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Fábio André Silva Reis
Resumo
O presente trabalho pretende analisar o Ciberdireito como um elemento que
garanta os direitos individuais e assegure o controle sobre a informação da
nova dinâmica social oriunda da utilização das novas tecnologias
computacionais. O trabalho será dividido em três partes: a primeira, encarando
o surgimento da internet e dos seus valores revolucionários essenciais atrelada
à transferência de poder sobre a informação, poder este, delegado aos
indivíduos; a segunda, mostrando como as grandes organizações, e em especial o
Estado, estão reagindo a esta revolução; e por fim, como o Ciberdireito pode
contribuir para amenizar os conflitos oriundos deste novo contexto social
garantindo o controle e o poder sobre a informação nas mãos dos indivíduos.
Introdução
O recente, e ao mesmo tempo, célere desenvolvimento da internet trouxe milhares
de benefícios à humanidade, benefícios estes que estariam atrelados à uma série
de novos problemas nos mais diversos campos. O escopo deste trabalho
limitar-se-á ao campo jurídico. Ele restringe-se portanto, ao ciberdireito,
também conhecido na literatura como cyberlaw.
Este vínculo do Direito com o aparecimento das novas tecnologias já existe há
algum tempo, sobretudo após a Revolução Industrial. No entanto, somente após a
ampla disseminação dos computadores pessoais, da difusão sem precedentes da
internet e do acesso ao "ciberspace" [Gibson, William] é que tal
relação jurídico-tecno-computacional delimitou e consolidou seu espectro. Ainda
assim, o tema é bastante recente e muito pouco estudado tanto em território
brasileiro quanto em bases geográficas internacionais.
As novas tecnologias que permeiam esta grande revolução contemporânea, permitem
que indivíduos tomem certa parcela do poder antes restrito a grandes
corporações, instituições governamentais, mídia, mercado financeiro, e a um sem
número de intermediários. Uma verdadeira revolução minou os pilares da
sociedade moderna e transferiu este poder para as mãos dos indivíduos. As
pessoas decidem com quem se socializam e a que tipo de informações estão
sujeitas. Possuem maior poder de decisão sobre suas ações online, encontram
novas formas de representação política, enfim, têm acesso a uma série de dados
e informações que anteriormente não eram disponibilizados. O potencial para a
liberdade individual e progresso social parecem imensos dentro desta nova
perspectiva.
É necessário salientar que todas estas transformações não representam apenas a
simples questão de se ter mudado a forma de utilização do computador ou a
maneira pela qual nos relacionamos, mas reflete sobretudo uma discussão sobre a
de transferência de poder e do controle da informação.
É evidente que uma contra-revolução também ocorre neste contexto, e os
protagonistas deste movimento de reconquista são aqueles que perderam este
controle sobre a informação. Governos restringem o acesso e tentam impor sua
autoridade na internet, grandes corporações criam a ilusão de liberdade pessoal
quando na verdade usurpam este controle individual [Boyle, James],
intermediários redefinem suas atividades e reavaliam sua importância dentro da
sociedade.
Portanto, a necessidade do Ciberdireito nesta nova arena de conflitos é
eminente e indiscutível: para preservar a democracia, a verdade, o bem-estar
individual, garantir um equilíbrio entre interesses públicos e pessoais, entre
mercado e governo, entre o controle pessoal e compartilhado, entre indivíduos e
intermediários.
Ele surge como elemento atenuador e supressor de desavenças, elemento este, que
garanta os princípios considerados essenciais ao desenvolvimento humano,
assegure uma convivência ordenada, que possua um enfoque protetor dos valores
anárquicos e revolucionários desta nova dinâmica social, em detrimento da mera
preservação dos valores tradicionais de subordinação do indivíduo, da
intervenção estatal exagerada e da censura desmedida.
Esta interferência do Ciberdireito no ciberespaço faz-se necessária por
diversos fatores. Um deles é a crescente união do real com o virtual dentro do
ciberespaço, em detrimento da visualização deste último como um espaço
distinto, deslocado da realidade. É urgente, portanto, que se produza um meio
capaz de apaziguar o conflito de interesses humanos dentro deste universo, que
cada vez mais torna-se nossa realidade cotidiana. Nossas ações "online"
possuem impactos reais nas vidas dos outros seres humanos [Shapiro, Andrew].
