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Achegas para (além da) reforma do Código Civil


Cristiano Chaves de Farias

Promotor de Justiça - BAHIA

Professor da Faculdade de Direito da UNIFACS - Universidade Salvador; da Faculdade de Direito da UFBA- Universidade Federal da Bahia;, do JusPODIVM -

Centro Preparatório para concursos jurídicos, da FESMIP - Escola Superior do MP/BA; e da EMAB - Escola de Magistrados da Bahia.

Pós-graduando em Direitos Difusos pelo Convênio PUC/SP e FESMIP/BA


No atual momento histórico, consideradas as vicissitudes e problemas da sociedade brasileira (nitidamente calcada em profundas distinções sociais), tendenciada ao desrespeito de princípios- constitucionais, principalmente a dignidade da pessoa humana (fundamento basilar da República Federativa do Brasil, conforme preconizado pelo Art. 1º, inciso III, da Magna Charta), qualquer discussão deve se iniciar pela afirmação da incontroversa competência e proficiência do Senador da República JOSAPHAT MARINHO (ponto luminoso de referência da Ciência Jurídica), bem como dos demais membros da Comissão de Juristas que preparou o Projeto de Código Civil que tramita no Congresso Nacional.


Diferentes problemas (de diversas matizes) se apresentam na proposta de reforma do Código Civil.


Não que se tenha uma legislação civil eficaz ou atual, imune às reformas ou que as torne despiciendas. No entanto, dentro de uma sociedade pluralista, com diferentes ambientes culturais e econômicos, com transformações se operando na velocidade da luz, é preciso buscar um sistema legislativo contemporâneo e adequado, que atenda a todas as questões que se descortinam nesse momento histórico.


Enfim, se pretende um Diploma Legal engajado com o momento histórico-social que se vive (considerada a atmosfera pluralista e diversa), preparado com o propósito de atender às novas (e atuais) necessidades da vida, com um novo espírito, exigido pela evolução da vida social. Até porque a regulamentação idônea, clara e atual dos institutos de direito privado, se não é fundamental para a existência da matéria, é salutar e aclaradora, evitando distorções exegéticas.


Para tanto, é fundamental o respeito às tendências dominantes em doutrina e jurisprudência, seja ao regular novos institutos, seja ao dar nova roupagem e disciplina àqueles já existentes, sempre tendo em mira a efetiva (e concreta) aplicabilidade prática da norma, inclusive porque o direito não serve senão para se realizar.


Mais ainda, é mister - para que o Código Civil venha a guardar fidelidade com a sociedade que lhe incumbe regular - que se considere o descompasso cultural brasileiro, conciliando os interesses individuais com o interesse da sociedade.


No estágio atual da sociedade, com a instabilidade e multiplicidade nas relações, não se admite um Código com fórmulas e conceitos elaborados em outra época (marcada por outros valores e princípios) e comprometido, destarte, com uma realidade extinta e inexistente. É preciso respeitar o crescimento ideológico e concreto da sociedade em todas as suas dimensões - e com a Ciência do Direito não pode ser diferente.


De logo, há de se ver que o Projeto 634-B, de 1975 (portanto, com mais de 25 anos), antecede o importante movimento histórico de descodificação (expressão cunhada pela autorizada e incontestável voz baiana de ORLANDO GOMES). É que a sociedade hodierna (por suas idiossincrasias e pelo próprio avanço industrial e tecnológico, máxime na era da globalização) descortinou um ambiente social diverso, pluralista e multifacetado, sendo impossível que um único Diploma Legal venha a regular o Direito Privado (aquelas relações jurídicas regulando interesses unicamente de particulares).


Ao revés. Exige-se um conjunto forte e sólido de leis especiais, que venham regular de maneira setorial a atividade privada (exemplo vivo - e bastante vigoroso - disso são o Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei nº8.069/90, o Código de Defesa do Consumidor - Lei nº8.078/90, a Lei de Arbitragem - Lei nº9.307/96 , a Lei de Direitos Autorais - Lei nº9.610/96, a Lei de Locação Urbana - Lei nº8.245/91, todas posteriores ao Projeto de Código Civil), prestando-se não apenas a tratar genericamente de situações concretas, mas regulando de modo exaustivo e completo diversos ramos da vida civil, inclusive dispondo de normas de direito processual, administrativo e, até mesmo, penal.


Assim, é de se ver, prima facie, a contramão do Projeto de novo Código Civil que tramita no Congresso Nacional com o momento histórico do Direito.


Chegou mesmo ORLANDO GOMES, em sua genialidade, a afirmar que “os tempos presentes, quando menos, não lhe são propícios (à codificação), se falso for o diagnóstico de que a vocação do século não é para a codificação”.


