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Acesso à Justiça e Direitos Humanos: O Problema no Brasil

 
Antônio Celso Alves Pereira
Resumo: 
O presente texto discorre sobre a necessidade da criação de mecanismos eficientes que garantam a efetividade dos direitos humanos quando estes sejam violados. Dentro desta ótica, examina os dispositivos legais pertinentes à matéria no direito brasileiro e em documentos internacionais. A acessibilidade do Poder Judiciário no Brasil é analisada, tendo em vista  o importante papel que desempenha na garantia dos referidos direitos. 
I) Um dos fatos mais importantes a destacar no processo de evolução e de democratização de Direito Internacional neste século é a consagração, pela melhor doutrina, da personalidade internacional do homem. Dentre as controvérsias que ainda persistem nessa matéria está o problema do acesso individual aos tribunais internacionais. A Corte Internacional de Justiça, refletindo a conceituação de soberania nacional vigente à época de sua criação, e preocupada em não invadir o chamado "domínio reservado do Estado" registra no artigo 34 do seu Estatuto que somente os Estados poderão ser partes em questões submetidas a julgamento em seu âmbito. Contudo, merece especial relevo o fato de que, no processo de evolução do direito internacional em matéria de proteção dos direitos humanos, caminhou-se na direção do reconhecimento da capacidade processual individual, ou seja, foram criados mecanismos que permitem aos indivíduos, independentemente do sistema clássico da proteção diplomática, argüir seus direitos por meio dos instrumentos internacionais de implementação dos direitos humanos, expressos no sistema de petições individuais dos órgãos de supervisão internacional. Devemos registrar a existência de órgãos de supervisão erigidos diretamente de resoluções e dos próprios textos de Cartas instituidoras de organismos internacionais e, obviamente, aqueles oriundos de tratados e convenções relativos aos direitos humanos. A título de exemplo, citemos, dentre outros, o Comitê de Direitos Humanos do Pacto das Nações Unidas sobre Direitos Civis e Políticos, o Comitê contra Tortura da Convenção da ONU contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, os órgãos criados pela Convenção Européia de Direitos Humanos - a Comissão e Corte Européia de Direitos Humanos - e, no Continente Americano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos - artigo 112 da Carta da OEA e artigo 33 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos - Pacto de San José de Costa Rica - 1969 - e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, também criada pela referida Convenção.
Convém assinalar que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, de conformidade com o art. 41, tem como função principal promover a observância e a defesa dos direitos humanos dos povos da América. O artigo 44 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelece:
"Qualquer pessoa ou grupo de pessoas, ou entidade não governamental legalmente conhecida em um ou mais Estados membros da Organização, (OEA) pode apresentar à Comissão petições que contenham denúncias ou queixas de violação desta Convenção por um Estado Parte". Consulte-se, também, o artigo 25 da Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais.
É bom deixar claro que este sistema de petições só pode ser acionado pelo indivíduo, uma vez esgotados todos os recursos da jurisdição interna ou quando não existir, na legislação interna do Estado, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados, (Art. 46, nº 1, letra a e nº 2, letra a da referida Convenção.) 
II) Convém destacar que, na linha histórica moderna, o ponto de partida da luta pelos direitos do homem foi determinado pelo movimento cultural-filosófico do Iluminismo, sobretudo no que diz respeito à liberdade de pensamento. A pioneira "Declaração da Virgínia", de 1776, a "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão" de 1789, da Assembléia da Revolução Francesa, são elementos fundamentais do processo evolutivo que, realmente, só alcançaria amplitude internacional com a concretização de alguns dos principais objetivos das lutas sociais do século XIX, decorrentes dos problemas intrínsecos às relações capital/trabalho surgidos com a 1ª Revolução Industrial. A Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, outorgada em 1891, teve esse tema como ponto central e lançou as bases da Doutrina Social da Igreja Romana. Já no século XX, a criação do OIT - Organização Internacional do Trabalho, pelo Tratado de Versalhes, em 1919, é outro marco a destacar nesse processo evolutivo, que traria a consagração da expressão "direitos sociais"  chamados de segunda geração na classificação didática geral dos direitos humanos. Contudo, neste contexto, procede a observação de Antônio Augusto Cançado Trindade 2e que, na ordem internacional, os direitos sociais podem ser listados como sendo os de primeira geração. 3
A criação da ONU, em 1945, e a promulgação da "Declaração Universal dos Direitos do Homem", em 1948, trouxeram, de forma definitiva, o problema dos direitos humanos às grandes discussões internacionais, com profundos reflexos na ordem interna das sociedades nacionais.
