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DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA
Paulo Sá Elias
advogado em Ribeirão Preto (SP)
- Na apresentação da minha tese de
graduação em Direito, à Universidade de Ribeirão Preto em 20 de dezembro de 1995, tive
o privilégio de tratar sobre a questão da desconsideração da personalidade jurídica.
Agora, passados mais de 2 (dois) anos daquele dia, venho novamente, com a mesma
satisfação, tratar sobre o assunto neste respeitável informativo jurídico.
- Nos Estados Unidos atualmente, enquanto
não há nenhuma fórmula precisa no sentido da correta aplicabilidade da
desconsideração da personalidade jurídica, os Tribunais tem decidido com base em
algumas diretrizes interessantes, vejam:
- Dizem os norte-americanos que a
desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicada nos casos em que a pessoa
jurídica sendo mero instrumento de outra atividade ou indivíduo é usada para cometer
fraude, provada através de atos e fatos incompatíveis com um propósito honrado, que
sirvam, desta forma, para derrotar a conveniência pública, justificar mal ou defender
crime.
- A garantia da separação patrimonial é
diretamente atingida quando não respeitadas as formalidades da pessoa jurídica. A
própria jurisprudência norte-americana tem entendido que a empresa que possui todas ou a
maioria das ações da subsidiária, que da mesma forma, possui diretores em comum,
financia a subsidiária, subscreve todas importantes ações desta, possui capital
grotescamente inadequado e que suporta as perdas, despesas e salários da subsidiária,
tem grande chance de ter sobre sua garantia da separação patrimonial, aplicado o
"Piercing the Corporate Veil".
- Não se pode misturar negócios
empresariais pessoais com negócios da pessoa jurídica. Há uma distinção clara entre
os procedimentos incorporados e os pessoais.
- O sempre citado e clássico exemplo da
falta de eqüidade alcançada com a pessoa jurídica, é o caso Salomon x Salomon,
julgado na Inglaterra em 1898. Segundo relato da ilustríssima professora doutora Rachel
Sztajn, Salomon era um comerciante de couro que constituiu uma sociedade por ações, que
no sistema inglês deveria ser composta por 7 (sete pessoas). Salomon, a mulher e os
filhos perfaziam esse número, mas a distribuição das ações foi a seguinte: uma ação
para a mulher e cada um dos cinco filhos e cerca de 20.000 (vinte mil) ações para ele,
Salomon. A seguir, Salomon transferiu seus negócios para a sociedade, incluindo aí os
estoques e carteira de clientes. Mas adiante concedeu empréstimo à sociedade, obtendo
garantia (debênture com garantia flutuante). Quando a sociedade tornou-se insolvente,
Salomon exerceu seu direito de debenturista contra a empresa, com o que deixariam de ser
pagos os demais credores. Em primeira instância, o Juiz entendeu que a sociedade se
confundiu com Salomon e que desta forma seu crédito não deveria ser privilegiado. A
sentença foi reformada pelo Tribunal sob o argumento de que as formalidades legais da
constituição da sociedade haviam sido observadas e que Salomon e a companhia eram
pessoas distintas.
- É bem estabelecido que pessoas jurídicas
são entidades legais separadas dos seus sócios. É sagrada a separação patrimonial
entre a pessoa jurídica e a pessoa física. Lembro-me muito bem que na ocasião da
apresentação da tese de graduação à Universidade, iniciei com a seguinte questão:
"Como que grandes empreendimentos, que necessitam de elevados investimentos e da
conjugação de recursos de inúmeras pessoas, poderiam ser realizados sem a separação
patrimonial dos indivíduos através da criação de alguma entidade jurídica que lhes
garantissem possibilidade operacional?".
- É evidente que a pessoa jurídica existe
como um instrumento legalmente previsto para que determinado indivíduo ou grupo de
indivíduos possam conseguir determinados fins, seja de um empreendimento industrial,
comercial ou de prestação de serviços por exemplo. A garantia aqui existente foi e tem
sido um dos vários elementos de fundamental importância no crescimento econômico nos
mercados capitalistas.
