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A
verdadeira justiça é a retidão interior
Aldano Séllos de
Barros
Núncio é um mensageiro. É
aquele que anuncia.
Entre os romanos, nuntius
era alguém encarregado de transmitir a declaração de
vontade de um paterfamilias. Simples instrumento, ele
mesmo não influia na formação do
consentimento, e, por isto, não precisava de ter
capacidade, nem mesmo de ser uma pessoa. Podia até ser um escravo. Mera
“carta falante”, dir-se-ia hoje uma “fita gravada”. (D.2,14,2; 18,1,1,2).
Mas, aqui se trata de um “núncio
dos mestres”. Então, de alguém que é deles
porta-voz, de um professor emissário de seus pares.
Assim se entendendo, a escolha do núncio
caberia ao próprio corpo docente.
Não é assim, no entanto. A
designação do núncio dos mestres é feita pelos
formandos. Há, no caso, uma representação sem mandato,
decorrente de ato de terceiros.
Na verdade se trata de alguém de quem os
concluintes gostariam de ouvir a derradeira palavra professoral.
Estamos, pois, na posição de
mensageiro dos professores, por eleição dos alunos, em aparente
paradoxo, que se deslinda pelas razões do coração.
O paraninfo não é,
necessariamente, escolhido no quadro docente, mas o núncio é
sempre um professor da Faculdade, aquele que os bacharelandos desejam ouvir
ainda uma vez, numa efetivação simbólica da palavra dos
demais.
No caso presente, a turma cedeu a um toque de
nostalgia, lembrando-se de uma voz ouvida quando do ingresso no curso ora
concluído, nas aulas distantes da primeira série.
Tanto mais comovente e gratificante se me
afigura, por isto, minha indicação.
Falando aos novos juristas, devo, em
oração rápida, reavivar o que já trazem em suas
mentes, enfocar os conceitos fundamentais de toda ciência
jurídica, ciência que vai muito além do conhecimento das
palavras da lei e da aplicação mecânica, ainda que
habilidosa, dos códigos.
A despeito do desprezo com que a encaram tantos
malabaristas da técnica jurídica, estejam sempre atentos os
bacharéis para a necessidade de recorrer à Filosofia do Direito e
para o fato de que toda jusciência gira em
torno de dois conceitos basilares, que são o de direto e o de
justiça.
A noção de direito é
correlata à de justiça, à qual está essencialmente
ligada, a tal ponto, que a segunda é indispensável para atingir a
primeira.
Para os romanos
justiça era a vontade constante e perpétua de dar a cada
um o seu. Não uma vontade eventual, mas habitual, duradoura, permanente.
A justiça era, pois, uma qualidade do
espírito, uma virtude. (D. 1,1,10; I.1,1).
De certo modo ela é também o
conjunto de todas as virtudes, a própria perfeição, pois,
aquele que dá a todos o que lhes compete, cumpre todos os deveres para
consigo mesmo, para com o próximo e para com Deus.
Por isso as Escrituras chamam os santos de
justos.
Em sentido estrito, contudo, a justiça
está na vontade, predispondo-a permanentemente a dar a cada um o que é seu.
A verdadeira justiça é a
retidão interior.
Esse velho conceito atravessou os
séculos.
A justiça procura estabelecer a eqüidade,
de modo que cada um receba e possua o que lhe corresponde. Nem mais, nem menos.
Pode-se falar em justiça legal, que regula a conduta
de todos e a dos governantes em relação aos indivíduos; em
justiça distributiva, que leva a comunidade a repartir os bens e
encargos conforme a capacidade e os méritos de cada um; e em
justiça comutativa, que preside as trocas.
No seu conjunto, as três modalidades de
justiça constituem o sustentáculo da vida social.
É do conceito de justiça que se
deduz uma primeira acepção da palavra direito, que significa o
reto, o adequado, o bom e o justo.
Aí se insere a definição
romana: direito é a arte do bom e do justo. (D.
1,1,1).
No entanto, de sua significação
primitiva, a palavra direito passou a significar também a própria
regra jurídica, a norma de agir.
Existe ainda um outro sentido, o de direito de
poder, de poder jurídico e moral, faculdade de agir. É faculdade
ou poder de cada um exigir o seu e de exigir ainda dos demais o respeito ao que
lhe compete.
Nesta última acepção
há três classes de direitos, correspondentes às três
modalidades de justiça. A primeira corresponde à justiça
legal e consiste na faculdade que tem a sociedade de exigir de seus membros,
que cumpram tudo que é necessário a seu
bem-estar; a segunda, dizendo respeito à justiça
comutativa, dá a cada um dos membros da sociedade o poder de exigir dos
demais o que lhe compete; a terceira, correlata à justiça
distributiva, está na faculdade que têm os membros da comunidade
social de exigir da própria sociedade, que sejam eles contemplados na
participação dos bens públicos, conforme suas capacidades
e seus merecimentos.
Isso demonstra a estreita relação
existente entre direito e justiça. (Cathrein,
“Filosofia Del Derecho”).
Com efeito, os dois conceitos fundamentais
devem estar sempre unidos em perfeita harmonia.
Se, contudo, meus caros bacharéis, na
vida prática, alguma vez se depararem em uma situação
discrepante, em que direito e justiça pareçam estar em conflito,
situação em que tenham de optar, não tenham dúvida
e não hesitem em ficar do lado da justiça, para não errar.
Assim agindo, estarão fiéis ao
juramento que acabaram de selar e, ao mesmo tempo, estarão assegurando o
próprio futuro, a realização da palavra inspirada de
Isaías: “Diante de ti caminhará a tua justiça e a
glória do Senhor seguirá a tua retaguarda”. (Is. 58,8).
Novos Bacharéis.
As turmas que passam por nós,
professores, são como as águas de um rio, fluindo constantemente,
passando pelas pilastras de uma ponte, que ficam...
Não pensem as águas que, por
ficarem, as pilastras lhes sejam indiferentes.
Por mais suave que seja o contato, as
águas deixam sempre marcas nas pilastras...
Creiam, meus amigos, que se a pilastra que agora as águas
afagam pudesse falar, diria certamente: Ide, águas amigas, caminhai
confiantes para o oceano, onde vos dispersareis, seguindo os mais variados
caminhos.
Um dia, vaporizadas, havereis de subir a
alturas insondáveis, onde refluireis em chuva benéfica, que
vivifica.
Mas, por maior que seja a
distância ou a altura por que andeis, não vos esqueçais de
que formastes um rio e passastes por esta pétrea e tosca pilastra,
porque ela, em meio aos sinais marcados pelo tempo, conservará
ciosamente o vinco profundo deixado por vossa passagem e guardará,
comovidamente, a lembrança de vosso carinho.
Discurso pronunciado na
colação de grau dos bacharelandos de 1989, da Faculdade Direito
de Campos, no Fórum Nilo Peçanha, no dia 17 de março de
1990, na condição de Núncio dos Professores.
* Advogado, Professor de História e
Decano da Faculdade de Direito de Campos, onde lecionava Direito Romano desde
sua fundação em 1960.
Disponível em: <http://www.fdc.br/artigos/retidao.htm> Acesso em: 10 de Jun. 2006.