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Repressão aos piratas
de MP3.
Em meio às chamas, conceitos e considerações sobre o download de MP3
Dagoberto Luiz Moutinho de Miranda Chaves *
Certeza é acreditar piamente que a realidade é ou será de determinada
maneira, ignorando-se completamente a possibilidade de fato qualquer sobrevir e
alterar aquela construção. Um valor absoluto. Meia certeza não existe e
probabilidade não existe para a certeza. A casa está em chamas.
Diante da dúvida, haverá probabilidades e, por conseguinte, incertezas.
Surge um pensamento positivo, puro, virtuoso - é a esperança. É crer que,
dentre todas as hipóteses, torne-se realidade a melhor delas dentro de um
cenário subjetivo. Uma esperança: As pessoas sobreviverão ao incêndio.
Determinação é decorrência de decisão aristotélica que dê à luz a maior
das metas. Meta até a qual se construa uma estrada de esperança. Determinado
será aquele que conjugar corpo e mente para salvar as pessoas em risco.
Obstinação é a insistência, fruto de uma espécie de determinação blindada
por perseverança. Obstinado é aquele que, sentindo as queimaduras lhe atingirem
a alma e o calor do fogo fazer arder o discernimento e o sentimento de
autopreservação tenta, até lhe esgotarem todos os recursos físicos, salvar o
maior número de vidas do incêndio.
E fé é, já em meio às labaredas, sentir a dor das queimaduras, mas não
sentir o calor do fogo. É, determinado, atravessar a casa em chamas respirando
a certeza de não se queimar, e em se queimando, obstinado, ter por certo não se
queimar novamente. É ter a certeza de conseguir salvar todas as vidas em risco
naquele incêndio e, esgotados os recursos do corpo, ter a esperança de ter
salvo a todos.
Certamente os leitores estão questionando o porquê de termos iniciado um
texto sobre MP3 com uma aparente digressão filosófica. Observem que
determinados conceitos, por mais desconexos que se mostrem, podem trazer, em
sua essência, fator de convergência tal que acabam por se interconectar através
da metafísica de uma constante. Em miúdos: se não houver uma base consistente
de conhecimento sobre elementos ou fatores aparentemente vis, a definição de
algo complexo certamente passará ao largo da realidade.
Tem-se noticiado, copiosamente, as ações do RIAA (Recording Industry
Association of America) no sentido de coibir a transgressão aos direitos
autorais sobre músicas que compõem o repertório de seus afiliados. O RIAA
identifica quem trocou determinadas músicas na Internet a partir de programas peer-to-peer,
como KaZaA Grokster, Imesh, Gnutella, Blubster e outros, e de posse desta
individualização pode, então, notificar ou mesmo mover um processo judicial. O
RIAA possui uma crescente lista de pessoas que estariam trocando MP3 através de
aplicações p2p[1] e, segundo cálculos já feitos, o número de
americanos que trocam arquivos na Internet (60 milhões) demandaria 2.191,78
anos contados do primeiro processo no início de setembro de 2003 para que se
pudesse processar a todos[2].
Neste mesmo momento histórico, fomos brindados com uma lei que, alterando
o artigo 184 do Código Penal pátrio, instituiu penas mais severas a
determinadas espécies de violação à propriedade intelectual.
A lei 10.695 fala em punição com pena de reclusão, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos e multa àquele que tenha obtido lucro direto ou indireto a partir
da exploração de obras alheias, sem a devida autorização. A definição de
"lucro" é absolutamente diversa da definição de "despesa".
Enquanto lucro (de qualquer espécie) representa necessariamente a geração de
receita, tendo por conseqüência agregar capital; despesa representa a saída de
capital. Deixar de ter uma despesa não significa agregar capital ao patrimônio,
pois o patrimônio permaneceu estático.
A obtenção dos dados de supostos piratas é outro fato que não pode
escapar à nossa análise. No Brasil, só há duas formas legais para que se reunam
dados que remetam à identidade física de uma pessoa: se (i) o indivíduo
fornecer seus dados por livre e espontânea vontade para um fim específico; ou
(ii) for determinada por via judicial a quebra de sigilo de seus dados
cadastrais. Eis que diz a Constituição Federal em seu artigo 5o,
incisos X e XII, respectivamente: "são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização
pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"; "é
inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de
dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem
judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de
investigação criminal ou instrução processual penal".
Se obtidos de forma ilícita, tal qual por via de notificação
extrajudicial a um provedor e acesso [compreendido inclusive o pedido de um
delegado de polícia], de nada valerão. O processualista Fernando C. Tourinho
Filho nos ensina que "entre o interesse estatal quanto à repressão e o
respeito à dignidade humana e aquela série mínima de liberdades e garantias
espraiadas no nosso ordenamento jurídico, o legislador constituinte brasileiro
optou pela última solução. A eficácia da persecução criminal precisava
encontrar um limite no respeito das garantias individuais"[4].
Para se atestar remotamente as ações realizadas em âmbito Internet,
deve-se partir de um log de informações eletrônicas. O uso de
informações públicas recolhidas e vinculadas a determinado indivíduo, à
revelia deste e sem a necessária autorização judicial para destituí-lo de parte
de seu direito à intimidade (conforme tratado em nossos textos sobre
privacidade on-line), seria traduzido em provas colhidas de forma ilícita e
importaria na nulidade destes fatos enquanto provas, bem como de todas as
sub-provas e conclusões dali decorrentes. A "inadmissibilidade de provas
colhidas por meios ilícitos" é um dos princípios que regem nosso Direito
Processual Penal, conforme prescreve o inciso LVI do artigo 5o de
nossa Constituição Federal e o artigo 233 do Código de Processo Penal. Este
assunto, "A obtenção de dados pessoais lançados na Internet", será
aprofundado oportunamente na continuação de nossos textos sobre privacidade
on-line.
Para concluirmos nosso trabalho, deixemos consignado nosso entendimento
quanto à aplicabilidade da lei 10.695 àqueles que disponibilizem ou baixem
músicas da Internet sem o intuito de lucro e a necessidade de se utilizarem
meios lícitos para obtenção de dados pessoais de terceiros na Internet.
Notas
[1] Notícia publicada na Wired em 26 de julho de 2003:
http://www.wired.com/news/digiwood/0,1412,59785,00.html
[2] Notícia publicada no The Inquirer em 29 de julho de 2003:
http://www.theinquirer.net/?article=10733
[3] A lei 10.695/03 está disponível para consulta de todos em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.695.htm
[4] Tourinho Filho, Fernando da Costa in Processo Penal, 1o
Volume 24a Edição, ed Saraiva, 2002.
* acadêmico de
Direito da Pontifícia Universidade Católica
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4411>. Acesso em: 19 mai. 2006.