"A Declaração Universal - afirma Bobbio - contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela é concreta, dos direitos positivos universais... A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. é uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas as suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre." Assim, a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma série de instrumentos internacionais vieram à luz abordando os temas mais variados do elenco dos direitos inalienáveis da pessoa humana, cada um resultante de um movimento e de uma realidade política e histórica, todos, contudo, convergentes e, ao cabo, marcados pela indivisibilidade.
Diante do que acabamos de discutir, cabe-nos apontar que, neste final de século, como ensina o já citado Norberto Bobbio, o problema central dos direitos humanos, "não está em saber quais e quantos são esses direitos, qual a sua natureza e o seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garantí-los, para impedir que apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados." 5
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III) A partir das idéias acima expostas, acreditamos estar bem claro o fato de que o ponto central da questão dos direitos humanos, sobretudo no âmbito do Terceiro Mundo, concentra-se, sobretudo, na efetividade dos mecanismos internos e internacionais de implementação desses direitos e no papel do Estado e das organizações não-governamentais, nessa questão. O Estado, ao assumir, pela ratificação, o compromisso de garantir aos indivíduos sob sua jurisdição o gozo dos direitos consagrados em uma convenção internacional, sobre direitos humanos, obriga-se, é óbvio, não apenas a assegurar o fiel cumprimento do dito compromisso, mas tem também, o dever de prevenir e diligenciar para que o tratado não seja letra morta. As convenções internacionais versando sobre a proteção dos direitos da pessoa humana, pela natureza dos temas que elas consagram e considerando a titularidade dos direitos protegidos, consubstanciam matérias claramente capituladas no rol dos temas relativos à ordem pública. Como ensina Antônio Augusto Cançado Trindade, os tratados de direitos humanos "são distintos dos tratados do tipo clássico que incorporam restritivamente arranjos e concessões recíprocos, os tratados de direitos humanos prescrevem obrigações de caráter essencialmente objetivo, a serem garantidos ou implementados coletivamente, e enfatizam a predominância de consideração de interesse geral ou orde public que transcendem os interesses individuais das Partes Contratantes. A harmonização de suas normas com o direito interno dos Estados Partes, assim como a posição que possam vir a ocupar neste último, dependerão não apenas de considerações de ordem constitucional interna, mas também de desenvolvimentos confiados aos órgãos internacionais estabelecidos pelos tratados de direitos humanos". 6
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As diversas convenções internacionais sobre direitos humanos, sejam aquelas voltadas para o plano universal, sejam outras direcionadas ao plano regional, todas insistem no dever inquestionável do Estado-Parte de respeitar e fazer respeitar os direitos da pessoa humana submetida à sua jurisdição doméstica.
IV) A Constituição Brasileira de 1988 avançou bastante nas questões pertinentes aos direitos humanos. Elaborada numa fase muito importante da vida nacional, quando o país transitava dos anos do regime autoritário para o Estado de Direito, a Carta de 1988 consagra em seu Título II, Capítulo I, o problema dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. Expressos no artigo 5º e em seus 78 incisos, esses direitos aparecem na legislação brasileira de forma realmente inovadora, trazendo garantias até então inexistentes no Brasil: o mandado de segurança coletivo, que pode ser impetrado por organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, bem como por partido político com representação no Congresso Nacional, o habeas data, que será concedido com o propósito de assegurar o conhecimento, pelo interessado, de informações relativas à sua pessoa contidas em arquivos ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público, ou se for o caso, para retificar dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo, o mandado de injunção passou a ser o instrumento legal a ser utilizado pelo indivíduo quando faltar norma regulamentar que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, a ação civil pública, que pode ser proposta pelo Ministério Público, pela União Federal, pelos Estados-Membros, pelos Municípios e respectivas autarquias e entidades paraestatais, por fundações e por associações comunitárias. é importante assinalar que a Constituição de 1988, em seu artigo 103, IX, confere às Confederações Sindicais ou entidades de Classe de âmbito nacional, o poder de propor ação de inconstitucionalidade. Além desses dispositivos renovadores, a Carta de 1988 manteve as garantias que vigoravam nas Constituições anteriores, o habeas corpus, o julgamento pelo Tribunal do Júri e o mandado de segurança individual. Registre-se, também, o papel que o Ministério Público recebeu da Constituição de 1988, isto é, deu-lhe a função única de fiscal da sociedade, ao contrário do que acontecia no direito constitucional anterior, quando acumulava os papéis antagônicos de advogado do Estado e de fiscal do povo. O artigo 129 da Constituição Federal de 1988, ao estabelecer as funções institucionais do Ministério Público, confere a este importantíssimo órgão papel relevante na defesa dos direitos humanos.