Os votos por uma regulamentação da internet são também fortalecidos pela
existência de uma viabilidade técnica concreta para a implantação destes
instrumentos [Goldsmith, Jack].
O Ciberdireito nasce portanto, do fim desta dicotomia real-virtual, da
possibilidade técnica de controle, e ainda da sociabilidade que requer solução
de conflitos, sociabilidade característica da realidade jurídica "ubi
societas, ibi jus" [Reale, Miguel].
Os sonhos visionários descritos na declaração de Independência do Ciberespaço
[Barlow, John] já não são tão abrangentes quanto se imaginava
A Revolução
O advento das novas tecnologias computacionais causou uma revolução sem
precedentes na história da humanidade, que emana uma série de novos valores.
Esta nova perspectiva do tempo largo, das fibras óticas, da transmissão de
informações em tempo real, do hipertexto, da multidisciplinaridade, está
mudando completamente a face da sociedade tal qual a conhecemos, e inclusive, a
forma de pensar e agir dos indivíduos.
Exprime-se uma lógica do excesso, do raciocínio ágil, da relativização de
conceitos, do autodidatismo, da flexibilidade, da desburocratização e agilidade
dos processos, do fácil acesso a informação, da descentralização do poder e da
modificação dos conceitos mais básicos da Teoria Geral do Estado.
À princípio, abre-se um leque de infinitas escolhas, e ninguém além dos
próprios usuários estão no controle deste fluxo interminável de informação. É
exatamente por esta razão que muitos indivíduos sentem-se perdidos e frustados
perante à diversidade e quantidade de possibilidades. As perspectivas de avanço
social e progresso individual são potencialmente imensos.
Estas transformações causam também uma grande ruptura nas concepções
tradicionais de tempo e espaço, e como toda percepção da realidade que nos
cerca é processada neste universo temporal e espacial conhecido, uma nova forma
de perceber o mundo é instaurada.
As novas tecnologias foram gradativamente transferindo um novo tipo de poder
para as mãos dos indivíduos: o poder de controlar e acessar a informação
rapidamente em qualquer parte do mundo. Nunca um volume tão grande de
informação esteve à disposição das pessoas. A tecnologia impulsiona o
conhecimento, e conhecimento é poder. Poder que foi tomado dos intermediários e
enviado diretamente para os indivíduos. Só resta saber até quando.
Acontece que, onde há poder há resistência [Foucault, Michel], e portanto, as
grandes instituições tradicionais que manipulavam este controle sobre a
informação, incluindo o Estado, tentam readquirir este domínio perdido. Uma
verdadeira contra-revolução começa a mostrar sua face e tenta limitar esta
transferência de poder, aparando as arestas desta revolução antes mesmo do seu
desenvolvimento.
A Resistência
O acesso indiscriminado à informação, a falta de controle nas transações e a
intensa capacidade interativa proporcionados por esta nova mídia são
extremamente perigosos, pois desestruturam e corroem os pilares da sociedade
tradicional. Assim, tanto o Estado, as empresas, quanto os detentores
tradicionais do poder, investem pesadamente na convergência destas mudanças em
seu favor. Para eles não é aconselhável colocar tamanho poder nas mãos dos indivíduos,
e sob argumentos falaciosos de manutenção da ordem e segurança, organização do
caos, facilidade de navegação e proteção contra o crime, evitam a todo a custo
a evolução desta nova concepção revolucionária acerca da propriedade e de
acesso livre a informação.
Ironicamente, esta mesma tecnologia abre um precedente perigoso e pode auxiliar
eficazmente o controle estatal e comercial sobre esta nova forma de mercadoria
que é a informação. A tecnologia se volta contra os indivíduos: favorecem a
vigilância, a centralização da informação, o monopólio da verdade, o controle
total e irrestrito das atividades e condutas em prejuízo do anonimato e da
privacidade. A mão onisciente e onipresente do "Big Brother" [Orwell,
George] proporciona um controle externo bem mais amplificado, eficaz e
flexível, viabilizado pelo uso indevido destas novas tecnologias.
