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A PURGA DA MORA NO DEC. LEI No 911/69

Marco Antonio Ibrahim - Juiz de Direito - RJ



Em palestra proferida no Salão Nobre da Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 1991, o jusprocessualista e Professor Sérgio Bermudes alertava a todos que nos falta, na maioria das vezes, u’a mentalidade constitucional. 

É neste sentido que a doutrina e a jurisprudência têm - com algum atraso, é verdade - feito eco às vozes daqueles que, desde a primeira hora, denunciaram o arbítrio legislativo que culminou na edição do Dec-Lei 911 onde a figura do devedor-consumidor é vilipendiada por um conjunto de regras absolutamente restritivas. Waldírio Bulgarelli (no seu Contratos Mercantis, Ed. Atlas) foi um dos que bem cedo lançou um j’accuse, lúcido e pleno de pertinentes ironias contra certos dispositivos do referido Dec-Lei (especialmente no que se refere à prisão civil do devedor, injuridicamente equiparado ao depositário) diploma que veio iludir intérpretes e aplicadores sobre norma tradicional do nosso Direito Constitucional que há muito acolhe os postulados da vetusta Lex Poetelia Papiria.

O art.170 da Constituição Federal de 1988 traz norma expressa segundo a qual a Ordem Econômica tem por fim assegurar a justiça social observando, entre outros princípios, a defesa do consumidor. Pois é diante deste ponto de vista que se afirma de flagrante inconstitucionalidade o § 1o do art.3o do Dec-Lei 911 que proíbe a purga da mora, pelo devedor, se este ainda não tiver quitado ao menos, 40% do preço financiado

E por que tal dispositivo é inconstitucional? É que estando em evidente desacordo com a norma programática do inciso V, do art.170 da C.F. acha-se, assim, revogado, mesmo porque vai de encontro a todos os princípios insculpidos no regramento do Código de Defesa do Consumidor que lhe é posterior. Poder-se-ia argumentar que as normas programáticas não invalidam leis ordinárias pré-existentes porque não têm eficácia plena, tal como veio de sustentar parte da Doutrina italiana em grave debate que se acendeu por ocasião da nova ordem instaurada pela Constituição de 1948. A própria Corte Suprema peninsular acolheu esta tese, em alguns julgados, em entendimento que, entretanto, encontra-se superado, estando hoje pacificada a opinião segundo a qual mesmo as normas de eficácia contida ou limitada, inclusive as normas constitucionais programáticas
 
 
"... se revelam com eficácia tão plena como qualquer outra. E a lei anterior com ela incompatível deve ser considerada revogada por inconstitucionalidade. Aliás, do ponto de vista da eficácia das normas programáticas em relação às leis precedentes, pouco importa dizer se há inconstitucionalidade pura e simples, se há revogação pura e simples, ou se há revogação por inconstitucionalidade. Relevante mesmo é fixar a tese dessa eficácia invalidadora das normas preexistentes incompatíveis." (José Afonso da Silva in, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 2a edição RT, pág.145/146)

É o próprio José Afonso da Silva, sem favor dos mais acatados juristas da história constitucional brasileira que, se abeberando nas lições dos famosos constitucionalistas Vezio Crisafulli e Ugo Natoli, estabelece, com sua habitual didática, conclusões em relação à eficácia imediata, direta e vinculante das normas programáticas constitucionais, asseverando que as mesmas 
 
 
"I - estabelecem um dever para o legislador ordinário;

II - condicionam a legislação futura, com a conseqüência de serem inconstitucionais as leis ou atos que as ferirem;

III - informam a concepção do Estado e da sociedade e inspiram sua ordenação jurídica, mediante a atribuição de fins sociais, proteção dos valores da justiça social e revelação dos componentes do bem comum;

IV - constituem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas;

V - condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário;

VI - criam situações jurídicas subjetivas, de vantagem ou de desvantagem..."(ob.cit., pág.146/147) (grifei)
 

Ora, o disposto no § 1o do art.3o do Dec-Lei 911 que restringe o exercício do direito à purgação da mora em função do limite de 40% do preço financiado é evidentemente afrontoso no que pertine à norma constitucional que impõe, como princípio, a defesa do consumidor que, aqui, é dramaticamente tolhida e, mesmo, desconsiderada.
 
 

Além disso, tal regra é intuitivamente dissonante dos princípios e direitos básicos revelados pelo Código de Defesa do Consumidor. Princípios não são normas. Princípios, são mais, são os fundamentos das normas.
 
 

E qual deve ser a atitude do julgador diante de tais circunstâncias? José Afonso, incorporando a doutrina do citado Vezio Crisafulli, no seu La Constituzione e le sue Disposizioni di Principio (pág.60) responde:
 
 
 
 
"Das normas programáticas em geral derivam vínculos para o legislador, para o administrador e para o juiz ...

Mas não só o legislador está obrigado a agir de acordo com os ditames programáticos. Com eles, "é o Estado mesmo, como sujeito unitário, que se autolimita, obrigando-se, para com a coletividade, a perseguir certos fins e, portanto, a assumir a proteção de certos interesses".(ob.cit., pág.156)
 

Pois estas e outras imposições do Dec-Lei 911, em todos os Tribunais do País, têm sido derrogadas pelo Direito Pretoriano a exemplo do que vem ocorrendo com a prisão civil do devedor fiduciário, matéria que diuturnamente vem sendo considerada inconstitucional, inclusive no seio do Superior Tribunal de Justiça e conta com o beneplácito de, ainda menor, mas expressiva parcela dos integrantes do Supremo Tribunal Federal. 

