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A Lei Inimiga da Lei

 

 

 

 

 

por Miguel Catela - Doutor em Direito Professor do ISCPE

 

 

 

 

Num breve espaço de três meses, entre Março e Junho de 1999, foram publicados dois novos diplomas estruturantes das compras públicas: o Decreto-Lei nº 59/99, de 3 de Março, sobre empreitadas de obras públicas, e o Decreto-Lei nº 197/99, de 8 de Junho, sobre a despesa pública e os contratos de aquisição de bens e serviços. Qualquer deles, de resto, já alterados (!) pela Assembleia da República, por Leis publicados em Setembro deste ano.
Como resultado que são, de longos trabalhos preparatórios, esperar-se-ia que existisse uma mínima coordenação entre as suas normas, sobretudo as inovatórias.
Contudo, se tomarmos unicamente três dos aspectos em causa, ver-se-á, infelizmente, e sem qualquer dificuldade, que nenhum cuidado foi tido, a este respeito.
O primeiro dos exemplos é o do órgão, ou órgãos, que deverão acompanhar o processo de adjudicação.
No caso do regime jurídico de empreitadas de obras públicas, duas comissões acolhem a parte do processo que começa com o anúncio, prolonga-se pelo acto público, aprecia a capacidade dos concorrentes (sen do este o limite do trabalho da primeira comissão) e o mérito comparativo das suas propostas, e sugere a adjudicação (que é a tarefa específica da segunda).
No decreto sobre a despesa pública e a contratação de bens e serviços, um só órgão, aqui apelidado de júri, dirige todo o procedimento, até à proposta de adjudicação. Se a lei dispôs duas soluções contraditórias, para algo de muito semelhante, qual será o motivo? Complicar (mais ainda) a vida aos serviços públicos, baralhando os termos de preparação das duas modalidades de contratação? Obrigar a que as empresas se tenham de desmultiplicar em procedimentos burocráticos, se agirem, em simultâneo, no mercado das empreitadas e dos fornecimentos e serviços?
O segundo exemplo é o da suposta protecção dos subcontratados. No caso dos subempreiteiros, foi criada uma rede de relações directas entre o dono de obra público e o subempreiteiro, em claro prejuízo do empreiteiro geral. No caso dos subcontratados que sejam fornecedores ou prestadores de serviços de fornecedores principais, nada existe. Haverá alguma razão para este tratamento dúplice ? Será, mesmo, que o legislador se terá, sequer, apercebido da enormidade desta distinção que, agora, criou?
Por fim, o universo a que se aplica o regime jurídico de empreitadas de obras públicas, não é o mesmo a que se aplica o regime da aquisição de bens e serviços. Em concreto, as empresas públicas e as sociedades de capital maioritariamente público, estão sujeitas à disciplina da lei das obras públicas, mas contratam em regime de pura liberdade (até em infracção de legislação comunitária que deveria estar transposta em 1998) os seus fornecimentos e serviços. Isto é, se uma sociedade pública contratar um equipamento sofisticado por alguns milhões de contos, beneficia de uma autonomia contratual que não tem se aplicar um Euro na contratação de um trabalho imobiliário.
Sabe-se que quando se refere o legislador, se utiliza a terceira pessoa do singular. Será que isto significa que o legislador é indiferente, ou mesmo inimigo, do mesmo legislador? Será que, algum dia, esta crise de esquizofrenia legislativa terá fim?