Sob argumentos falaciosos, como o de perseguir o bem comum e lutar pelo
interesse público, limita-se o acesso às informações, prega-se a punição
desmedida dos crimes eletrônicos, a regulamentação e a mera transposições das
leis tradicionais para este novo contexto. Medidas legais buscam viabilizar a
taxação das transações online, o controle sobre os métodos criptográficos
[Bernstein vs. D.J.] a legitimidade do acesso indiscriminado ao e-mail dos
empregados por parte dos donos das corporações, e a perseguição dos supostos
criminosos eletrônicos.
Muitas vezes a retomada do controle mostra-se disfarçado. Em verdade, existem
muitos interesses por trás desta facilidade de acesso à informação, da
preservação dos bons costumes, agilidade na busca de informações e até mesmo da
gratuidade na internet. No entanto, não há forma mais perfeita de subjugação do
que a subjugação que preserva a aparente presença de liberdade. A dominação é
muito mais perversa quando possui instrumentos que convencem de sua
inexistência ou esconde a sua presença. Vivemos uma aparente sensação de
liberdade que esconde a verdadeira face da dominação.
Quanto mais o universo do usuário é limitado à um determinado portal de
informações ou à alguns endereços considerados mais eficientes e confiáveis,
melhor para os detentores destas localizações eletrônicas, os quais lucram com
propaganda e venda de produtos dos mais diversos em uma dinâmica capitalista
extremamente criativa, inovadora, e nem por isto menos cruel. As grandes
instituições são muito mais que detentores de informação, são detentores de
clientes potenciais com perfis definidos de consumo. Tudo isto baseado em um
sistema computacional eficiente que invade a privacidade e ferem de morte os
direitos individuais no que tange à informação pessoal.
O Ciberdireito
O ciberdireito deve estar, sem sombra de dúvidas, preparado para enfrentar esta
nova concepção de sociedade. Ocorre que todas estas transformações atreladas às
novas concepções de tempo e espaço oriundas da rede mundial de computadores,
desconcerta os juristas mais conservadores e incapacita a atuação do direito
que tradicionalmente conhecemos [Katsh, Ethan].
O Direito é, inclusive, uma das instituições que mais tiveram seus alicerces
abalados. Muitos dos seus pressupostos foram corroídos pela ação inovadora e
transformadora desta nova dinâmica. A extrema dificuldade para impor a lei,
sustentar velhos conceitos de territorialidade e jurisdição, além do surgimento
irreversível das mais diversas novidades tecnológicas, as quais possuem
conseqüências sociais, econômicas psicológicas e jurídicas variadas, corrompem
velhos pressupostos que assumem novas feições e requerem novas posturas.
Esta cisão de paradigmas caducos aliada ao despreparo mundial para lidar com as
novas questões jurídicas, proporciona uma grande arena para debates e
esclarecimento. Do resultado deste estudo aprofundado é que depende a tomada de
medidas acertadas. Sem dúvida alguma, a liberdade sem limites e sem garantias
transforma-se em censura. No entanto, a interferência irresponsável e não
comedida dos grandes grupos institucionais tolhem os direitos dos indivíduos e
moldam a internet de acordo com os interesses particulares daqueles baseando-se
em argumentos falaciosos e criminosos.
Cada país, ao seu modo, tenta desenvolver uma série de medidas jurídicas que
regulem a internet. Contudo, o sistema jurídico internacional não está
preparado para enfrentar os novos problemas, no que tange tanto às formas de
imposição da lei quanto às tentativas de controle do ciberespaço. Isto é o que
nos mostra os diversos casos noticiados, o relato dos operadores do direito, e
os estudiosos do assunto.