Os direitos sociais são amplamente protegidos pela Constituição de 1988. Os artigos 6º, 7º, 8º, 10 e 11, regulam os aspectos fundamentais dos direitos econômicos e trabalhistas. Os artigos 12 e 14 tratam da nacionalidade e dos direitos políticos. Pelo exposto, podemos deduzir que a lei maior brasileira cobre de forma ampla a proteção dos direitos humanos e, em assim sendo, o problema do desrespeito a esses direitos no país não decorre da inadequação de nossa legislação aos instrumentos internacionais versando sobre o assunto. é bom lembrar que o já citado artigo 5º, em seu parágrafo 2º, ordena: "Os direitos e garantias expressas nesta Constituição não excluem outros decorrentes de regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" - O Brasil completou recentemente - 1992 - o quadro ratificações dos tratados e convenções que formam o elenco internacional de instrumentos fundamentais à proteção da pessoa humana em seus mais variados aspectos.
Assim. o ponto central da proteção dos direitos humanos, em escala nacional, está não somente na necessária interação entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito interno, mas, principalmente, na falta de vontade política, na incompetência burocrática, no rancor ideológico das elites e no fracasso do Estado brasileiro desorganizado e ausente no cumprimento de seus deveres constitucionais mais elementares.
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V) Dentre os vários entraves ao pleno exercício dos direitos humanos universalmente consagrados, por parte de indivíduos submetidos à jurisdição brasileira, destaca-se o grave problema do acesso à Justiça. Direitos inalienáveis da pessoa humana são cotidianamente violados, por ação ou omissão do próprio Estado, ou em decorrência das relações privadas.
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Embora dotado, como já se falou, em seu aparato, de legislação adequada, o Estado brasileiro fracassou redondamente em suas políticas de proteção às camadas mais carentes de sua população. Uma série de fatores econômicos, políticos e culturais decorrentes das condições históricas em que se deu a consolidação da nação brasileira, fazem aflorar o corte autoritário e exarcebam as contradições de classe, que impedem o desenvolvimento da cidadania em nosso país. Embora se apresente da forma mais cruel nas sociedades nacionais que forma a grande lista das nações pobres, como assinala Mauro Cappelletti, "o movimento por acesso à Justiça tem representado, nos últimos decênios, talvez, a mais importante expressão de uma radical transformação no pensamento jurídico e das reformas normativas em um número crescente de países.
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Como movimento de pensamento, o acesso à Justiça expressou uma potente reação entre uma impostação dogmático-formalística que pretendia identificar o fenômeno jurídico exclusivamente no complexo da norma, essencialmente de derivação estatal, de um determinado país... Quanto ao plano do método de pensamento, o movimento do acesso à Justiça não se contenta com uma mera descrição do ato jurídico positivo, propõe também uma grande responsabilidade do jurista no plano da elaboração, ou da proteção, das reformas, de modo a responderem a contento aos critérios de acessibilidade" 7.
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Na matéria em questão, acesso à Justiça como instrumento eficaz à garantia dos direitos humanos, a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, LXXIV, expressa que o "Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Comentando este dispositivo constitucional, José Carlos Barbosa Moreira registra: "A primeira observação, um tanto óbvia, é de que " Estado" designa aí toda e qualquer entidade político-administrativa: não apenas a União e os Estados-Membros. Também o Município, por exemplo, no âmbito próprio de sua atuação tem o dever de assistir, e também em face dele pode surgir para o necessitado, nesse âmbito, a pretensão à assistência... Por outro lado, nada autoriza a supor que a Constituição haja reservado ao Poder Público o monopólio da assistência. Se ele tem o direito de assistir, nem por isso se concluirá que tenha em caráter exclusivo. Continuam em vigor os textos legais que contemplam a prestação gratuita de serviços aos necessitados, notadamente por parte de profissionais liberais. Subsiste, mesmo, a preferência dada, para a representação em juízo ao advogado que o próprio litigante desprovido em meios indique8. Convém, ainda, assinalar que a Constituição assegura, também, gratuitamente aos reconhecidamente pobres do registro civil de nascimento e da certidão de óbito. "São gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data e, na forma da lei aos atos necessários ao exercício da cidadania" - art. 5º, LXXVII.
