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Os princípios
informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais.
Lineamentos de um conflito hermenêutico no ordenamento jurídico
brasileiro
Mário Lúcio Quintão Soares
professor da PUC/MG,
mestre e doutor em Direito pela UFMG
Lucas Abreu
Barroso
professor da PUC/MG, mestre em Direito pela UFG, doutorando em
Direito na PUC/SP
Desde o advento do paradigma
Estado de Direito, construído pelas revoluções burguesas e entronizado pela
dogmática alemã, compreende-se que a legislação infraconstitucional deve estar
adequada à ordem constitucional vigente em determinado país.
O
paradigma Estado Democrático de Direito, esposado na Constituição Federal de
1988, tendo como arcabouços uma sociedade inclusiva e mecanismos institucionais
para a emancipação do cidadão, pressupõe a vinculação dos atos estatais e do
legislador ao texto constitucional.
Com
efeito, há que se indagar, aprioristicamente, acerca da missão do legislador
ordinário (dotado de poder constituinte derivado) no processo de
constitucionalização do Direito Civil brasileiro, em relação aos matizes
filosóficos plantados na elaboração do novo Código Civil.
Salvo
melhor juízo, de forma equivocada, a codificação civil – há pouco em vigor –
apega-se à concepção axiológica, isto é, à tirania de valores, tão questionada
por FRIEDRICH MÜLLER, mas praticada pelo Tribunal Constitucional Alemão.
KONRAD
HESSE, um dos marcos teóricos da concepção axiológica, fornece subsídios para a
apreensão do significado deste método hermenêutico, isto é, mediante elaboração
de metódica ajustada à interpretação constitucional, pretendendo, assim, o
equilíbrio capaz de evitar o sacrifício da dimensão normativa de uma dada
constituição em face da realidade.
Partindo
da premissa de que a norma constitucional carece de existência
independentemente da realidade, para KONRAD HESSE sua eficácia não pode
extrapolar as condições naturais, históricas, sociais e econômicas de cada
situação. Todavia, uma constituição consiste em algo maior do que essas
condições fáticas, possuindo peculiar força normativa dirigida a ordenar e
conformar a realidade político-social.
Dentre
os pressupostos que permitem a consecução do enunciado equilíbrio ressalta-se a
vontade da constituição – eis que representa uma alternativa à mera
vontade de poder e à normatividade formal e abstrata, carente de vontade –, que
repousa em três convicções: a) necessidade de uma ordem normativa objetiva e
estável, como garantia frente à arbitrariedade do poder; b) a ordem normativa
necessita de constante legitimação; c) o valor normativo da ordem vigente
depende de sua racionalidade e dos atos da vontade humana tendentes à sua
realização.
Não
obstante tais considerações, o novo Código Civil, sob a coordenação de MIGUEL
REALE e gestado durante a ditadura militar, envelheceu no decorrer de seu longo
período de tramitação no Congresso Nacional.
Apesar
de superar a feição individualista do Código Civil de 1916, peculiar ao
paradigma Estado Liberal de Direito, deixou-se acorrentar pela concepção
axiológica, concernente ao paradigma Estado Social de Direito, desconhecendo o
ideal de democracia social e o respeito às minorias, característicos do Estado
Democrático de Direito.
Metodologicamente,
a nuança conservadora de MIGUEL REALE subjaz no novo Código Civil,
entronizando, na perspectiva da eticidade e da socialidade, os bens culturais
reconhecidos e aceitos pela comunidade em geral.
Destarte,
a nova codificação, segundo o próprio MIGUEL REALE (1), está pautada
nas seguintes diretrizes: a) aderência aos problemas concretos da sociedade
brasileira; b) unidade sistemática determinada pela parte geral; c) unificação
lingüística; d) unidade valorativa; e) sentido de concreção de que as normas se
revestem, atendendo ou buscando aliar os ensinamentos da doutrina e da
jurisprudência ao "direito vivido" pelas diversas categorias
profissionais.
