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DOUTRINA NACIONAL
 
A Restituição do Indébito e o Recebimento de Boa Fé.
Freddy Gonçalves Silva
Professor de Direito Civil/Comercial Faculdade de Direito de Bauru
 

Trata-se de tema contemporâneo e que tem monopolizado os escritórios de advocacia sempre irradiando grande polêmica quando as questões são confrontadas à luz do direito.

Necessário me parece equacionar o problema sobre premissas básicas para inferir-se da viabilidade da questão proposta.

1 - Em primeiro lugar, acentue-se como exemplo de impossibilidade de repetição a chamada obrigação natural, que, desprovida de coerção e exigibilidade, põe a cobro o direito de pedir devolução daquilo que foi pago sem estar obrigado e de forma voluntária, por força da soluti retentio, que milita em benefício do credor.

Em tais circunstâncias,

É o que ocorre com a dívida prescrita, com a dívida de jogo ou com os juros não convencionados.

2 - No caso proposto, mais especificamente, traz o Código Civil disposição expressa regulamentando o tema, de forma a tornar o autor carecedor do direito de pedir, tendo em vista que aquele que recebe de boa fé, não pode ser constrangido a devolver.

O respeito à boa fé acha-se consubstanciado no parágrafo único do art. 933 do Código Civil, segundo o qual, quem haja entregue em pagamento coisa fungível (v. g., dinheiro), não pode mais reclamar do credor que, de boa fé, tenha recebido e consumido a coisa que lhe foi paga - ainda que o solvente não tivesse direito de alheá-la.

No mesmo diapasão, coloca-se o Código de Processo Civil, quando determina o dever de proceder-se com lealdade e boa fé.

Daí ressaltar Caio Mário que:

É que, em se tratando de coisa fungível, consumida de boa fé, extingue-se a propriedade do terceiro, tornando-se o possuidor proprietário irrevogável. E a razão é de clareza meridiana... Se admitirmos possa o devedor intentar ação de nulidade, para restaurar-se o statu quo ante, assevere-se que, no caso de a coisa ter sido consumida, qualquer interesse desaparece, perdendo a ação seu objetivo fundamental, vez que o proprietário não poderia exercer a reivindicação sobre a mesma.

Tais princípios aplicam-se ao dinheiro como coisa fungível por excelência, como bem esclarece Carvalho dos Santos, in Código Civil Brasileiro Interpretado, v. XII, p. 64, desde que o credor tenha consumido de boa fé (p.66).

Aliás, o respeito à boa fé, sempre monopolizou todo o direito brasileiro, ainda que apenas resulte este de simples aparência, Teoria da Aparência, ora convalidando situações equivocadas, ora anulando atos viciados de erro ou ignorância, arts. 86 a 91, com intuito de proteger a boa fé.

Tal posição aparece de maneira clara na Parte Geral do Código Civil, com os atos jurídicos no direito de família, v. g. art. 218, no direito das coisas, quanto às benfeitorias, arts. 516 e 517, quanto aos contratos, nas sucessões e também por todo direito processual civil e direito comercial.

Daí interpretar-se o pagamento indevido contido no art. 964 do Código Civil, de forma mais profunda, e não simplistamente como contrariedade apenas que possibilite a alegação de locupletamento ilícito por parte de quem recebeu.

Pois bem, essa é a primeira questão quanto ao recebimento de boa fé.

3 - A questão polêmica surge da regra do art. 964, que tem sido invariavelmente utilizado como contestação ao primeiro princípio, parecendo à primeira vista, que as disposições são totalmente conflitantes, pois, neste caso, preconiza-se a obrigação de restituir o que não era devido:

Necessário, pois, interpretar-se o pagamento indevido contido no art. 964 do Código Civil, de forma mais consentânea com o espírito da lei e não como mera contrariedade ao princípio da não devolução.

É que, este caso, só o erro e, especialmente, a falta de justa causa para o pagamento, cria para o accipiens a obrigação de restituir.

