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DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA
(Conceitos e Considerações)
João Celso Neto
acadêmico de Direito e engenheiro em Brasília
- PESSOA JURÍDICA entidade constituída por
homens e bens, com vida, direitos, obrigações e patrimônio próprios. Podem ser, em
relação ao Brasil, de direito público externo (outras nações e organismos
internacionais, por exemplo) ou interno (a União, as Unidades Federativas, os
Municípios, as Autarquias, ....), ou de direito privado (sociedades civis, associações,
sociedades de economia mista, empresas públicas, serviços sociais autônomos, partidos
políticos, fundações privadas e, em sua grande maioria, sociedades mercantis, entre
outras).
- DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA diz-se
do afastamento da personalidade jurídica de uma sociedade (basicamente,
privada e mercantil) para buscar corrigir atos que atinjam-na, comumente em decorrência
de manobras fraudulentas de um de seus sócios. Não se trata, necessariamente, de
suprimir, extinguir ou tornar nula a sociedade desconsiderada. Configura, isso sim, uma
fase momentânea ou casuística durante a qual a pessoa física do sócio pode ser
alcançada, como se a pessoa jurídica não estivesse existindo.
Considerações
- É cada vez mais freqüente a existência de
sociedades ´de papel´, criadas para burlar o Direito e prejudicar terceiros.
[1]
- a) Dispõe nosso Código Civil (art. 20): As pessoas
jurídicas têm existência distinta da de seus membros. Portanto, as pessoas
jurídicas têm individualidade própria, não se confundindo com as pessoas naturais,
físicas, que a compõem. Dentre as pessoas jurídicas, as sociedades mercantis, ou
comerciais, são constituídas por pessoas naturais que se reúnem intencionalmente para
determinado fim, de cunho econômico. À luz exclusivamente do Código Civil, tais pessoas
físicas não respondem civilmente pela sociedade que constituíram.
b) Tendo em vista fraudes promovidas por meio da personificação de sociedades anônimas,
foi sendo elaborada, por construção jurisprudencial, uma doutrina que busca coibir os
abusos verificados. Pretende essa doutrina, para alguns teoria, penetrar no
âmago da sociedade, superando, ou desconsiderando, sua personalidade jurídica, para
atingir e vincular a responsabilidade do sócio que por trás dela se
esconde.
- c) Trata-se de uma teoria surgida na Inglaterra. A primeira
aplicação de que se tem registro foi, ainda no século XIX (1897), pela justiça
inglesa, quando um empresário constituiu uma company, atendendo aos requisitos para estar
legalmente constituída (sete sócios), ficando ele com vinte mil ações e os demais seis
todos de sua família cada qual com uma única ação. A sociedade logo em
seguida se revelou insolvente, com um ativo insuficiente para satisfazer as obrigações
por ela contraídas, nada sobrando para os credores. O liqüidante afirmou que a atividade
da company era, na verdade, do empresário, que usara daquele artifício para limitar sua
responsabilidade pessoal. [2]
- De lá, chegou aos Estados Unidos, tendo se
desenvolvido e se espalhado para outras partes do mundo, inclusive o Brasil. No Direito
alemão (durchgriff), tem o sentido de penetração; na Itália, de superação
(superamento); em inglês, também é dito levantamento (lifting), embora a expressão
inglesa mais comum seja disregard, ou seja, desconsideração.
- d) Em muitos casos, constata-se a transmissão fraudulenta
do patrimônio de um devedor pessoa física para o capital da pessoa jurídica por ele
constituída e controlada, para ocasionar prejuízo a terceiros, ou, no terreno
tributário, ao próprio fisco.
- e) Segundo essa teoria, nos casos em que seja aplicável,
atos societários são declarados ineficazes e a importância da pessoa do sócio
sobressai em relação à da sociedade, ficando esta desconsiderada, menos relevante,
posta em segundo plano.