A
socialidade dos modelos jurídicos, assente no culturalismo de MIGUEL REALE
(2), peculiar ao paradigma Estado Social de Direito, reflete-se na nova
codificação, especificamente na prevalência dos valores coletivos em detrimento
dos individuais, redimensionando os conceitos dos cinco principais personagens
do Direito Privado: o proprietário, o contratante, o empresário, o pai de
família e o testador.
Isto
porque, além de representar a quebra do individualismo, consagra também a
ruptura do patrimonialismo que permeava as relações jurídicas de Direito
Privado à luz do Código Civil de 1916, podendo-se depreender da leitura
hermenêutica do novo Código Civil a influência de EMILIO BETTI nesse sentido,
conquanto busque combinar o valor da livre iniciativa, no plano econômico, com
a socialidade, o que é característico do status socialis, exigindo, p.
e., que o contrato e a propriedade cumpram sua função social.
MIGUEL
REALE (3) ignorou a superação dos paradigmas tradicionais com o
advento do Estado Democrático de Direito, ao considerar que não houve a vitória
do socialismo no plano jurídico, mas o triunfo da socialidade, ou seja, dos
valores atinentes a uma sociedade capitalista reformista democrática.
O
princípio da eticidade, outro pilar teórico de MIGUEL REALE, está igualmente
presente no novo Código Civil, consubstanciado na utilização constante de
princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, os quais
fazem referência a expressões cujos significados exigem uma atividade
valorativa do julgador no tocante à aplicação da regra infraconstitucional e
possibilitam a superação do apego ao formalismo jurídico.
A
ampla menção aos princípios da boa-fé e eqüidade, bem como a constante
invocação aos bons costumes, refletem essa tendência, propiciando ao novo
Código Civil uma feição que é peculiar ao paradigma Estado Social de Direito,
figurando as diversas cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados,
consoante MIGUEL REALE, como pontos de mobilidade e de abertura do sistema
jurídico em tela para as modificações da realidade.
Entrementes,
foram introduzidas na nova codificação regras infraconstitucionais que visam
ampliar sua incidência a fatos não previstos expressamente e cuja previsão não
poderia ser formulada pelo legislador ordinário.
Ora,
se existem princípios constitucionais para serem aplicados à matéria, tais
regras tão somente devem adequar-se aos mesmos, segundo a interpretação principiológica
a ser assumida pelos operadores jurídicos, em consonância com o paradigma
Estado Democrático de Direito. (4)
A
idéia de natureza das coisas, ressuscitada por MIGUEL REALE, vinculada ao
caráter nomotético da consciência e normativo de alguns fatos, por mais que
faça referência a um sistema de valores, determinado historicamente pela
experiência natural e cultural, torna-se utópico resgate jusnaturalista que não
tem pertinência com o ideal democrático das complexas sociedades contemporâneas.
O
ideal democrático, de acordo com MARTIN KRIELE (5), seria a
identidade entre os que mandam e os que obedecem, a qual, sem embargo, há de
requerer a unanimidade. Como esta não pode ser alcançada na prática, devem ser
criados mecanismos democráticos que autorizem que o maior número possível de
pessoas goze de autonomia e de que o menor número possível esteja sujeito à
heteronomia. Pelo menos, a maioria deve ter a liberdade de viver conforme as
suas próprias leis.
Por
outro lado, o Estado Democrático de Direito, enquanto comunidade do povo,
consiste em uma comunidade de valores ou unidade vinculada ao ideal
democrático. O povo somente pode ser representado quando o princípio da
representação, como forma de dominação, vincula-se aos valores desta comunidade
política ideal.
Consagrou
a Carta Política de 1988 (art. 1º) enquanto fundamentos do Estado Democrático
de Direito cinco princípios, de prática obrigatória em todos os processos de
escolha e tomada de decisões que lhes são concernentes, qualquer que seja a
ação política, econômica ou social a ser empreendida.
As
posições conceituais que espelham os princípios ali constantes devem
integrar-se, visando coexistirem, a fim de conferir legitimidade à República
Federativa do Brasil, eis que transcendem a concepção de Estado instituído,
atingindo os valores preambularmente expostos no mesmo diploma constitucional
que motivaram seu reconhecimento como "Constituição cidadã".