Daí concluir que, havendo uma obrigação, embora não exigível, o pagamento não se restitui. Em tal hipótese, não há erro quanto à obrigação: ela fundamentalmente existe, como bem assevera Darcy de Arruda Miranda Júnior (in Das Obrigações na Jurisprudência, E. U. D., p. 150). Em igual sentido, dispõe o art. 965 do Código Civil, ao exigir especificamente a prova do erro. Porém, é preciso que se insista, erro quanto à existência ou não da obrigação.

Não seria, pois, passível de confusão, o erro quanto à necessidade ou não de se cumprir a obrigação, como foi esclarecido, com o erro de data, a antecipação equivocada do pagamento, ou o pagamento a mais daquilo que não foi convencionado, mas também não foi ardilosamente exigido.

Em tais casos, quem recebeu de boa fé e já consumiu, não está obrigado a restituir, salvo é evidente, se exigiu a mais daquilo que tinha ciência não lhe ser devido.

Não se cogita no caso de enriquecimento sem causa de vez que, havendo a obrigação, conquanto inexigível, desaparece o direito.

Daí, o ensinamento de W. B. Monteiro que nem todo o enriquecimento é condenado e sim, exclusivamente, o injusto, sem causa lícita ou jurídica. (Obrigações - 1a Parte, p. 268).

Quem paga, pois, dívida não vencida, não tem direito à repetição, tendo em vista a existência da obrigação. O devedor simplesmente se antecipa com o pagamento, renunciando o prazo que militava a seu favor.

De forma idêntica, se houve pagamento de juros não convencionados, realmente pagou mais do que devia, mas nem por isso pode pedir restituição, art. 1.263 - Código Civil, ou alegar o locupletamento ilícito por parte de quem recebeu.

Por tudo isso, somando-se a existência da obrigação, a boa fé do accipiens, que além de tudo consumiu o recebido, tem seu direito amplamente protegido contra o pedido de repetição, pois procede ao amparo da Lei como verus dominus, ainda que aparente o seu direito.

4 - No campo do Direito Tributário vem demonstrando a doutrina que, pela natureza compulsória dos tributos, o solvens - quem os paga, não teve escolha, a menos que se sujeitasse às imposições do accipiens, no caso o fisco.

Daí por que nossos repertórios jurisprudenciais têm ordenado a restituição de impostos cobrados contra preceitos de legalidade, resultando que a simples dúvida do solvens, a respeito da existência do débito, permite a repetição.

5 - De fato, o primeiro caso de restituição é o de imposto indevido, ou seja, sem causa jurídica que é a própria lei, enquadrando-se na figura do erro de direito, art. 165.

A segunda hipótese do art. 165, I, configura erro de fato - o pagamento foi indevido porque a natureza ou as circunstâncias do fato gerador, efetivamente ocorrido, não enquadram na lei.

Daí concluir que:

Elevando para uma gama de outras hipóteses nos artigos seguintes (Cassação de Decisão Condenatória, Repetição de Tributos Transferíveis, Tributos Diretos e Indiretos, Restituição de Juros e Multas), o tema vem crescendo gradativamente no cotidiano forense com a ingerência de novas legislações, para ganhar espaço no campo de proteção do consumidor, de um modo geral.
 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - Curso de Direito Civil - Washington de Barros Monteiro, Obrigações - 1a parte.

2 - Instit. De Direito Civil - Caio Mário da S. Pereira, 11a ed. - Ed. Forense.

3 - Código Civil e Legislação Civil em Vigor - Theotonio Negrão, 15a ed. - Ed. Saraiva.

4 - Das Obrigações na Jurisprudência - Darcy de Arruda Miranda Júnior - E.U.D.

5 - Direito Tributário Brasileiro - Aliomar Baleeiro, 5a ed. Ed. Forense.

6 - Jurisprudência.

Extraído de: http://www.ite.com.br/revista/rev_20/rev_20_1.htm