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AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR POLUIÇÃO SONORA - CABIMENTO E LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO(Publicada na RJ nº 239 - SET/97, pág. 21)
Fernando Célio de Brito Nogueira
AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR POLUIÇÃO SONORA - CABIMENTO E LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO

5º Promotor de Justiça e Curador do

Meio Ambiente de Barretos-SP

A ação civil pública, instrumento destinado à defesa da cidadania, tem sido um dos mais importantes e eficazes mecanismos de proteção do meio ambiente, do patrimônio público, histórico, artístico, turístico, paisagístico e do consumidor.

Alguns operadores do direito, contudo, não têm visto a ação civil pública intentada pelo MP em virtude da poluição sonora como mecanismo de defesa do meio ambiente. Assim, algumas decisões têm dado pela ilegitimidade do MP, sustentando que a hipótese é de direito de vizinhança, interesses individuais, não de interesses difusos que possam ser defendidos por meio da ação civil pública.

Equivocado, a nosso ver, referido entendimento.

Vejamos:

A poluição sonora não pode ser entendida como fenômeno dissociado das agressões ao meio ambiente. Pelos inconvenientes que ocasiona, trata-se, sem nenhuma dúvida, de fator de degradação da qualidade de vida das populações, inclusive por força da industrialização e das inovações incessantes da vida moderna.

Perfeitamente aplicáveis, então, as conceituações de poluição e poluidor contidas na lei:

A Lei Federal nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelece em seu art. 3º, III, que se entende por poluição "a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:

a) Prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população..."

No mesmo artigo, em seu inciso IV, define como poluidor "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental".

Meio ambiente não abrange somente as florestas, os rios, os mares, o ar. Meio ambiente é nosso habitat, a casa em que moramos, o bairro, a cidade em que vivemos. Trata-se de conceito de grande amplitude, que não pode e nem deve ser restringido, dado seu enorme e real alcance.

Se a poluição sonora agride o meio ambiente e as populações a ela sujeitas, não há como negar, então, o cabimento e adequação da ação civil pública nos termos da L. 7.347/85, que prevê dentre as finalidades do instituto a defesa do meio ambiente, enquanto a CF de 1988, que recepcionou aquela lei, no ápice da pirâmide das normas, assegura a todos o direito a um meio ambiente sadio.

É necessário que se assente, também, o que são interesses coletivos e o que são interesses difusos.

Interesses coletivos são aqueles que dizem respeito a grupos de pessoas determináveis e normalmente certas e determinadas, entre as quais existe um liame por força de lei, contrato ou circunstâncias de tempo, lugar, atividade profissional, etc. Exemplos: os condôminos de um edifício; os professores ou alunos de uma dada escola; os operários de uma dada empresa, indivíduos filiados a uma determinada entidade sindical, etc.

Interesses difusos são aqueles que derivam e decorrem dos interesses coletivos em amplitude maior, ou seja, aqueles interesses coletivos que abrangem tantas pessoas, de modo que já não é mais possível identificar este ou aquele indivíduo lesado ou afetado pelo alcance dos efeitos que se tenha em vista. Existe aqui, como nota marcante, a indeterminação dos sujeitos. Exemplos: o direito ao ar puro, à preservação das águas, ao meio ambiente sadio e isento da poluição sonora, pela importância do silêncio (ainda que relativo) para o repouso, para o trabalho e mesmo para o lazer. Nota-se que são interesses que dizem respeito a todas as pessoas, indistintamente.

A doutrina pátria é nesse sentido.

Adequada, nesse diapasão, a lição sempre clara de PAULO AFFONSO LEME MACHADO:

"Os direitos, bens e interesses protegidos na L. 7.347/85 dizem respeito, geralmente, a uma pluralidade de pessoas, mas podem beneficiar somente uma pessoa. Os interesses que estão dispersos podem ser coletivos, mas num dado momento podem concentrar-se em uma só pessoa, sem deixarem de ser coletivos.