- f) De acordo com a letra fria da lei, a pessoa
jurídica tem capacidade, emite declaração de vontade, contrai obrigações, responde
civilmente pelos compromissos assumidos, até mesmo com seu patrimônio, ocorrendo a
inadimplência, a inobservância desses compromissos, inclusive no caso de execução
forçada. Contudo, os atos que caracterizam as declarações de vontade, a assunção de
obrigações e a inadimplência são praticados por seres humanos, ou seja: seus gestores,
seus legítimos representantes, os mandatários dos sócios (quando não os próprios).
- Lembra CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA que o dever
indenizatório decorre da relação de causalidade entre o fato e o dano para
concluir pela obrigação de reparação quando a atividade normalmente desenvolvida
pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. [3]
- Não é outro o espírito a nortear a disregard
doctrine (ou disregard legal entity) quando, deixando de lado a pessoa
jurídica, sai à caça do dirigente, ou sócio, que pratique ato ilícito, infringindo
disposição legal, com abuso de poder ou violação de norma estatutária, em prejuízo
de terceiros.
- g) Em nosso ordenamento jurídico, como visto, não havia
preceito legal que embasasse essa desconsideração da pessoa jurídica, o que levava a
que eventuais decisões nesse sentido recorressem à doutrina como fonte do Direito. Aos
poucos, foi-se firmando alguma jurisprudência pátria.
- Somente em setembro de 1990, pela vez primeira, o
direito positivo brasileiro viu surgir base legal autorizando o Poder Judiciário a pôr
em prática a desconsideração da pessoa jurídica, na defesa de consumidor que venha a
ser lesado em direito seu por procedimento do fornecedor (Lei nº. 8.078/90, o Código de
Proteção e Defesa do Consumidor, art. 28).
- Observa FÜHRER [4] que alguma legislação pátria,
bem antes do Código de Defesa do Consumidor, de certa forma, previa algo semelhante à
desconsideração, como a CLT (art. 2º., § 2º.) e o Decreto-lei nº. 1.736/79, que
responsabilizam, além da pessoa jurídica diretamente envolvida, também ou
alternativamente empresas coligadas ou sócios-dirigentes.
- h) JUSTEN FILHO dá uma classificação da aplicação da disregard
doctrine, estabelecendo nove espécies distintas, em termos de intensidade
e extensão, indo da desconsideração total e genérica à desconsideração mínima e
unitária, em ordem decrescente de gravidade, ou seja, ela pode ser máxima, média ou
mínima e cada uma destas, genérica, seriada ou unitária. [5]
- Um exemplo de desconsideração máxima da
personalidade jurídica societária consistiria no caso de alguém (pessoa física) que
assume obrigação de não fazer algo e que busca valer-se da sociedade personificada
exatamente para praticar a conduta a cuja abstenção se obrigara. Em tal suposição, a
conduta assim praticada pode e deve ser imputada ao sócio, e não à
sociedade, como se esta não existisse ou se não houvesse sido ela a praticante da
conduta vedada ao sócio, por obrigação assumida perante terceiros.
- Havendo o risco de sacrifício a interesses de outrem, se
prevalecerem os efeitos da personificação societária, cabe a desconsideração desta.
- i) Conforme várias fontes, o Anteprojeto de Código Civil
submetido à apreciação do Senado Federal, há mais de uma década, prevê a
incorporação da teoria da desconsideração ao Código, verbis:
- A pessoa jurídica não pode ser desvirtuada dos fins
estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de
atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos
sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou tais
sejam as circunstâncias, a dissolução da sociedade.
Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das demais sanções cabíveis,
responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador
ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se
norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da
administração. [6]
- Como claramente faz ver a redação proposta,
destinar-se-á o novel instrumento, principalmente, à neutralização de ato(s)
nocivo(s), ou lesivo(s), à própria sociedade ou a terceiros, mediante práticas abusivas
ou com intuito fraudulento que um sócio venha a utilizar, desviando a pessoa jurídica de
sua finalidade estatutária ou contratual, para a cobertura daqueles atos condenáveis.