O Professor GUSTAVO TEPEDINO, referência singular na matéria, de modo incisivo chega a fazer menção ao “ocaso das codificações” (expressão antes utilizada por ORLANDO GOMES, Introdução..., p.68), apontando que a norma constitucional, nesse momento histórico, assume “o papel de reunificação do sistema, temperando, com seus princípios e normas hierarquicamente superiores, as pressões setoriais manifestadas nas diversas leis infraconstitucionais”.


Aliás, deve esse papel unificador do sistema jurídico moderno ser entregue ao Texto Constitucional, para que possam ser pacificados os conflitos existentes nos diversos ramos da Ciência Jurídica, a partir do traçado de regras básicas a serem seguidas pela legislação infraconstitucional (seja de Direito Público, seja de Direito Privado).


Jamais a norma infraconstitucional poderá exercer esse papel unificador, pelo previsível entrechoque de interesses diversos. Até porque o fenômeno jurídico é um só, devendo todos os setores da Ciência Jurídica obedecer a uma realidade sistêmica, que somente pode ser balizada constitucionalmente.


Prova disso, é o princípio da dignidade da pessoa humana (previsto no Art. 1º, III, da Constituição da República), que penetra, incisivamente, no Direito Civil para, dentre outros exemplos, dar uma função social aos contratos e à propriedade.


É o fenômeno, reconhecido no Brasil e em diversos outros países, da publicização - ou constitucionalização - do Direito Civil (ORLANDO GOMES já se referia, de há muito, a um dirigismo contratual). Isto é, percebida a necessária despatrimonialização do Direito Civil, foi imposta às relações patrimoniais uma função social e respeito aos demais valores (sociais e individuais), traçados pelo Texto Constitucional.


Vale invocar o escólio do Professor paranaense LUIZ EDSON FACHIN, ao asseverar que “estudar o Direito Civil, significa estudar (os seus) princípios a partir da Constituição. O Direito Constitucional penetra, hoje, em todas as disciplinas e, via de conseqüência, também no Direito Civil...”, permitindo, deste modo, “vislumbrar a importância da noção de igualdade”.


Minuciosamente destrinchando: a norma constitucional não é estranha (nem invasora) em relação ao Direito Civil (e ao Direito Privado como um todo). É a sua própria força propulsora, seu motor de impulsão, por onde gravitarão todos os institutos jurídicos (tanto de direito público, quanto de direito privado). Daí se afirmar, via de conseqüência, a superação da histórica dicotomia entre o direito público e o privado, dando lugar a proclamação de valores e princípios constitucionais, priorizando a dignidade da pessoa humana e demais garantias sociais.


Esse processo de constitucionalização do Direito Civil aliado ao conjunto de microsistemas jurídicos (alguns deles já caracterizando verdadeiros sistemas jurídicos autônomos, como o Direito do Consumidor) sela, de uma vez por todas, um novo tempo no Direito Privado, distinto dos ideais que nortearam a redação do projeto que tramita nas Casas Legislativas.


Eis um pecado capital: o projeto de Código Civil divorcia-se dessa realidade fenomenológica sócio-jurídica, estruturada na clara e incontroversa influência constitucional no Direito Privado (mitigando a secular autonomia da vontade) e na organização de microsistemas jurídicos, não estando em consonância com os anseios e necessidades de um novo tempo existente.


LUIZ EDSON FACHIN dispara, com objetividade: “a formação de ‘microsistemas’ baseada em expressivo número de leis especiais e a ‘constitucionalização’ de suas categorias principais selam um tempo diverso daquele que ligou a codificação ao absolutismo e ao positivismo científico...”, vindo a demonstrar “uma nova densidade” da civilística.


Ao revés de tudo isso, o velho(!) Projeto de novo(?) Código Civil insiste na presença dos quatro personagens básicos que marcam presença no Código Civil de 1916: o marido, o proprietário, o contratante e o testador, apenas acrescentando-lhes o empresário. Entretanto, são nítidas as novas feições dadas aos institutos basilares do Direito Civil: a propriedade perde caráter absoluto, socializando-se, adquirindo conteúdo funcionalizado; o contrato, também adquirindo feição social, se afasta da autonomia da vontade, fundando-se em igualdade formal e substancial; a estrutura familiar prende-se muito mais ao fenômeno realidade do que a um direito imaginário, que gravitava em torno do matrimônio. Enfim, já se pode dizer que o direito privado “perdeu o caráter de tutela exclusiva do indivíduo para ‘socializar-se’...”, para, de modo incisivo, penetrar e regular a sociedade, com a “possibilidade de satisfazer um número e uma variedade de necessidades antes nem mesmo imagináveis, já impregnando intimamente todos os institutos do Direito Privado”, como reconhece, com sensibilidade aguçada, MICHELE GIORGIANNI.