Existe um campo extremamente amplo para desenvolver novas soluções na tentativa
de transformar, adaptar e ajustar o sistema jurídico para conviver não apenas
com mais um simples ramo do Direito, pelo contrário: o Ciberdireito é o próprio
Direito do futuro, o Direito presente na sociedade da informação. É exatamente
no seio desta sociedade, que se pretende semear grãos na análise crítica da
situação atual, retomando as raízes anárquicas da internet e protegendo os
interesses individuais contra o controle excessivo dos entes externos.
O Ciberdireito deve ser o elemento que garanta esta proteção ao indivíduo,
sobretudo nos seus direitos fundamentais. É através dele que os usuários devem
construir sua couraça de proteção, proporcionando um Direito novo que esteja
consoante com esta nova dinâmica social rápida, ágil e flexível.
Também fazem parte do seu universo de estudo, a maneira como este processo de
conscientização e busca de direitos pode ser desencadeado, qual o papel dos
indivíduos na construção do ciberdireito, como as grandes corporações usurpam
nossas mais brilhantes conquistas, quais as dinâmicas que devem ser
preservadas, como combater os excessos sem destruir os princípios
revolucionários, e analisar os "hackers" como último depósito deste
poder de reação ao intervencionismo estatal e corporativo, e não apenas como
meros criminosos [Levy, Steven].
O Ciberdireito deve ainda, garantir um equilíbrio de forças neste processo de
regulamentação e de imposição das normas jurídicas, levando em conta acima de
tudo, os ideais libertários da revolução da informação, para que eles não sejam
depreciados no decorrer do tempo.
Conclusão
Deve-se derrubar o mito de que a internet é eminentemente democrática e
libertária. A tecnologia não admite este valor automaticamente. É verdade que
as possibilidades abertas são muitas: a flexibilidade, o livre e rápido fluxo
de informações, a universalidade, a interatividade, as novas formas de
representação política, as novas perspectivas da atividade econômica e os novos
conceitos da sociologia, da política e do próprio Direito. No entanto, há um
potencial de mesma envergadura para que esta tecnologia traia os ideais
libertários e desenvolva outras formas de dominação poderosas.
A resistência aos novos conceitos revolucionários é real e desenvolve-se à passos
largos. Os conflitos são inevitáveis e a necessidade de um elemento que garanta
este equilíbrio, que proteja os interesses dos usuários na defesa dos seus
direitos, que conscientize os indivíduos acerca da legitimidade deste poder, é
tarefa do Direito vindouro, vale dizer, do Ciberdireito. De sua adequação e
sensibilidade dependem o desenvolvimento tecnológico adequado, a saúde jurídica
dos usuários e o progresso saudável das grandes e pequenas empresas.
O estudo aprofundado é necessário e o engajamento social na compreensão e
manutenção do poder individual deve sobrepor-se aos interesses prejudiciais,
muitas vezes travestidos, dos grandes conglomerados estatais e corporativos.
Por fim, dada a novidade do assunto, muitos pontos ainda são fonte de discussões
acirradas e polêmicas. Muito ainda está em fase de análise e debate, sobretudo
no meio acadêmico, e portanto, o estudo aqui iniciado não possui a pretensão de
ter caráter absoluto. Será sim, um incentivo a novos estudos e discussões que
certamente terão uma projeção cada vez maior na sociedade e no Direito.
Referências
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www.eff.org/pub/Publications/John_Perry_Barlow/barlow_0296.declaration
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[Foucault, Michel] Foucault, Michel. A História da Sexualidade 1. A vontade do
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[Gibson, William] Gibson, William. Neuromancer. Ace Book: The Berkeley
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[Goldsmith, Jack] Goldsmith, Jack L. "Against Cyberanarchy." The
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[Katsh, Ethan] Katsh, Ethan. "Cibertime, Cyberspace and Cyberlaw."
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[Levy, Steven] Levy, Steven. Hackers, The Heroes of the Computer Revolution.
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[Orwell, George] Orwell, George. 1984. Signet Classic: Published by Penguin
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[Reale, Miguel] Reale, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24a Ed. São
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[Shapiro, Andrew] Shapiro, Andrew L. The Control Revolution: How the Internet
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Foundation Books: Public Affairs: 1999 (30-32).
Disponível em: http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=521&
Acesso em: 30 agosto. 05.