Tal princípio merece ser assentado para que não se queira arredar da proteção da lei esse tipo de caso. Assim, as instituições que podem ser autoras na ação civil pública não precisam demonstrar que estão defendendo interesse que transcenda uma pessoa. Exemplifiquemos: uma fábrica emite poluentes nocivos ou acima das normas de emissão e os poluentes vão atingir somente um morador; um indivíduo compra um automóvel que traz um defeito de fábrica, defeito este que foi constatado em outros veículos oriundos da mesma empresa. Nesses casos não só a pessoa pode intentar ação privada, como as instituições apontadas no art. 5º podem fazê-lo.

O objeto do interesse difuso "é sempre um bem coletivo, insuscetível de divisão, sendo que a satisfação de um interessado implica necessariamente a satisfação de todos", acentua ADA PELEGRINI GRINOVER, em comunhão com o pensamento de JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA. Nos exemplos mencionados, note-se que o prejuízo ou a potencialidade de dano poderia atingir pessoa indeterminada. Na origem dos males, pesquisa-se a possibilidade de serem atingidos os interesses coletivos, isto é, não se deve buscar só o efeito coletivo, mas sua causa, pois a "lesão de um indica a lesão de toda a coletividade" (Ação Civil Pública, RT, 1987, págs. 11 e 12).

O eminente HUGO NIGRO MAZZILLI, ao discorrer sobre o surgimento dos interesses coletivos, uma modalidade intermediária entre o interesse público e o interesse privado, bem situa a distinção que deve ser feita entre interesses coletivos e interesses difusos:

"... Mesmo dentro dessa categoria intermediária, foi possível ir além, estabelecendo-se uma distinção entre os interesses que atingem uma categoria determinada de pessoas (ou, pelo menos, determinável) e os que atingem um grupo indeterminado de indivíduos (ou de difícil determinação). Assim, os condôminos, os sócios, os empregados que acima foram mencionados, todos eles são determinados ou possíveis de determinar, à vista da certidão imobiliária, dos estatutos, dos registros cabíveis. Interesses há, entretanto, embora comuns a toda uma categoria de pessoas, em que não se pode determinar com precisão quais os indivíduos que se encontram concretamente por ele unidos: é o que ocorre com a situação variável dos moradores de uma região, dos consumidores de um produto, dos turistas que freqüentam periodicamente um lugar de veraneio. Nestes casos, convencionou-se chamar estes últimos interesses de difusos, porque, além de transindividuais, dizem respeito a titulares dispersos na coletividade" (A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, RT, 1987, pág. 09).

E a poluição sonora, pela sua própria natureza, atinge pessoas certas e determinadas, como também pessoas indeterminadas.

Nessa conjuntura, adequada a lição de nossa doutrina, nas palavras do mestre PAULO AFONSO LEITE MACHADO:

"Como se apontou no conceito de ruído, este é caracterizado por atingir pontos de recepção ao acaso. Assim, vê-se que uma das características da poluição sonora é atingir pessoas várias, que, na maioria das vezes, são indeterminadas" (Direito Ambiental Brasileiro, Malheiros Editores, 1996, pág. 497).

E mais: o direito ao repouso e ao sossego não é um simples direito disponível. Demonstração disso é a constatação de que a ação penal por perturbação do sossego, contravenção penal e infração penal de menor potencial ofensivo, sujeita ao tratamento da L. 9.099/95, é pública incondicionada.

Sobre a indisponibilidade do direito à tranqüilidade e ao repouso, oportunas as palavras de VALDIR SZNICK relativamente à objetividade jurídica que o legislador penal pretendeu tutelar ao definir a perturbação do trabalho ou do sossego alheio como contravenção penal:

"Tem-se aqui a repressão à poluição sonora, preocupação muito grande hoje em dia. Protege-se a tranqüilidade, o repouso noturno e a paz. A proteção é à tranqüilidade, que é necessária ao repouso e ao trabalho. Ambos - repouso e trabalho - são o esteio da humanidade...

Mesmo em exercício de atividade legítima não se tem o direito de prejudicar o repouso ou trabalho dos demais. Antigamente os ruídos eram pequenos e raros: o chiado do carro de boi ou o chapinhar dos cavalos que conduziam as carruagens e caleças, o trotar de animais carregando mercadorias. Ouvia-se até o ciciar do vento na copa das árvores, o chilrear dos passarinhos. Com o progresso, tudo isso ficou nas lembranças.