- A sagrada limitação da responsabilidade
dos sócios é instrumento que permite viabilizar empreendimentos para os quais concorrem
vários sócios, com diferentes quotas de capital. Seria um verdadeiro absurdo obrigar-se
cada sócio de uma pessoa jurídica, mesmo sendo pequena sua participação, a responder
ilimitadamente pelas obrigações sociais.
- Os Tribunais Norte-americanos entendendo
que embora a pessoa jurídica possa ter sua distinção patrimonial atingida pelo
"Piercing the Corporate Veil" decidem com a máxima e absoluta precaução e só
quando necessário ao interesse da Justiça.
- Quando requerida a aplicação da
desconsideração, os Tribunais tem aplicado padrões geralmente mais estritos no contexto
contratual, observando com máxima cautela se os "pressupostos de
aplicabilidade" do "Piercing the Corporate Veil" realmente estão
presentes. Aliás, quem contrata com uma sociedade anônima ou de responsabilidade
limitada, tem conhecimento que a responsabilidade dos sócios é limitada ao capital
subscrito por cada um.
- Luciano Amaro, aqui no Brasil, já dizia
que "nessas situações, não nos parece que se deva cogitar de aplicar-se a doutrina
da desconsideração da personalidade jurídica, pois não há nenhuma forma jurídica que
deva ser desprezada pelo Juiz". Na maioria dos casos, o próprio direito providencia
um meio legal que previne o abuso ou a fraude.
- Quando a lei cuida de responsabilidade
solidária ou subsidiária ou até mesmo pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa
jurídica ou ainda quando proíbe certas operações, não é necessária e nem autorizada
a desconsideração da personalidade jurídica, para atribuir as obrigações aos sócios,
pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio
já decorre do preceito legal. O mesmo ocorre se a extensão da responsabilidade é
contratual.
- O "Piercing the Corporate Veil
Lifting the Corporate Veil" aparece como algo mais do que simples dispositivo de
direito americano de sociedade. É algo que surgiu como conseqüência de uma expressão
estrutural da sociedade, por isso, em qualquer país em que se apresente a separação
incisiva entre pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema de
verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical separação conduz a
resultados completamente injustos e contrários ao direito.
- O ilustre magistrado Doutor Irinieu
Mariani, prudentemente enfatizou: "Tanto nos Estados Unidos, na Alemanha ou no Brasil
é justo perguntar se o Juiz, deparando-se com tais problemas, deve fechar os olhos ante o
fato de que a pessoa jurídica é utilizada para fins contrários ao direito ou equiparar
o sócio e a sociedade para evitar manobras fraudulentas. Diante do abuso de direito e da
fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em
seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito e se deve
desprezar a personalidade jurídica para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e
bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos".
- Verifica-se que a constituição da
sociedade e a teoria da pessoa jurídica não devem representar meio de iludir o
fundamento das normas jurídicas.
- Da mesma forma não se pode desestruturar
princípios de direito já consagrados, estruturadados e resolvidos na tentativa de
iniciar a aplicação de outro. Harmonia jurídica é algo fundamental.
- A existência do "Piercing the
Corporate Veil" vem aperfeiçoar o instituto da pessoa jurídica e a melhor
disciplina das relações empresariais e societárias. Há de se convir, que apenas o
tempo irá mostrar o caminho seguro à ser trilhado para a correta aplicação da
"Disregard Doctrine".
- É importante que haja bom senso, reflexão
e muito estudo. Se aceitarmos a aplicação da desconsideração da personalidade
jurídica sem que os pressupostos de aplicabilidade sejam realmente verificados, estaremos
correndo o sério risco de desestruturar toda uma legislação específica já consagrada
e resolvida, causando insegurança e abalo às relações sócio-econômicas.
- Tenho absoluta certeza que a Justiça
Brasileira tem as suas portas abertas à modernização, reestruturação e adequação
às novas realidades e quando menos esperarmos já teremos tais questões delineadas com a
devida prudência. Devemos nos recursar ser sempre e de modo completo, envolvidos por uma
lógica, derivada da existência de uma sociedade, onde ela sirva somente para distorcer
ou esconder a verdade.
E-mail do autor: president@sael.com