É bem verdade que em relação à absurda restrição à purgação da mora nas ações de busca e apreensão oriundas de contratos de alienação fiduciária, muito pouco se tem decidido a respeito estando a isto, aliás, totalmente alheia a mais autorizada Doutrina. Sem embargo disto, aqui e ali percebe-se resistência ao referido dispositivo legal, tal como se depreende de acórdão unânime oriundo do 1o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que, recentemente, abordou o tema. 
 
 
 
 
"CÓDIGO DO CONSUMIDOR - Alienação fiduciária - Incabível a restrição ao exercício do direito à purgação da mora em função de percentual de prestações quitadas - O direito à purgação da mora se tornou puro, exercitável sempre que haja inadimplemento, consubstanciando espécie de direito individual que previne dano patrimonial " (9a Câmara do 1o TA - Civ. SP, agrav.no 593.492-07, j.14/6/94 - Relator Juiz Oscarlino Moeller)

Embora referente a caso de consórcio e inspirado em fundamentos de ordem não constitucional, mas pertinentes ao direito do consumidor, o acórdão se insurge contra a restrição percentual imposta pelo Dec-Lei 911 deixando expresso que 
 
 
"A lei no 8.078/90, em síntese, vedando cláusula de perda automática de prestações pagas por motivo de resolução contratual, propicia também a proibição de se interpretar dispositivo de lei anteriormente vigente que possa afrontá-lo, em face de um direito individual criado pelo legislador e que objetive impedir um dano patrimonial, como é o direito à purgação nos contratos de alienação fiduciária. Tal conclusão dimana diretamente do disposto no art.2o, § 1o, do Dec-Lei no 4.657, de 04.09.42 (Lei de Introdução ao Código Civil), posto que o princípio acima exarado, oriundo do art.6o, VI, e 53 da Lei no 8.078/90 é incompatível com a restrição imposta pelo art.3o, § 1o, do Dec-Lei no 911/69, que, como lei anterior, fica revogado nessa parte pela lei posterior." (grifei)
Passando ao largo da evidência de que os contratos (de adesão, via de regra) de financiamento são redigidos com letras minúsculas e de que os atuais juros dos financiamentos são moralmente usurários, constata-se que o devedor, na operação de compra e venda, no mais das vezes, quita, à vista, boa parte do valor total do bem financiado. Não é ético nem jurídico, destarte, considerar a expressão preço do financiamento como aquele referente, tão somente ao empréstimo, desconsiderando o valor total do negócio para efeito de restringir o direito à purga da mora. Tal exegese é, de fato, temerária e inconstitucional. 
 
 

Com a purga da mora, não se verifica nenhum prejuízo para o autor-credor, que além do principal receberá todos os encargos financeiros e será ressarcido das custas processuais e honorários de advogado. Entretanto, para o devedor que, v.g., tenha pago à vista 50% do preço total, o impedimento à purgação da mora equivale, na prática, à perda do bem, pois que se lhe resta a risível garantia de receber o saldo que eventualmente existir após o leilão extrajudicial do bem alienado fiduciariamente que ocorre sem qualquer controle do juiz ou do devedor. Além de inconstitucional, o dispositivo é tão absurdo que implica na virtual perda do bem mesmo para aquele que tenha financiado apenas 1% do seu valor total ! e - por inadimplência, muitas vezes circunstancial e passageira - tenha deixado de pagar ao menos 40% do preço financiado.
 
 

Como se vê, a inconstitucionalidade do § 1o do art.3o do Dec-Lei 911, tanto se manifesta porque a regra não é razoável. Com efeito, a cláusula do due process of law que, na esteira evolutiva do Direito Constitucional dos EUA, há muito extrapolou os limites exegéticos e conceptuais que a deixavam circunscrita ao âmbito do Processo Penal e Civil (procedural due process), hoje tem reconhecido caráter substantivo com abrangência sobre toda e qualquer norma infra-constitucional as quais, por isso mesmo, têm sua eficácia condicionada não apenas aos critérios formais do processo legislativo, mas, sobretudo, a uma razoabilidade concreta. 
 
 

O controle incidental da constitucionalidade das leis, afeto aos juízes, inclui, por conseguinte, uma avaliação racional e, repita-se, concreta, de tal pressuposto. Não é de outro sentir a mais abalizada Doutrina nacional, como se verifica na monumental monografia de Carlos Roberto de Siqueira Castro (O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição do Brasil
 
 
 
"A cláusula erigiu-se, com isso, num requisito da "razoabilidade" (reasonableness) e de "racionalidade" (rationality) dos atos estatais, o que importa num papel de termômetro axiológico acerca da justiça das regras de direito. Em conseqüência, firmou-se no plano institucional, nos sistemas constitucionais que adotam o mecanismo da judicialreview para o controle da constitucionalidade dos atos normativos, a proeminência do Poder Judiciário como órgão constitucionalmente incumbido de declarar de forma conclusiva what the law is, ou seja, de revelar valorativamente o sentido e o alcance das leis para a garantia da supremacia da Constituição rígida." (pág.383) 
Em suma: nas Ações de Busca e Apreensão de bens adquiridos através de contratos de financiamento com cláusula de alienação fiduciária, deve ser reputada inconstitucional e, portanto, inaplicável a restrição contida no § 1o do art. 3o do Dec-Lei 911/69, cumprindo que seja deferida a purga da mora, ainda que o devedor não tenha quitado quantia equivalente a 40% do valor financiado.

MARCO ANTONIO IBRAHIM

Juiz de Direito-RJ

Retirado de:http://www.teiajuridica.com/m/morapurg.html