Em outras palavras, o projeto ignora a influência das normas constitucionais, especialmente dos princípios sociais e da dignidade da pessoa humana - e não se perca de vista que a dignidade da pessoa humana é preceito intangível -, sendo dever de todos, particulares e Poder Público, respeitá-lo e protegê-lo, mantendo uma visão formada a partir de elementos socioculturais prevalecentes há 30 anos, sem atualizar o texto codificado às necessidades do presente momento histórico, marcado pela diversidade e pluralismo, corolários da globalização.


Impende, inclusive, constatar que, apesar das substanciais alterações na ordem jurídica, impostas pela Constituição da República de 1988 e Diplomas Legais posteriores (que visam adaptar as normas à realidade social do país), não foram realizadas emendas de mérito no projeto de Código Civil (634-B/75), de modo a que viesse a se coadunar com a nova ordem jurídica. Apenas foram realizadas adaptações para que o texto pudesse ser compatibilizado com o Texto Constitucional, sem, contudo, alterar a substância normativa de antes.


Há de se observar, todavia, a fundamental necessidade não apenas da (cega) adesão ao caminho traçado pela Constituição, mas, sobretudo (e principalmente!), de se promover o estudo das conseqüências práticas advindas desse fenômeno - isso o que se espera do novo texto codificado, indo além do que já foi tratado pelo legislador constituinte (até mesmo para que tenha utilidade prática).


Ora, se o projeto de Código Civil não traz consigo a influência e o espírito imposto pela Lex Fundamentallis (e legislação subseqüente), retratando idéias dissociadas da realidade sociocultural do novo milênio, não poderá ser instrumento útil na transformação do Direito, servindo como fonte de resistência pela conservação de postulados ultrapassados.


Referência há de se fazer, ademais, ao fato de que o projeto em tramitação no Congresso Nacional encontra-se divorciado de importantes (e inolvidáveis) avanços da dogmática jurídica, como no campo da responsabilidade civil, que caminha a passos largos para a teoria do risco, buscando conferir maior proteção à vítima (escopo primacial da responsabilidade civil), enquanto o projeto, desconsidera nítida tendência jurisprudencial e doutrinária, como ao tratar da responsabilidade do dono do edifício ou construção pelo dano causado por ruína, limitando-se a, no art. 939, reproduzir, quase que literalmente, o disposto no art. 1.528 do CC vigente.


Diante desse quadro, o emérito Professor CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, em sua festejada Responsabilidade Civil (Rio : Forense, 9ªed., 2000, p.113) chega mesmo a disparar que “o Projeto de Código Civil de 1975 não foi sensível à realidade atual”.


Apenas para dar a noção do avanço atual (doutrinário e jurisprudencial) acerca da responsabilidade civil, é de se lembrar o escólio de GISELDA MARIA F. NOVAES HIRONAKA (Direito Civil - Estudos, Belo Horizonte : Del Rey, 2000) e de ÁLVARO VILLAÇA AZEVEDO (Teoria geral das obrigações, São Paulo : RT, 6ªed., 1997), chegando este último a afirmar que “há duas categorias de responsabilidade com fundamento na teoria do risco: pura e impura. A impura tem sempre, como substrato, a culpa de terceiro”.


Também no que pertine aos direitos da personalidade (abordados en passant, timidamente) não foram admitidos os contornos reconhecidos pela melhor doutrina e jurisprudência. GILBERTO HADDAD JABUR, em magnífica obra (Liberdade de pensamento e o direito à vida privada, São Paulo : RT, 2000, p.128-9), pondera que “conquanto os direitos personalíssimos apareçam como uma noção fluida, em perpétua evolução, suas espécies mais arraigadas no espírito do homem, no conhecimento da doutrina e apreciação dos Tribunais mereceriam ao menos menção, como o direito a vida, a integridade física, a honra, a vida privada e a imagem, a exemplo do que consignou o constituinte.” E conclui com invejável felicidade: “a tendência de se colocar dentro de um mesmo feixe - senão geral, pouco preciso e técnico - os atentados contra a vida privada, a reputação, a honra e a imagem não contribui para a tutela aqui perseguida, porque aventa a preliminar e desnecessária discussão sobre a existência legítima desses direitos personalíssimos”.