E
se, por um lado, tais princípios representam os fundamentos do Estado
brasileiro, por outro igualmente o serão de todo o ordenamento jurídico pátrio,
seja ele constitucional ou infraconstitucional, superando o princípio da
legalidade na qualidade de regra primeira da interpretação do arcabouço
legislativo em vigor, atuando como fatores primordiais de validade das normas
no ordenamento jurídico brasileiro.
Ademais,
descabe o argumento de que se tratam de normas programáticas, dependentes de
regulamentação, por ausência de previsão no texto constitucional e por
configurarem princípios, o que por si só já é bastante para lhes conferir
aplicabilidade imediata e para a persecução de sua efetividade.
Mas
dentre os princípios enunciados apenas três estão em destaque, em sintonia com
a abordagem do tema proposto. Estes são a cidadania (inc. II), a dignidade da
pessoa humana (inc. III) e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa
(inc. IV).
Os
princípios de que ora se ocupa, na evolução histórica do Direito nacional,
converterão em realidade a lógica pessoal de sua conformação material: a
integração da pessoa humana – a saber, nos limites do âmbito de jurisdição da
Constituição Federal, o brasileiro, nato e naturalizado, e o estrangeiro
residente no país como destinatários finais da norma constitucional (art. 5º,
CF) –, no processo político, social e cultural que a capacita à qualidade de
agente plasmador da cidadania (6).
A
pessoa humana, na dicção constitucional, é valorada mediante o espectro
antropocêntrico que permeia a Ciência Jurídica no Estado Democrático de
Direito, no qual é posta no vértice do prisma da hierarquia das normas
jurídicas, juntamente com os demais princípios expostos no art. 1º mencionado,
haja vista a consolidação da noção de que a justiça é o fundamento do Direito,
sendo o fundamento da justiça a dignidade da pessoa humana.
E
não há como falar de justiça, distributiva ou social, afastando em posições
estanques pessoa humana e cidadania. Preleciona MIGUEL REALE (7) que
estes são "valores que devem ser interpretados conjuntamente, pois o
respeito devido à pessoa humana em sentido universal (eu costumo dizer que a
pessoa humana é o ‘valor fonte’ de todos os valores), não exclui, mas antes
implica a dimensão jurídico-política que cada membro da coletividade brasileira
adquire só pelo fato de nascer no território nacional, assegurando-lhe um campo
específico de direitos e deveres, sem prejuízo da igualdade perante a
lei...".
MARIA
CRISTINA DE CICCO (8) ressalta o compromisso a que se está adstrito
em face da realidade jurídica que se impôs a partir da elevação destes
princípios à categoria de fonte primária do Direito interno: "A
Constituição Brasileira de 1988 (...) ao eleger a dignidade da pessoa humana e
o pleno exercício da cidadania como fundamentos do ordenamento e ao consagrar a
justiça distributiva, provocou uma profunda alteração no tecido normativo. Essa
transformação não pode passar despercebida, nem ser relegada a um plano
secundário com a desculpa de a Constituição significar tão-somente uma carta de
princípios; exigindo, ao contrário, uma mudança de mentalidade no operador do
Direito em todos os sentidos".
Uma
das projeções da livre iniciativa é a liberdade de participação na economia,
corroborando o capitalismo enquanto modelo econômico adotado, que traz consigo
todas as mazelas e formas de exclusão que lhe são inerentes, mas que deverá,
antes de tudo, respeitar os valores sociais do trabalho, juntamente com a livre
iniciativa na posição de fundamento do Estado e preceito da Ordem econômica,
visando compatibilizar o regime de produção escolhido (capital, lucro), a
dignidade da pessoa humana e a dimensão econômico-produtiva da cidadania.
O
capitalismo é parte integrante do ambiente cultural em que se vive e,
conseqüentemente, parâmetro obrigatório na análise de qualquer propositura
jurídica que se estabeleça no Estado brasileiro.
Não
se pode, assim, esquecer que qualquer abordagem dentro do ordenamento jurídico
pátrio deve, necessariamente, perpassar pela noção de que o intérprete está
diante de uma ordem jurídica constitucional que não só reconhece, como impõe,
que a liberdade econômica somente é limitada pelos ditames constitucionais
acima tratados e por outros de menor valor na escala jurídica, ética e social.
