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Nehemias Gueiros Jr *
Três anos após o fechamento manu militari do site Napster de troca
de arquivos musicais, criado pelo jovem californiano Shawn Fanning em 1999 que
revolucionou o conceito de consumo de música e encostou a poderosa indústria
fonográfica na parede, a comunidade internauta P2P (peer-to-peer)
saboreia sua primeira grande vitória. Confirmando uma decisão de primeira
instância, a corte federal de apelações de São Francisco, na Califórnia,
promoveu inédito juízo acerca da nova geração de redes de troca de arquivos,
punindo a indústria fonográfica por tentar “esticar” a interpretação da
legislação autoral para coibir as inovações tecnológicas.
A decisão, promulgada por um colegiado de três juízes da Nona Corte de
Apelações dos Estados Unidos, confirma a sentença emitida em abril de 2003 por
um juiz federal de Los Angeles e representa uma derrota amarga para os grandes
estúdios de cinema e as chamadas majors do disco, as cinco grandes (Big
Five) multinacionais que dominam os negócios da música em todo o mundo.
Especialistas e defensores da revolução da tecnologia têm realmente muito
a comemorar diante desse leading case, tanto quanto nós, juristas,
advogados e estudiosos do Direito Autoral, que sempre professamos nosso
entusiasmo pela novidade e pela evolução dos usos e costumes no segmento do
entretenimento. Ainda haverá rodadas judiciais nessa batalha, que certamente
será conduzida pela indústria fonográfica para a capital americana, Washington,
em busca de reforma na Suprema Corte.
O destaque nesse caso é o fato de que os autores da ação judicial que
culminou com a histórica decisão foram justamente as indústrias da música e do
cinema, que sempre alegaram que as redes de troca de arquivos “estão formando
uma massa pirata de violação de direitos autorais”.
Apesar de inusitada, a decisão da última quinta-feira (19/08) deve
enfrentar controvérsias, na medida em que o Congresso americano vem
considerando aprovar uma moção que proibiria as empresas fabricantes dos softwares
que permitem a troca de arquivos, usada por milhões de pessoas globalmente. Por
outro lado, o acórdão libera apenas as empresas Grokster e Morpheus, que
oferecem o serviço P2P de file-sharing, não entrando em maiores detalhes
com relação aos usuários do serviço e foi justamente essa mesma corte do Nono
Circuito de Apelações que condenou o Napster em 2001 com base em violação de
direitos autorais, pelo fato dos computadores centrais do site rastrearem todas
as músicas disponíveis para download.
Ocorre que atualmente as redes de P2P não possuem mais computadores
centrais e sequer têm a capacidade de monitorar seus usuários, segundo afirmou,
textualmente na decisão, o juiz Sidney R. Thomas. De acordo com o magistrado, a
indústria musical vai se adaptar rotineiramente ao sistema de troca de
arquivos, tal como a indústria do cinema fez com o videocassete há 30 anos, que
estabeleceu o direito dos telespectadores de gravar em casa atrações da grade
de programação das emissoras de TV e desencadeou o mercado do vídeo doméstico (home
vídeo), criando uma nova receita de direitos autorais, muitas vezes até
maior do que das salas de exibição convencionais. A introdução de novas
tecnologias sempre assusta quando chega e coloca em xeque mercados
estabelecidos, bem como cria novos desafios aos sujeitos e titulares de direitos
autorais que até então possuíam sólida e garantida receita com a utilização
econômica dos produtos contendo as suas obras.
Enquanto a indústria musical rosnou com a decisão da semana passada,
afirmando que ela não absolve os negócios de P2P das violações praticadas,
também afirmou não saber ainda como as gravadoras e os estúdios irão recorrer
da decisão. Mas isso deverá mesmo acontecer, pois a RIAA (Recording Industry
Association of América), entidade que congrega todas as gravadoras americanas, vem
agindo agressivamente em tempos recentes contra todos os usuários de troca de
arquivos musicais e de clips, aplicando multas pesadas e fechando empresas
dedicadas ao segmento. Já somam mais de 4.000 os processos movidos pela
entidade contra empresas e indivíduos.
A coisa deve mesmo esquentar no Congresso em Washington, para onde a
indústria do entretenimento está levando a discussão, contando com seu forte
trânsito no Comitê Judiciário do Senado, composto por 10 senadores republicanos
e 9 democratas. Os legisladores estão estudando um anteprojeto denominado The
Inducing Infringement of Copyrights Act (Ato de Indução à Violação de
Direitos Autorais), que tornaria todas as empresas de troca de arquivos
responsáveis por tolerar, fomentar e/ou estimular as pessoas a cometerem
violações autorais. Sob fogo cerrado de advogados e especialistas do segmento
do entretenimento e da informática, o projeto de lei é efetivamente vago e cria
um perigoso precedente: estimular uma avalanche de processos judiciais contra empresas
que desenvolvem softwares incontroversos, como a Apple Computer Inc.,
que fabrica o bem-sucedido reprodutor de música digital iPod, com notável
capacidade de armazenamento de informações.
Se aprovada, a lei simplesmente aprofundará a longa manus da indústria
da diversão sobre como os produtos são fabricados, distribuídos e
comercializados. Segundo Michael Petricone, vice-presidente de políticas
tecnológicas da Associação de Eletroeletrônicos americana, “os três elementos
que já estão radiantes com esse projeto de lei são, respectivamente, a
indústria do entretenimento, os advogados processualistas e países como a Índia
e a China, que vêm tentando conter a influência americana em seus territórios.
