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A GRATUIDADE DO REGISTRO CIVIL
Frederico Henrique Viegas de Lima
 
 
 

"Por cima da moldura há uma chapa metálica comprida e estreita, revestida de esmalte. Sobre um fundo branco, as letras negras dizem Conservatória Geral do Registro Civil.’’
(José Saramago — ‘‘Todos os Nomes’’)
 

Passado um ano da entrada em vigor da Lei nº 9.534/97, que dispõe acerca da gratuidade do registro de nascimento e do assento de óbito, bem como suas respectivas certidões para todos os brasileiros, uma questão ainda continua sem solução: a lei efetivamente entrou em vigor em todo o país? Em uma resposta simples todos sabemos que não.

Vários são os fatores que inviabilizarm a aplicação desse diploma legal, sendo o mais importante a existência de inúmeras ações judiciais propostas pelas associações de classe dos registradores civis das pessoas naturais, para afastar a gratuidade dos registros e certidões, logrando, na maioria dos casos, medidas liminares junto aos denominados juízos competentes a que se refere a legislação registrária.

Desde há muito tempo os registros de nascimentos e os assentos de óbitos são gratuitos para os reconhecidamente pobres, de acordo com o que está reafirmado no artigo 5º, LXXVI, da Constituição Federal. Trata-se inquestionavelmente do que em seu momento chamamos de gratuidade constitucional (cfr. o nosso ‘‘O Registro Civil das Pessoas Naturais — Uma idéia para a viabilização desses serviços.’’ In. ‘‘Temas Registrários.’’ Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 103), a qual não podemos confundir com a gratuidade que também denominamos de legal, para todos os cidadãos, prevista na Lei nº 9.534/97. Esta é mais abrangente, mas nem por isso inconstitucional, uma vez que abarca aquela.

Esses dispositivos, de natureza universal e pública, como é a própria atividade registrária, devem ser comparados com o caráter privado das mesmas a que se refere o artigo 236 da Constituição Federal. Entendemos que a gratuidade conseguida, quer pela Constituição da República, quer pela Lei nº 9.534/97, não descaracteriza a natureza privada dos serviços registrários das pessoas naturais, posto que estes realizam uma gama de atos superiores ao registro de nascimento e o assento de óbito. De igual maneira, não podemos esquecer que as necessidades da sociedade atual fizeram com que uma série de atos notariais e registrários passassem a ser gratuitos e nem por isso foi retirada a natureza privada da atividade, no exercício de uma tarefa pública.

Dessa forma, o serviço público delegado a particulares deverá suportar a gratuidade, sem que com isso a população — carente ou não — deixe de usufruir do mandamento legal, tendo que pagar por tais atos. Em recentíssima decisão, o Supremo Tribunal Federal, julgando Suspensão de Segurança, por decisão de seu presidente, ministro Celso de Mello, entendeu que a segurança concedida pelo Tribunal de Justiça do Ceará devesse ser suspensa, para fazer valer a legislação federal, tornando efetivamente gratuitos os registros de nascimento e os assentos de óbito naquele estado.

Todavia, devemos pensar também nos inúmeros registradores civis das pessoas naturais existentes no país, principalmente naqueles das cidades mais longíquas, onde a atividade registrária em nada guarda semelhança ao poderio político e financeiro do início do século. Estes necessitam de remuneração para continuar a desempenhar as atividades, efetuando coisas simples, tal como a compra de livros de registro. Para tanto, é imprescindível que voltemos a discutir uma forma de compensação da gratuidade para os registradores civis das pessoas naturais, sem com isso deixar de cumprir a legislação federal que prevê o não-pagamento por esses serviços.

Sendo certo que a Lei nº 9.534/97 deve ter vigência e que os notários e registradores devam suportar a gratuidade, é importante novamente pensar sobre um mecanismo de compensação entre estes profissionais, de maneira que todos dêem sua parcela de contribuição aos cidadãos brasileiros. Ou ainda o que propusemos quando do anteprojeto que resultou na Lei nº 9.534/97, ocasião em que defendemos que a gratuidade, por dever ser suportada por todos notários e registradores brasileiros, impunha que tais atos devessem ser praticados por todos esses profissionais, independentemente de sua especialidade (vid. ‘‘O Registro Civil das Pessoas Naturais’’, cit.).

O que não podemos admitir é uma sensível parcela da sociedade — a mais carente — continuar a não existir como cidadãos por falta de registro, nem tampouco que o governo federal, pelo antidemocrático mecanismo da Medida Provisória, passe esses serviços delegados para as prefeituras. Criando assim mais um meio de jogo político para ser amplamente utilizado em época eleitoral, quando os prefeitos e vereadores valer-se-ão da necessidade do registro das pessoas naturais para cabalar votos, no que sociologicamente já é batizado de ‘‘voto de cabresto’’, na perfeita análise de Victor Nunes Leal (‘‘Coronelismo, Enxada e Voto’, 3ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. p. 42).

Evidentemente todos os notários e registradores brasileiros devem suportar a gratuidade dos registros de nascimento e assento de óbito, sem que com isso seja esta mais um mecanismo político para sacrificar a população. Para tanto, o governo federal deve permitir a compartição da gratuidade no seio da própria atividade registral, que não deixará de ser exercida em caráter privado por delegação do poder público.
 
 

Frederico Henrique Viegas de Lima
Professor adjunto de Direito Civil da Universidade de Brasília e doutor em Direito pela Universidade de Valladolid, Espanha
 

retirado de: http://www.neofito.com.br/front.htm