Firma-se,
pois, como lembra MIGUEL REALE (9), que "a Carta Magna não
consagra o liberalismo infenso à justiça social, mas sim o social-liberalismo,
segundo o qual o Estado também atua como ‘agente normativo e regulador da
atividade econômica’, muito embora sem se tornar empresário, a não ser nos
casos excepcionalíssimos previstos no Art. 173, por imperativos de segurança
nacional, ou relevante interesse coletivo definido em lei".
Para
ROGER RAUPP RIOS (10) "a valorização do trabalho humano como
elemento fundamental da ordem jurídica-econômica [após mencionar que também da
República Federativa do Brasil] revela-se, simultaneamente, postulado da
consciência geral no atual estágio do desenvolvimento histórico da humanidade
e, particularmente, da sociedade brasileira, bem como dado normativo central
para a compreensão e equacionamento dos problemas econômicos...". E mais
adiante aduz: "A fundamentalidade ínsita à noção de livre iniciativa
implica o reconhecimento de uma esfera jurídica dentro da qual os agentes
econômicos gozam de autonomia no exercício de sua atividade econômica. Esse
campo, onde grassa a autonomia privada, ‘consiste na faculdade concedida aos
particulares de auto-regulamentação de seus interesses’".
Em
síntese, apesar do brilhantismo do trabalho de MIGUEL REALE, haverá um saudável
conflito hermenêutico no ordenamento jurídico brasileiro entre os princípios
informadores do novo Código Civil e os princípios constitucionais fundamentais,
proporcionando aos intérpretes a percepção e compreensão da verdadeira
comunidade de valores erigida sob a égide do paradigma Estado Democrático de Direito.
Notas
01.
REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil. 2. ed. reform. e atual.
São Paulo: Saraiva, 1999, p. 50 e ss.
02.
Idem. Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, v.
752, São Paulo, jun. 1998, p. 23.
03.
Idem. O projeto..., cit., p. 7.
04.
SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 303 e ss.
05.
KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado: fundamentos históricos de
la legitimidad del Estado Constitucional Democrático / traducción por
Eugenio Bulygin. Buenos
Aires: Depalma, 1980, p. 320 e ss.
06.
BOFF, Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 2000, p. 51-53.
07.
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias.
2. ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 3.
08.
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução do Direito Civil
Constitucional / trad. de Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio
de Janeiro: Renovar, 1999. Prefácio da tradutora.
09.
REALE, Miguel. O Estado..., cit., p. 45.
10
PAULSEN, Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação
e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal,
desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial,
proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1997, p. 29-30 e 31-32.
Referências bibliográficas
BOFF,
Leonardo. Depois de 500 anos: que Brasil queremos? 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 2000.
KRIELE, Martin. Introducción a la teoría del Estado: fundamentos
históricos de la legitimidad del Estado Constitucional Democrático / traducción
por Eugenio Bulygin. Buenos Aires: Depalma, 1980.
PAULSEN,
Leandro; CAMINHA, Vivian Josete Pantaleão; RIOS, Roger Raupp. Desapropriação
e reforma agrária: função social da propriedade, devido processo legal,
desapropriação para fins de reforma agrária, fases administrativa e judicial,
proteção ao direito de propriedade. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
1997.
PERLINGIERI,
Pietro. Perfis do Direito Civil: introdução do Direito Civil Constitucional
/ trad. de Maria Cristina De Cicco. 1. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999.
REALE,
Miguel. O Estado Democrático de Direito e o conflito das ideologias. 2.
ed. rev. São Paulo: Saraiva, 1999.
______.
O projeto do novo Código Civil. 2. ed. reform. e atual. São Paulo:
Saraiva, 1999.
______.
Visão geral do projeto de Código Civil. Revista dos Tribunais, v. 752,
São Paulo, jun. 1998.
SOARES,
Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Belo
Horizonte: Del Rey, 2001.
Retirado
de: www.jusnavigandi.com.br