Chegou mesmo o texto codificado a confundir conceitos elementares dos Direitos da Personalidade e, no art. 20, com redação infeliz e tímida, praticamente negou o direito à imagem, ao não contemplar qualquer tutela à apropriação de imagem sem intenção de lucro e sem publicação (uma vez que apenas protege o direito à imagem se houver publicação, exposição ou utilização, resultando atentado à honra ou, ainda, se houver fruição comercial da imagem).


Falha, outrossim, o texto projetado em outras passagens, v.g., olvidando as novas figuras contratuais, os princípios da boa-fé objetiva- e do equilíbrio das prestações obrigacionais (não acolhidos de forma clara e pertinente pelo projeto) e os novos direitos reais e imobiliários.


Também a questão sucessória não foi bem regulada. Foram pequenas as alterações introduzidas e, em muitos casos, sem mudança de conteúdo, como, e.g., as referentes à aceitação da herança, que o Projeto 634-B/75 enaltece e trata com relevância, mas que, concretamente, não passam de noções teóricas, agora convertidas em norma.


No capítulo da Vocação Hereditária esquece o tecnicismo e organização, essencial às codificações, e trata de matérias estranhas que, por certo, deveriam ser tratadas em local próprio.


Enfim, como bem observa o eminente Prof. LUIZ ROLDÃO DE FREITAS GOMES, as disposições projetadas referentes à sucessão passam “ao largo da grande maioria de nosso povo, destituído de bens, não se levando em conta direitos originários da morte, que não sejam objeto de transmissão hereditária, posto não lhe guardem a natureza: levantamento de alvarás de FGTS, PIS-PASEP, saldos de contas-correntes, pecúlios, etc. Por aí passa a sucessão da maioria do povo brasileiro. Ainda que não se cuide de Livro tecnicamente apropriado não custava referência a esse propósito, em sua homenagem e para a sua segurança”.


E, até mesmo, as relações familiares (tão prestigiadas pelo Texto Constitucional) foram tratadas de forma incompleta, deixando de fora, por exemplo, as questões pertinentes às técnicas de engenharia genética (inseminação artificial e fertilização in vitro). Isso sem contar o tratamento dispensado à união estável (contemplada em cinco artigos, do art. 1.735 ao 1.739), em relação a qual “o antigo Projeto desconsidera alguns avanços jurisprudenciais e (até mesmo) legislativos” fundamentais, omitindo-se, efetivamente, “em resolver problemas sobre os quais deveria se manifestar, dentre os quais incluem-se as questões de direito sucessório, a indenização pelos serviços prestados, a culpa em matéria de alimentos, a extensão de efeitos jurídicos às separações de fato, o registro civil da união estável, o procedimento de conversão de união estável em casamento”, conforme salientado por EDUARDO CAMBI.


Enfim, foram esquecidos (importantes) princípios e avanços da Constituição de 1988.


E, como já se afirmou, lucidamente, “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremessível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”, conforme a firme advertência de CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO.


Igualmente, não percebeu o Projeto a necessária - e imperiosa - influência da Emenda Constitucional nº26 (publicada no Diário Oficial da União de 15.2.2000), assegurando o direito à moradia como direito social, o que vem, inexoravelmente, a influenciar e alterar o conceito de domicílio (que passa a também estar, necessariamente, socializado).


Ora, sem o propósito de inovar, não se justifica qualquer reforma ou alteração legislativa!!!


Por óbvio, não se prega uma amor indiscriminado e obcecado à novidade. O novo é fruto do aproveitamento da experiência do direito comparado e das tendências doutrinárias e jurisprudenciais, mas sempre com os pés no chão, isto é, com a ciência da necessidade de regular situações concretas vivenciadas na sociedade. Inovar na órbita do Direito Civil é vencer a rotina legalista e estática, com a sensibilidade necessária para considerar as influências do meio e às múltiplas ambiências deste ramo da Ciência Jurídica. Essa a contribuição para o aperfeiçoamento técnico do Direito que se há de esperar de uma nova codificação.


Não se pretende formular uma crítica injusta ou irresponsável. Busca-se, apenas, apontar imperfeições (compreensíveis em um projeto redigido há 30 anos) e estimular a necessária discussão quanto à sua conveniência com todos os setores da sociedade.


Como adverte FACHIN, “relevante é o debate entre a reforma e a nova codificação que se propõe. De um lado, recolhe-se na discussão o questionamento contemporâneo sobre o papel dos códigos; de outro, fomenta e enaltece o papel ‘criador’ da jurisprudência e a porosidade do fenômeno jurídico”.