Nós concordamos que nenhum negócio deve basear-se em violação de
direitos, mas temos que atacar o comportamento e nunca a tecnologia”. Com a
aprovação da lei, os titulares de direitos autorais poderão processar qualquer
pessoa ou empresa em até US$ 150,000.00 por obra violada, o que representaria
valores devastadores para as empresas e redes de troca de arquivos em todo o
mundo.
A oposição ao projeto de lei vem crescendo de tal sorte, principalmente
por parte das empresas fabricantes de produtos eletroeletrônicos e da opinião
pública participante, que os senadores estão tentando um acordo bilateral, com
a intermediação do escritório americano de direitos autorais (U.S. Register of
Copyrights).
A introdução de novas tecnologias sempre atinge os mercados anteriores,
particularmente os titulares de direitos autorais cujas obras ostentam boa
vendagem através dos conhecidos meios de distribuição. Segundo o juiz Thomas,
que assinou a pioneira decisão, “A História nos mostra que o tempo e as forças
de mercado sempre determinam um equilíbrio de interesses, seja qual for a nova
tecnologia: um piano elétrico, uma copiadora, um gravador de fita magnética, um
videocassete, um computador pessoal, uma máquina de karaokê ou um MP3”.
A atividade de troca de arquivos permite às pessoas procurar e baixar
livremente informações e arquivos entre seus computadores. Bilhões de arquivos
são baixados anualmente e milhões a cada dia. A decisão adotada pela corte da
Califórnia é resultado de um processo coletivo ajuizado em 2001 por sete
estúdios de cinema, as cinco maiores gravadoras multinacionais e as maiores
editoras musicais do mundo.
Segundo os advogados dos autores, as empresas de troca de arquivos não
apenas tinham ciência da ocorrência de violação de direitos autorais como ainda
contribuíram para elas, mas a corte de São Francisco discordou da tese. O juiz
Thomas, relator do processo, citou uma decisão de 1984 da Suprema Corte dos
Estados Unidos (o grau máximo e final de julgamento daquele país, equivalente
ao nosso STF) envolvendo a Sony e seu sistema de reprodução de videocassete Betamax,
que passou a proteger produtos contra processos de violação autoral desde que
esses produtos ostentem desempenho legítimo no mercado.
Segundo Thomas, as empresas Rés nesse processo, Morpheus, StreamCast e
Grokster, estão blindadas contra processos judiciais de violação de copyrights
pois os softwares que produzem têm uso legítimo, como, por exemplo, a
possibilidade de distribuição de obras já caídas em domínio público e sua
utilização por artistas com menos recursos para conseguir uma distribuição mais
barata de suas obras ao público.
Adam Eisgrau, membro da P2P United, um grupo de lobistas em favor das
empresas de troca de arquivos, disse que “esta corte está mandando um sinal
claro para o legislador de que a promulgação de leis de direito autoral não
pode se transformar em um poderoso instrumento paroquial de controle sobre a
cultura, com conseqüências substancialmente negativas para o consumidor”.
Na opinião de especialistas, com a qual o signatário entusiasticamente
concorda, esta decisão pioneira e notável é a prova de que a tecnologia é
inexorável e inevitável. A própria indústria do entretenimento precisa acordar
de seu longo e letárgico sono, para, muito breve, começar a desfrutar, ela
própria, das vantagens da tecnologia de troca de arquivos, que chegou para
ficar. Entre os segmentos diretamente beneficiados pela tecnologia estão as
empresas de vídeo-games e as pequenas gravadoras independentes.
No fundo, as grandes multinacionais do disco e os mais importantes
estúdios de cinema de Hollywood já vêm colocando em prática o seu “plano B”, e
adaptando-se lentamente à nova realidade. O problema é que eles não aceitam a
derrota sem uma boa batalha e isto faz parte do jogo de poder econômico que se
esconde por trás da indústria do entretenimento, hoje a terceira mais lucrativa
do planeta, superando os US$ 100 bilhões anuais.
A Internet vem sendo, em todos os sentidos, um grande “castigo divino”
para os negócios do entretenimento, que durante um século se locupletaram da
exploração econômica das criações intelectuais de terceiros, remunerando pouco
ou nada aos legítimos autores das obras musicais e audiovisuais que encantam as
nossas vidas e abarrotando os seus cofres com a perpetuação de licenças,
contratos e reprises.
Desta vez, em forma similar, mas muito mais profunda do que foram, cada um a seu tempo, o advento da fita magnética, da copiadora reprográfica, do fac-símile, do videocassete, do computador e do CD-gravável, a inovação tecnológica virtual que permite a troca, manipulação, transmissão e baixa de arquivos pela Internet está efetivamente modificando um modelo de negócios empedernido, moribundo e que só resiste em função da pujança econômica de seus atuais jogadores. É uma tendência inevitável e iremos assistir em breve aos seus estertores finais.
* advogado especializado em Direito Autoral, Show Business e CyberLaw,
professor da Fundação Getúlio Vargas-RJ, consultor de Direito Autoral da
revista
Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/29232,1
Acesso em: 01 setembro. 05.