sentido de anular o negócio jurídico já confere seus efeitos. Aqui a anulação rege-se pela liberdade das partes, o que a torna preferível em relação ao sistema de anulação judicial.

 

Entretanto, como adverte Japiot (já citado alhures), convém que as partes documentem a convenção, para previnirem a prova em possível demanda judicial. Trata-se apenas de uma segurança para o anulante e para a contraparte, que de forma alguma necessitam ver sua convenção homologada pelo juízo. Trata-se de medida de segurança do anulante contra uma possível operação manobra judicial da contraparte. E é, também, uma segurança para ambos, em relação a um terceiro que possa exigir o objeto do negócio.

 

Mas há também a possibilidade de o pretendente da anulação não lograr a aquiescência da contraparte, resultando infrutífera a convenção. Nesta seara, como é obvio, já não nos deparamos com a anulação por convenção, que cede lugar ao sistema convencional de anulação, ou seja, através da provocação do juízo por competente a ação de anulação.

 

Em síntese, podemos afirmar que a convenção, para surtir os efeitos inerentes à anulabilidade, não necessita de qualquer intervenção judicial. Quando esta é requerida pelo interessado, houve a cedência da anulação convencional em favor da judicial.

 

3.4. Os Efeitos da Anulação Convencional.

 

Os efeitos resultantes da anulação, são coerentes com a natureza dessa categoria de invalidade. Sendo a anulação determinada por um vício intrínseco ao negócio que, portanto, com ele nasceu, os efeitos da invalidade retroagem ao tempo do negócio. É exatamente o que retrata o art. 289º, do Código Civil ao dispor que "Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo(…)".

Dessa forma, em havendo acordo no sentido de anular-se o negócio, o seu objeto deve ser restituído ao status quo ante. É efeito que se opera automaticamente, a partir do instante em que a anulação foi declarada. Assim, o preço pago por uma das partes deve ser restituído, enquanto que o adquirente do o objeto faz a sua devolução. Se o objeto já não puder ser devolvido, por ser de natureza fungível, far-se-á a restituição do valor correspondente (art. 289º, nº 1, in fine), com a devida compensação, se for o caso (art. 847º).

 

Com referência à intervenção de terceiro, em negócio sucedâneo ao originário, os efeitos da anulação a ele também, em princípio, se estendem. Isto quer dizer que se operada a anulação de uma primeira venda entre A e B, C, terceiro adquirente, perde o direito à posse o objeto, tendo que o restituir. O princípio é quase que absoluto, abrangendo, incluisve, o terceiro de boa fé.

 

Mas a lei abre a exceção da inoponibilidade da anulação, quando o terceiro, de boa fé, fizer o registro da sua aquisição antes de registrado o acordo sobre a anulação (quando, obviamente, o bem for passível de registro). O direito do terceiro de boa fé permanece resguardado contra os efeitos da anulação.

 

Por fim, os efeitos da anulação, estendidos ao terceiro, podem decorrer imediatamente se do acordo houver a participação deste. Ao vir integrar o acordo, aquiescendo com a proposta efetuada pelo anulante, o terceiro compromete-se a restituir o objeto do negócio ao seu status quo ante.

 

Cabe lembrar que a anulação pode não ter efeito prático nenhum se, por exemplo, o negócio a preço justo referir-se a bem perecível, que foi consumido pelo adquirente. Não há, pois, como se restituir a coisa ao estado inicial e, por isso, não há-de a outra parte exigir a restituição do que pagara.

 

 

4. Conclusões

 

A anulação, categoria de invalidade negocial respeitante a interesses de ordem privada, conhece três sistemas de operacionalização: o sistema judicial, que faz parte da tradição do direito civil português, o sistema unilateral e o sistema de anulação convencional. Este, apesar de previsto no código civil português de forma tímida, quase não se destacando do sistema tradicional, é preferível. Coaduna-se perfeitamente à idéia de liberdade que deve reger o instituto da anulação. Se esta invalidade admite a sanação, com maior razão pode admitir o livre acordo sobre sua invocação.

 

Ademais, a convenção sobre anulação é o meio rápido, eficaz e menos oneroso para as partes, fazendo com que seus efeitos surjam sem a dependência da atividade judicial. Só se exigirá a prestação judicial de forma alternativa, ou seja, quando o anulante não obtiver o consentimento da contraparte, ou quando esta resistir em restituir o objeto do negócio ao estado inicial. É de se frisar, como uma vantagem notória sobre o outro sistema, que a convenção não necessita de formalidades, bastando, apenas para efeitos de segurança das partes intervenientes no acordo, que se o documente.

 

A anulação convencional deve obedecer algumas condições. Assim, as partes devem acordar antes que o vício seja sanado pelo decurso de tempo; devem convergir expressamente na intenção de anular, buscando o anulante a aquiescência da contraparte. O acordo é possível em se tratando de anulabilidade típica, em que não haja incidência de interesses públicos. Dessa forma, exclui-se a possibilidade de convenção em matéria de anulações do direito matrimonial.

 

Os efeitos advindos da anulação são os mesmos atribuídos à generalidade das invalidades. Operam-se retroativamente, impondo a restituição das coisas ao estado em que se encontravam ao tempo do negócio. Nessa matéria, o terceiro de boa fé pode ter seus direitos garantidos se fizer o registro de sua aquisição antes do registro do acordo de anulação.

 

 

 

*Isaac Sabbá Guimarães é Promotor de Justiça de Santa Catarina

 

 

Retirado de: http://orbita.starmedia.com/~lparizotto