Até porque a técnica que vem sendo utilizada pelo legislador hodierno é a de promover reformas setoriais, em departamentos específicos do Direito, como se vem fazendo com o Código de Processo Civil desde 1994 (atualizando-o às necessidades impostas pelo avanço da sociedade, ao próprio Texto Constitucional e, por igual, à orientação dos Tribunais, além de corrigir imperfeições) e como se inicia com o Código de Processo Penal.


Afigura-se-nos mais razoável adotar semelhante técnica (reformas setoriais, paulatinas), detectando-se com mais segurança os pontos nodais, estranguladores, que afligem o Direito Civil, permitindo, ainda, melhor absorção dos movimentos reformistas pela comunidade jurídica, a partir do debate entre os operadores do Direito. Aliás, através de reformas setoriais é fatal reconhecer que a norma jurídica refletirá mais nitidamente - e de forma mais eficaz - as necessidades e idiossincrasias do momento histórico da sociedade, permitindo maior eficácia nos movimentos reformistas.


Tudo isso sem contar com a maior facilidade para a discussão e aprovação dos projetos de lei nas Casas Legislativas.


Reforma, sim. Porém, reforma com o sentido de processo em construção, governado por princípios informativos de uma base axiológica de sustentação sistemática. Inclusive, porque se percebe que o vigente Código Civil assenta-se em um sistema que admite, amplamente, a idéia reformista, podendo ser adaptado paulatina e continuamente às necessidades da sociedade brasileira - plural, aberta e porosa.


Isto é, na busca de uma perspectiva axiológica e sistemática, há de se avançar além da constitucionalização do Direito Civil (respeitando-a), de modo a se atingir uma verdadeira ressistematização do Direito Civil.


Daí, então, impõe-se vislumbrar a necessidade de reforma (não começando necessariamente pela codificação, mas podendo passar por ela, se necessário se afigurar), para repensar os alicerces e fundamentos de uma nova ordem jurídico-social, adaptada à realidade fenomenológica imposta pelos avanços culturais e científicos e buscar a equiparação dos Códigos “aos sistemas filosóficos”, porque “cada sistema filosófico concretiza, em forte síntese, uma concepção de mundo”, como lembrava CLÓVIS BEVILÁQUA.


Conforme FRANCISCO AMARAL NETO, acalentado no ideário que motiva a busca de novos caminhos, neste momento histórico da sociedade brasileira, o “direito reafirma-se como uma categoria ética e como uma prática social (elementos indissociáveis). E o civilista surge como um intelectual crítico empenhado, não mais na defesa de uma classe, a burguesia, mas da pessoa e dos seus elementos inalienáveis”.


Tudo isso, no entanto, sem perder de vista os valores e garantias sociais conquistados e os avanços traçados pela jurisprudência dos Tribunais, após calorosos e intensos debates (até porque isso importaria em verdadeiro retrocesso e instabilidade social), como em determinados momentos ocorre com o projeto de Código Civil em trâmite no Congresso Nacional.


Já registrava ORLANDO GOMES, expoência do Direito Civil brasileiro, que não deve o legislador (e, mais ainda, quando se trata de codificação) “se distanciar da realidade brasileira”. Ao contrário, impõe-se que esteja atento “à regra de adaptabilidade da lei à vida”.


Idéias e propostas se afiguram imprescindíveis para que o futuro traga novo desenho (concreto e eficaz) ao Direito Civil, conferindo-lhe capacidade de contribuição para realizar uma sociedade justa, fraterna e igualitária, indo além da constitucionalização e dos microsistemas, promovendo uma nova filosofia e mentalidade, em um novo homem, informado pela base sólida, plural e ambivalente das relações jurídico-civis assentadas em sua intangível dignidade.


Vale, pois, invocar a lição do jovem Professor GILBERTO HADDAD JABUR ao observar que cumpre ao legislador, “uma vez que se dispôs a codificar..., não plantar apenas a semente, do que a doutrina já se desincumbiu com o apoio da jurisprudência, e relegar, novamente, a uma e outra, a difícil tarefa de suprir a timidez da norma escrita que antes inexistia. Essa ‘sobriedade’ do legislador de direito privado só pode aumentar a dificuldade e insegurança da compreensão e real alcance” dos institutos que compõem o Direito Civil, arriscando a que sejam derrocadas matérias já pacificadas, assentes, em doutrina e jurisprudência. Essa a preocupação que se há de ter com o Projeto 634-B/75, até porque o direito não pode estar à disposição de rigorismos formais e valores ultrapassados, devendo suportar a hierarquia da cultura e dos avanços da sociedade.


Bibliografia:

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Artigo retirado de: www.faseb.com.br/artigos