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Pelo exposto, podemos inferir que a legislação brasileira nessa matéria está amplamente adequada, por exemplo, ao espírito do artigo 43 da Carta da OEA que estabelece obrigação dos Estados-membros de realizar todos os esforços possíveis para desenvolver políticas eficientes e disposições adequadas a fim de que todas as pessoas tenham a devida assistência legal para fazer valer seus direitos (letra i). Da mesma forma o artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que trata das garantias judiciais e que em sua letra e expressa o "direito irrenunciável da pessoa humana de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido em lei". Na letra e do mesmo dispositivo está claro que se deve conceder ao acusado o tempo e os meios adequados para preparação de sua defesa. O artigo 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966) diz: 
"1- Todas as pessoas são iguais perante os tribunais e as cortes de justiça. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida publicamente e com as devidas garantias por um tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido por lei, na apuração de qualquer acusação de caráter penal formulada contra ela ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil". A letra d do mesmo artigo estabelece ainda que toda pessoa terá direito a um defensor designado ex officio gratuitamente, se não tiver meios de remunerá-lo.
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A legislação interna brasileira, como vimos, conforma uma gama satisfatória de normas voltadas à possível concretização do acesso à Justiça por parte de pessoas que não dispõe de recursos mínimos para custear batalha judicial para garantir seus direitos. De novo, cito Barbosa Moreira, quando o notável jurista afirma que, no tema em questão, o Brasil conta com textos normativos adequados. "O panorama dos fatos projeta, sem dúvida, imagem muito menos satisfatória: aqui, como alhures, prevalece a velha e conhecida contraposição do "país legal" e "país real". Seria de estranhar, aliás, que funcionassem bem os serviços da Justiça, e outros correlatos, em proveito de pessoas carentes de meios, se o funcionamento deixa tanto a de-sejar mesmo quando prestados tais serviços a quem dispõe de recursos para ocorrer às despesas necessárias". 9
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São várias as causas que impedem as populações carentes postularem direitos violados nos tribunais. De pronto, aparece a total falta de informação, a ignorância dos próprios direitos, fatos que inibem considerável parcela da população brasileira de procurar a via judicial. Num país com uma massa considerável de analfabetos - 18,9% da população -, torna-se realmente difícil informar o cidadão sobre seus direitos. Esta é, por si, uma realidade advinda do não-cumprimento, por parte do Estado, de um de seus deveres fundamentais - o direito à educação - universalmente consagrado em vários textos internacionais, sobretudo, no artigo 13 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais e no artigo 28 da Convenção sobre os Direitos da Criança. Por falta de informação, milhões de brasileiros não têm sequer, registro civil. Não sabem da obrigatoriedade e da gratuidade do serviço para as pessoas carentes. Segundo o artigo 7º da citada Convenção sobre os Direitos da Criança, 1969 - a criança deverá ser registrada imediatamente após o nascimento e os Estados Partes deverão assegurar a implementação desse direito conforme suas leis nacionais. Pelo que se vê, este é outro compromisso internacional que o Brasil não cumpre a contento.
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Os elevados custos judiciais funcionam, também, como obstáculos ao acesso à Justiça. Nas causas de pequeno valor econômico o problema fica solucionado se o demandante procurar os Juizados Especiais de Pequenas Causas, onde ele terá isenção das custas e de outras despesas judiciais. De novo aparece o fator desinformação. A maioria da população carente não sabe, nunca ouviu falar desses Tribunais Especiais e da gratuidade dos seus serviços. Outro elemento determinante é a morosidade e o formalismo dos órgãos judiciários.