Por força judicial, tais atos poderão ser tornados ineficazes.
- Dispõe aquele texto que o juiz poderá intervir
a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público. Dessa
forma, quem, não participando societariamente, sentir-se lesado, necessariamente, terá
de recorrer ao Ministério Público, que assumirá a defesa de seu interesse atingido.
Subentende-se que o sócio atingido (econômica, moral ou eticamente) pela ação de um
seu colega de sociedade mercantil poderá, ele próprio, requerer a atuação do Estado,
pela via judiciária, para dar novo rumo ao estado de coisas que lhe pareça inaceitável,
podendo chegar à decretação da exclusão do sócio responsável ou da
dissolução da sociedade.
- j) Nota-se que, malgrado não seja o fim sempre colimado, a
desconsideração da pessoa jurídica pode ser aplicada em casos de falência,
insolvência ou encerramento de suas atividades, em conseqüência de má administração
ou de fraude, assegurando os interesses de quem haja sido prejudicado.
- l) O cabimento da desconsideração envolve algo de
ideológico, de vez que haverá sempre uma opção, entre um valor ou um interesse
específico, diante de outros valores ou outros interesses específicos.
- m) Demonstra a jurisprudência que a maioria das práticas
que ensejam o recurso à desconsideração da pessoa jurídica, para alcançar a pessoa
física eivada de maus propósitos que por trás daquela se esconde, partem de sócios
altamente majoritários, detentores da quase totalidade do capital societário, quando
mais não sejam firmas familiares, fictícias, unipessoais ou, até, inexistentes (sem
registro legal). Nessas hipóteses, os bens auferidos com o negócio estarão em nome
daquele sócio quase dono, e a pessoa jurídica não terá patrimônio que garanta e honre
os compromissos em seu nome assumidos, em denominados golpes do colarinho
branco.
- n) A desconsideração da pessoa jurídica pode ser
invocada em todos os casos de fraude: à lei, ao contrato, contra credores ou à
execução; e não somente quanto a dívidas em dinheiro como na obrigação de não fazer
ou qualquer outra descumprida em que pareça cabível e recomendável.
- o) Observa-se, por fim, que a desconsideração não se
confunde nem acarreta a nulidade dos atos que propiciaram a atuação judicial. Os atos
praticados não são anulados; apenas outras medidas são tomadas para corrigir e
compensar, distorcer e desfazer o que de fraudulento houvesse sido praticado,
indo buscar, no patrimônio ou na pessoa física de quem agira como se a pessoa jurídica
fosse, essa compensação ou o cumprimento da obrigação assumida e não adimplida.
- Só se pode falar em desconsideração quando o
sócio é alcançado independentemente do tipo e da estrutura da sociedade e de suas
regras particulares de responsabilização. [7]
NOTAS
- [1] JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da
personalidade societária no direito brasileiro. Editora Revista dos Tribunais
Ltda., São Paulo-SP, 1987, última capa.
- [2] REQUIÃO, Rubens. Curso de direito
comercial, 1º. Volume, 18ª. edição, Editora Saraiva, São Paulo-SP, 1988, p.
283:4.
- [3] PEREIRA, Caio Mário da S. Instituições de
direito civil, vol. I, 6ª. edição, Editora Forense, Rio de Janeiro-RJ, 1994, p.
208:9.
- [4] FÜHRER, Maximilianus C. A. Resumo de direito
comercial, Coleção Resumos - vol. 1, 17ª. edição, Malheiros Editores, São
Paulo-SP, 1996, p. 76.
- [5] JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 64.
- [6] FÜHRER, Maximilianus C. A. Op. cit., p. 76 (nota de
rodapé).
[7] Idem, p. 78.
BIBLIOGRAFIA ADICIONAL
- Código de Defesa do Consumidor, Lei nº. 8.078/90,
Edição do DPDC/SDE/MJ, 1994.
E-mail do autor: jcelso@embratel.com.br