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ANESTESIA: Obrigação de meios ou de resultados?

Genival Veloso de França (*)


 
 

1. Preliminares

Certamente foi a Anestesiologia uma das especialidades médicas que mais rapidamente evoluiu nestes últimos anos, fato esse confirmado pelo seu elevado estágio técnico-científico e pelos seus resultados tão espetaculares. Para continuar assim. vão ser necessários cuidados permanentes na sua consolidação e retomadas de rumo e vigilância permanente sempre que se fizer exigidos.

Antes, não é segredo, constituía apenas uma atividade acessória e auxiliar da cirurgia - uma "terra sem dono", por onde transitava todo mundo: o colega recémchegado, o estudante de férias ou os serventes dos hospitais.

Hoje, a coisa não é mais assim. A Anestesiologia assumiu um lugar mais destacado, uma autonomia indiscutível e uma atividade cuja prática é tão irnprescindível e irrecusável que, muitos dos atos médicos agora praticados, não seriam realizados sem o seu inestimável concurso. A moderna concepção que se tem da Anestesiologia exige, portanto, uma soma muito ampla e diversificada de conhecimentos e a correta aplicação de uma sofisticada tecnologia de monitoração no controle dos sistemas vitais e dos próprios equipamentos.

Desse modo, todos os dias, hospitais e serviços especializados, vão se cercando cada vez mais de recursos em instrumentais de monitorização e de profissionais altamente qualificados, como forma organizada e eficiente de vencer a morbi-mortalidade. Daí porque atualmente passou-se a exigir muito dos médicos especializados, entre eles os anestesiologistas, chegando-se ao exagero de não mais se aceitar um mau resultado, face a precisão que se espera de suas técnicas tão refinadas e a eficiência de fármacos tão potentes.

Sob outro prisma, passou-se então a entender que a opção por determinado tipo de anestesia não significa apenas um procedimento mecânico ou a decisão preferencial do anestesista, mas uma questão eminentemente clínica, cuja avaliação se dê caso a caso e sempre em favor do paciente. Para tanto, leva-se em conta seu estado físico e mental, seu diagnóstico, suas condições fisiológicas, as influências farmacológicas e o tipo de operação que é quer realizar. Em suma: a indicação de uma anestesia é antes de tudo uma decisão clínica.

2. A questão de fundo: Anestesiologia: Obrigação de meios ou de resultado?

Muitos admitem que o contrato de assistência rnédica é uma locação de serviços. Outros, que a forma correta é considerá-lo um contrato sui generis, em virtude da especificidade e da delicadeza mais singular entre o profissional e o seu paciente como ensina Alves Dias (in Da Responsabilidade Civil, 6ª edição, vol. 1 e 2, Rio: Forense, 1979).

Dentro do conteúdo das obrigações positivas, onde se exige do devedor um comportamento ativo de dar ou de fazer alguma coisa, são reconhecidas duas modalidades de obrigações: a de meios e a de resultado.

Na primeira, existe o compromisso da utilização de todos os recursos disponíveis para se ter um resultado, sem, no entanto, a obrigação de alcançar esse êxito tão Iegítimo. Busca-se, é claro, um resultado, mas em não se cumprindo - e inexistindo a culpa do devedor, não há o que cobrar.

Na obrigação de resultado a prestação do serviço tem um fim definido. Se não houver o resultado esperado, há inadimplência e o devedor assume o õnus por não satisfazer a obrigação que prometeu.

Assim entendendo, existe na responsabilidade contratual civil do médico uma obrigação de meios ou de diligências, onde o próprio empenho do profissional é o objeto do contrato, sem compromisso de resultado. Cabe-Ihe, todavia, dedicar-se da melhor maneira e usar de todos os recursos necessários e disponíveis. Isso também não quer dizer que ele esteja imune à culpa. Enfim, essa é a idéia que tem prevalecido. O contrário, seria conspirar contra a lógica dos fatos.

Entretanto, face outra forma de entendimento, alguns defendem a teoria de que o dano produzido em anestesia tenha configuração mais grave, por entenderem existir entre esse especialista e o seu paciente uma obrigação de resultado. A prevalecer tal idéia, diante de um mau resultado, qualquer que sejam suas causas, a vítima tem o direito de fazer-se indenizar sempre.

Nesse aspecto, com todo respeito, discordamos frontalmente, pois difíceis e delicados são os momentos enfrentados por esses especialistas, notadamente nos serviços de urgência e emergência, quando tudo é paradoxal e inconcebível, dadas as condições excepcionais e precárias, e diante da essência dolorosamente dramática da eminência de morte. Exigir-se deles uma obrigação de resultado é, no mínimo, desconhecer os princípios mais elementares dessa especialidade.

Hoje, mesmo em especialidades consideradas obrigadas a um resultado de maneira absoluta, como na cirurgia puramente estética, já se olha com reservas esse conceito tão radical de êxito sempre, pois o correto é decidir pelas circunstâncias de cada caso.

Iturraspe ensina que na obrigação de resultado o devedor assume o compromisso de alcançar um objetivo ou conseguir um efeito almejado. E na obrigação de meios, o devedor não assegura a consecução do resultado esperado, mas se obriga a empregar os meios necessários e indicados para a proposta esperada, sendo o resultado secundário à obrigação e não integrante como objeto do contrato ( in Responsabilidade Civil del Médico, Buenos Aires Editora Astrea, 1979).

Assegura ainda o mesmo autor que na obrigação de meios, o resultado que se promete na assistência médica não é a cura do paciente, mas a forma orientada para esse fim, desde que ele tenha empregado o melhor de sua capacidade e o que Ihe é disponível.