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"A justiça brasileira é, antes de tudo, demasiadamente lenta. A solução dos litígios requer, geralmente, bastante mais tempo do que seria razoavelmente necessário para o seu término. Processos que poderiam ser solucionados em horas ou dias levam meses e anos, demandas que a boa técnica processual recomendaria finalização em meses e anos demandam décadas... Essa excessiva demora frustra a reparação dos direitos lesados e subtrai do sistema jurisdicional milhões de lesões ao direito. A demora retringe enormemente o âmbito de atuação objetiva da justiça". 10
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Na Justiça do Trabalho, o cerceamento do acesso aos tribunais não é tão gritante, em razão das campanhas e da ação direta dos sindicatos. Talvez seja aí onde haja melhor divulgação e maiores incentivos, entre os segmentos mais desfavorecidos da nossa população, para a busca do direito violado através da via judicial. Apesar disso, a Justiça do Trabalho não funciona adequadamente em razão da lentidão e do acúmulo de ações em suas Juntas e Tribunais. São distribuídas mensalmente 12 mil ações trabalhistas às 54 Juntas de Conciliação e Julgamento da Cidade do Rio de Janeiro. Causas com recursos da decisão da Junta às instâncias superiores têm levado, em média, oito anos para serem resolvidas.
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São apontadas várias soluções para minorar esses problemas. Além dos Juizados de Pequenas Causas, é fundamental a criação de mecanismos que prestem assistência jurídica pré-processual, através de conciliação extrajudicial de natureza pública ou privada. Tramita no Congresso Nacional projeto de lei para a criação de comissões paritárias dentro das empresas, para a solução de conflitos trabalhistas. Esse mecanismo, se aprovado, será utilíssimo para agilização da Justiça, uma vez que ele poderá impedir a transformação do litígio patrão-empregado em processo judicial. Outros "Juizados Especiais, providos por Juízes togados, ou togados e leigos competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos em lei, e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau", podem ser criados pela União, pelo Distrito Federal, pelos Estados e Territórios, conforme o texto do artigo 98 - I, da Constituição de 1988. Assim, sob o mesmo espírito das comissões paritárias acima citadas, deve-se pleitear a criação dos tribunais de vizinhança para dirimir divergências no seio das comunidades, tribunais especiais para resolver pequenas demandas dos consumidores, litígios entre inquilinos e locadores, tudo isso ao lado de outras medidas que possam facilitar ao indivíduo o acesso à Justiça, como campanhas de informação via mídia eletrônica, melhor distribuição de renda e melhores condições de educação para o povo.
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VI) Concluindo estas observações acerca do acesso à Justiça como forma de assegurar a implementação dos direitos humanos, registramos mais uma vez, o dever internacional do Estado de respeitar e garantir o pleno exercício dos direitos da pessoa humana reconhecidos e protegidos por uma ampla lista de tratados e convenções que formam direito internacional dos direitos humanos.
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Cançado Trindade discorrendo sobre a "Evolução e Fortalecimento da Proteção Internacional dos Direitos de Pessoa Humana em sua dupla Dimensão", registra o fato de que no caso Irlanda vs. Reino Unido, a Comissão Européia de Direitos Humanos, em Relatório de janeiro de 1976, comentava que o artigo 1º da Convenção Européia sobre Direitos Humanos estabelece que as Partes Contratantes devem assegurar a qualquer pessoa sob sua jurisdição os direitos nela consagrados, e, da mesma forma, têm o dever não só de abster-se de qualquer ato envolvendo uma violação dos direitos consagrados na Convenção, mas igualmente assegurar o gozo de tais direitos em seus ordenamentos jurídicos internos de modo a "proibir qualquer ato, da parte de órgãos e agentes do Estado ou de indivíduos ou organizações privadas". Nessa mesma perspectiva, Cançado Trindade comenta, também, a posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sentenças de 1988 e 1989 - Casos Velasques Rodriguez e Godinez Cruz, onde a corte deixou bastante claro "o dever jurídico do Estado de prevenir, investigar e sancionar as violações dos direitos humanos no âmbito de sua jurisdição... Se o aparato de Estado atua de modo que tal violação permaneça impune e não se restabeleça à vítima a plenitude de seus direitos o mais cedo possível, pode afirmar-se que o Estado deixou de cumprir com seu dever de assegurar o livre e pleno exercício de seus direitos às pessoas sob sua jurisdição".11
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O acesso à Justiça é, portanto, uma das mais eficientes formas de realização dos direitos humanos. Como quer a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em seu artigo 25, "toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais".