O ruído provoca uma diminuição da potencialidade do indivíduo, dispersando a sua atenção, impedindo a concentração, e chegando a ser incômodo à própria saúde: aos nervos, abalando-os, causando irritabilidade e provocando, em grau mais intenso, perturbações mentais..." (Contravenções Penais, EUD, Livraria e Editora Universitária de Direito Ltda., 1987, págs. 244 e 248).

E o legislador foi sábio e enxergou longe. Atento a todos esses dados, fez com que a ação penal em tais infrações seja pública incondicionada. Não reviu essa situação de publicidade incondicional da ação penal nem mesmo quando da edição da L. 9.099/95, que dispõe sobre os juizados especiais criminais e define as infrações penais de menor potencial ofensivo, abrangendo inclusive as contravenções penais, dentre elas a perturbação do trabalho ou sossego alheios.

A publicidade da ação penal guarda direta relação com a importância e indisponibilidade do bem jurídico protegido. Precisa, nesse sentido, a lição de DAMÁSIO EVANGELISTA DE JESUS:

"Certas objetividades jurídicas são de tal importância para o Estado que ele reserva a si a iniciativa do procedimento policial e da ação penal. São as hipóteses de crimes de ação penal pública...

Conforme o caso, a conduta do sujeito lesa um interesse jurídico de tal importância que a ação penal deve ser iniciada sem a manifestação de vontade de qualquer pessoa... Nestes casos, a titularidade da ação penal pertence ao Estado" (Direito Penal, 1º vol., Saraiva, 1986, pág. 574).

Por fim, não podemos nos esquecer de que o direito de propriedade há de ser exercido dentro de limites determinados, atendida a função social da propriedade. Fala-se, modernamente, noutra função da propriedade: a função ambiental. Dessa função, existente de há muito e só agora expressamente reconhecida e anunciada, decorre para o detentor do direito de propriedade a obrigação de fazer com que seu domínio não se converta em fonte geradora de poluição de nenhuma espécie.

Oportuno, nesse sentido, recente artigo do magistrado ANTONIO SILVEIRA RIBEIRO DOS SANTOS concluindo que "... atualmente o direito de propriedade não é absoluto, devendo assim o proprietário utilizar sua propriedade de forma a atender os fins sociais, não prejudicando terceiros, bem como não produzindo nenhuma ação poluidora que afete o seu vizinho ou a coletividade, uma vez que o direito a um ambiente sadio é previsto constitucionalmente, reconhecendo-se uma nova função da propriedade: a ambiental" (Notícias Forenses, junho, 1997, pág. 09).

O operador do direito não pode se manter alheio à mudança dos tempos e a essa nova realidade, que faz com que sobreleve essa importantíssima função da propriedade, cujo cumprimento pode e deve ser exigido.

Não se pode mais encarar a poluição sonora como simples problema de vizinhança, como se apenas o Código Civil de 1916, concebido no princípio do Século, à sombra de uma sociedade bem menos industrializada e ainda distante das inovações culturais, econômicas e tecnológicas do próximo milênio, pudesse resolver as controvérsias oriundas da poluição sonora e atender às necessidades, anseios e expectativas da sociedade atual.

Pensar assim significa negar validade a outros mecanismos legais idealizados para as contingências desse final de século: a lei definidora de poluição, de poluidor; a lei reguladora da ação civil pública para defesa dos interesses coletivos e difusos; o direito constitucionalmente assegurado ao meio ambiente sadio.

Significa, também, desatender a sociedade contemporânea sob o pálio de uma legislação ainda vigente e aplicável, desde que a questão verse exclusivamente sobre direitos de vizinhança, mas por si só insuficiente quando houver interesses coletivos em jogo.

Para concluir, devo registrar que não vejo, com base na CF, na legislação infraconstitucional e na doutrina, como poderá vingar o entendimento de que a poluição sonora diz respeito a interesses simplesmente individuais, disponíveis e que devem ser tratados nos limites estreitos do direito de vizinhança.

A melhor jurisprudência por certo não fará coro com essa tese.

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