Kfouri Neto citando os irmãos Mazeaud, transcreve: "O credor não tem, então, que provar que o devedor tenha sido negligente, é ao devedor que incube estabelecer que obrou com toda prudência desejável e esperada. Na pratica ter-se-ia o seguinte: o paciente afirma que não foi curado. O médico não pode, então, permanecer numa posição de negativa, pura e simples, dizendo: prove minha imprudência, pois do fato de não haver atingido o resultado a que, sem dúvida, não se obrigou a alcançar, mas para o atendimento do qual havia prometido empenhar-se, resulta uma presunção de negligência contra ele. O médico tem, portanto, que provar necessariamente a prudência e a diligência com que se houve. Por isso, conforma-se aos princípios da obrigação de meios, obrigar os médicos a estabelecerem a certeza de que não atuaram com culpa" (in Responsabilidade Civil do Médico, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994).

A obrigação do anestesiologista é de meio porque o objeto do seu contrato é a própria assistência ao seu paciente, quando se compromete empregar todos os recursos ao seu alcance, sem no entanto poder garantir sempre um sucesso. Só pode ser considerado culpado se ele procedeu sem os devidos cuidados, agindo com insensatez, descaso, impulsividade ou falta de observância às regras técnicas. Não poderá ser culpado se chegar à conclusão de que todo empenho foi inútil face a inexorabilidade do caso, quando o especialista agiu de acordo com a "lei da arte", ou seja, se os meios empregados eram de uso atual é sem contra-indicações. Punir-se, em tais circunstâncias, alegando obstinadamente uma "obrigação de resultado", não seria apenas um absurdo. Seria uma injustiça.

Dizer-se que a obrigação contratual do anestesiologista é de resultado porque ele estaria obrigado a anestesiar o paciente, fazendo-o dormir e depois reanimá-lo às condições normais é um equívoco. A não ser que se entenda como anestesia geral, por exemplo, fazer dormir e depois acordar.

Primeiro, é preciso entender que a função do anestesiologista não é apenas fazer o paciente "dormir" e em seguida "acordá-lo". Depois, não fazê-lo dormir e acordar, podem constituir ocorrências insuperáveis, embora raras, mas independentes da vontade e do saber do especialista, ligadas às condições fisiológicas e patológicas do paciente e decorrentes da própria limitação da sua ciência. Ainda mais quando foram empregados todos os cuidados pré-anestésicos e solicitados todos os exames necessários. O anestesiologista não tem como prever muitos dos resultados, pois eles são também oriundos das condições multifárias do organismo humano. Acrescente-se a tudo isso o fato de ser a Anestesiologia considerada por muitos como a primeira das especialidades de alto risco, porque todos os seus instantes são críticos, são complexos e são difíceis.

A abrangência da competência do anestesiologista o leva não apenas aos conhecimentos das técnicas usuais e aos cuidados pré, trans e pós-operatórios, mas ao domínio da função respiratória, aos cuidados da atividade circulatória, da prevenção do choque, da supressão do estímulo doloroso, da correção das alterações dos líquidos eletrolíticos. E mais: exige-se dele o conhecimento e a execução simultânea e, às vezes, imediata do acesso vascular superficial ou profundo, permeabilidade das vias respiratórias, manutenção dos sistemas vitais, controle dos equipamentos, domínio sobre os órgãos principais e acessórios da respiração, controle das alterações gasosas, da capacidade residual funcional e controle da redução do volume minuto.

Em síntese, o que se afirma não é que o anestesiologista não cometa erros - sejam eles de diagnostico, de terapêutica e de técnicas -, ou que ele não seja nunca negligente quando se afasta da sala ou imprudente quando desnecessariamente atua de forma simultânea em duas anestesias. Mas, tão-só, que a anestesia tal qual vem se aplicando hodiernamente no conjunto das ações de saúde e em que pese a relevância que se dê à modalidade de obrigação, não pode constituir um contrato de resultado, mas de meios ou de diligência, embora em casos de manifesta negligência ou imprudência venha se ampliar sua responsabilidade quanto os métodos usados ou à terapêutica escolhida.

Nos casos de maus resultados, onde se procure comprovar um erro médico, o que se deve considerar, antes de mais nada, além do nexo causal e do tamanho do dano, é o grau da previsibilidade do autor em produzir o resultado danoso e a culpa suficientemente demonstrada, dentro das espécies negligência, imperícia e imprudência. Nunca, de forma dogmática. prender-se a um princípio discutível onde se afirma equivocadamente ser o ato anestésico uma obrigação de resultado, dentro da relação contratual entre o médico e o seu paciente.

A obrigação de resultado, onde se exige do devedor ativo de dar ou fazer alguma coisa, parece-nos a cobrança contratual dos prestadores de serviços de coisas materiais, ao não cumprirem a promessa quantitativa ou qualitativa de uma empreitada. Isso, é claro, não poderia ocorrer na assistência médica. A não ser que irresponsavelmente alguém prometesse tanto.

Mesmo assim, qualquer que seja a forma de obrigação de meios ou de resultado, diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando em conta principalmente o grau da culpa, o nexo de causalidade e a dimensão do dano, ainda mais diante das ações de indenizações por perdas e danos.

No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa aquiliana, e, em conseqüência a existência de uma obrigação do meio ou uma obrigação de resultado, parece-nos apenas um detalhe. Na pratica, o que vai prevalecer mesmo é a relação entre a culpa e o dano, pois até mesmo a exigência do ônus probandi hoje já tem remédio para a inversão da prova, qualquer que seja a modalidade de contrato.
 
 

(*) Vice-Presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Membro Titular da Academia de Ciências Médico-Sociais..
 
 

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