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Portanto, não basta adequar a sua legislação aos compromissos assumidos internacionalmente se, internamente, o governo brasileiro não puder assegurar os meios para que sua população possa, quando for o caso, buscar a proteção dos tribunais e, da mesma forma, fazer cumprir toda decisão judicial em que se tenha considerado procedente o recurso. A situação dos direitos humanos no Brasil é gravíssima. O modelo econômico concentrador é responsável pelo acelerado empobrecimento do povo - milhões de brasileiros passando fome, milhões de analfabetos e de desamparados de toda a sorte. Como buscar, por exemplo, proteção individual nos órgãos de supervisão internacional dos direitos humanos se grande parcela da população brasileira não tem conhecimento de seus direitos constitucionais mais elementares. A mídia eletrônica, que poderia exercer papel preponderante nessa questão, está a serviço dos grupos dominantes e pouco faz para levar às populações carentes o mínimo de informações sobre seus direitos. Com uma população economicamente ativa de 64 milhões de pessoas, apenas 16 milhões têm carteira de trabalho assinada. Não podemos nos esquecer dos 10 milhões de brasileiros que perambulam pelos campos à procura de terra e de trabalho - os chamados sem-terra - e são vítimas constantes da violência e da discriminação por parte dos proprietários agrícolas.
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No quadro geral da crise brasileira o Poder Judiciário aparece com destaque. Como já observamos, a morosidade e o formalismo estão presentes no cotidiano dos órgãos judiciários. Corrupção, aplicação de verbas monumentais na construção de prédios faraônicos para instalar tribunais, corporativismo excessivo, ausência de controle externo, tudo isso afasta o Judiciário do povo. A organização administrativa dos tribunais é arcaica, ineficiente, resulta de antigos métodos burocráticos herdados da processualística colonial portuguesa, no espírito do velho sistema inquisitorial ibérico usado, na América Latina, como disse o jurista argentino Alberto Binder, "há séculos para perseguir as bruxas e hereges de forma totalmente arbitrária".12
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Sabemos que neste final de século, com a incrível aceleração do tempo histórico e a complexidade dos conflitos sociais, os procedimentos processuais tradicionais já não respondem com eficácia às exigências da nova realidade. No caso brasileiro precisamos, urgentemente, efetivar a reforma dos Códigos Penal e de Processo Penal. Os interesses difusos e coletivos estão a requerer novas atitudes, novos métodos e novas formas processuais. Cappelletti ensina "que se têm demonstrado bastante eficazes as associações privadas instituídas com a finalidade de tutelar determinados interesses difusos. Esse fenômeno levou a uma 'metamorfose' do direito processual, com a legitimação de um indivíduo (ator de classe) ou de uma associação em promover um juízo no qual estão interessados um número muito grande de 'partes anuentes', com a possibilidade de obter decisão judiciária envolvendo milhões de pessoas. O obstáculo processual consiste no fato de que a solução processual - o processo ordinário contencioso - mesmo quando são superados os problemas de patrocínio e de organização dos interesses, pode não ser a solução mais eficaz, nem no plano do interesse das partes, nem naqueles dos interesses mais gerais da sociedade".13
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Flagrante e continuado desrespeito aos direitos humanos está patente na desorganização nas Varas de Execução Penal, principalmente no Rio de Janeiro. Dezenas de detentos, cujas penas já foram totalmente cumpridas, permanecem presos, outros, que poderiam gozar dos benefícios da lei - prisão aberta, redução de pena etc. - da mesma forma não têm como buscar esses direitos, por não terem condições econômicas para contratar advogado e por não haver defensores públicos em número suficiente para atendê-los. O artigo 9 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos é claro quando afirma que ninguém poderá ser privado de sua liberdade arbitrariamente e que qualquer pessoa terá o direito de recorrer a um tribunal para que este decida sobre a legalidade de seu encarceramento.
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Por último registramos a nossa convicção de que os segmentos de baixa renda da população brasileira só terão, de fato, condições de livre acesso à Justiça quando, ao lado da vontade política dos governantes para fazer cumprir as leis, para reformar o Estado, para criar mecanismos que promovam uma justa distribuição de renda nacional e a executar reformas profundas na estrutura educacional do país, seja feita uma ampla reforma do Poder Judiciário, para simplificar os ritos, afastar o corporativismo e democratizá-lo para que possa abrir-se aos pobres e desvalidos.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem - 1948 - diz:
"Artigo VIII - Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes recurso efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela Constituição ou pela lei."


Retirado de:http://www.abmp.org.br/