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A ausência de territorialidade do ciberespaço fragiliza a soberania dos Estados*

 

 

Gabriela Nicaretta Esser Machado

 

 

1. Considerações iniciais

 

A globalização, através do desenvolvimento de inúmeras tecnologias, além de revolucionar a economia e influenciar a sociedade, trouxe também consigo problemas no universo jurídico, especialmente no que concerne à regulamentação do ciberespaço que, devido à ausência de fronteiras geográficas tende a criar, constantes conflitos relacionados não só a tipificação de delitos como também à competência e legitimidade dos Estados soberanos para legislarem e julgarem determinados casos.

 

 

2. Da passagem da produção industrial para a informacional criaram-se novas exigências que obrigaram os Estados a compartilhar sua soberania

 

O tratado de Westfalia, de 1648, introduziu uma noção de soberania limitada às fronteiras territoriais. Tal acordo propiciou igualdade jurídica dos Estados, elevando-os ao patamar de únicos atores nas políticas internacionais.

A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, trouxe características da soberania como: unidade, indivisibilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade que foram adotadas por várias Constituições.

O conceito tradicional de soberania liga a existência de um governo que exerce poder sobre uma população em um determinado território sem estar subordinado a outra autoridade.

“... do Estado Clássico surgido do constitucionalismo moderno, após as Revoluções Americana e Francesa, para o Estado plurinacional, que adentrará o século XXI, há um abismo profundo. [...] em outras palavras, o Estado Moderno está, em sua formulação clássica de soberania absoluta, falido, devendo ceder campo a um Estado diferente no futuro. [...] n a União Européia, o Direito comunitário prevalece sobre o Direito local e os poderes comunitários (Tribunal de Luxemburgo, Parlamento Europeu) têm mais força que os poderes locais. Embora no exercício da soberania, as nações aderiram a tal espaço plurinacional, mas, ao fazê-lo, abriram mão de sua soberania ampla para submeterem-se a regras e comandos normativos da comunidade. Perderam, de rigor, sua soberania para manter uma autonomia maior do que nas Federações clássicas, criando uma autêntica Federação de países. ... nada obstante as dificuldades, é o primeiro passo para a universalização do Estado, que deve ser "Mínimo e Universal". [...] a universalização do Estado, em nível de poderes decisórios, seria compatível com a autonomia dos Estados locais, aceitando-se a Federação Universal de países e eliminando-se a Federação de cada país, que cria um poder intermediário que, muitas vezes, se torna pesado e inútil.”(MATINS, Ives Gandra. O Estado do Futuro. São Paulo: Pioneira,1998. p.13-28.)

Com o fenômeno da globalização, aliado a criação e desenvolvimento da informática e de outras tecnologias de comunicação, os limites da soberania deixaram de serem definidos por fronteiras geográficas.

O trabalho e o capital, que antes constituíam o cerne da sociedade industrial ou moderna, foram substituídos por uma nova fonte de riqueza: o conhecimento. Hoje a sociedade, aliada à tecnologia, não possui sua preocupação em apenas produzir, como também em criar novos bens e riquezas.

            A utilização da internet favoreceu o surgimento e o desenvolvimento de novas técnicas e instrumentos, pois possibilitou a multiplicação e transmissão de uma enorme quantidade de informação.

            Os agentes mais dinâmicos da globalização são as empresas transnacionais. Tal fato permitiu que o dinheiro e o consumo se tornassem os reguladores da vida dos indivíduos. O poder não mais se apóia em ideologia ou qualquer outro tipo de valor, ele está quase que exclusivamente voltado a maior característica da sociedade contemporânea: o consumo. O poder econômico influi, a cada dia, com maior força sobre os Estados sem se preocupar com as características essenciais destes como: povo, território e soberania. 

 A globalização tornou os países mais interdependentes, ou seja, da passagem da produção industrial para a informacional criaram-se novas exigências para a organização estatal obrigando os Estados a compartilharem sua soberania. Sob pena de sucumbirem, os Estados, além de formarem blocos econômicos e firmarem tratados entre si, se articulam com os demais agentes do poder como as multinacionais e o capital financeiro. Juntos os Estados possuem maior poder econômico, político e militar, porém, abrem mão de parte de sua soberania ao se subordinarem à ordem jurídica internacional.

Fazer parte da rede global de economia é a única forma de prosperar. Por isso, é necessário que os Estados permitam que sua população possua livre acesso a rede de comunicação atual, pois é através desta que circulam o dinheiro, os serviços e o capital. Além disso, para o Estado atuar no cenário global, é necessário a legitimação por parte da sociedade a fim de evitar que o mesmo se torne um escritório de interesses particulares.

Há algumas décadas, o Estado perdia sua soberania quando tinha seu território invadido por outro Estado. Hoje, é preciso mais do que força militar, é preciso força econômica. É pela economia que se controla um país, e é através dos meios de comunicação que os valores culturais e de uma população podem ser modificados.

As formas de exercer a soberania mudam conforme as formas de organização do poder, e hoje quem tem o poder é quem tem poder econômico.

 

 

3. A internet trouxe novos conceitos de tempo e espaço desafiando a ciência do Direito.

 

Tanto o tempo quanto o espaço tornaram-se maleáveis em um mundo virtual. A ação da hegemonia econômica global sobre a sociedade fez com que esta se tornasse extremamente complexa e descentrada implicando em uma desconexão temática, temporal e espacial da ciência do Direito para com a realidade, ou seja, a globalização provocou uma espécie de anomia lingüística jurídica.

“Até o início deste século, as pessoas acreditavam no tempo absoluto, ou seja, que cada acontecimento podia ser rotulado por um número único e diferenciado chamado tempo, e que todos os bons relógios concordariam quanto ao intervalo de tempo que separa dois acontecimentos. Mas a descoberta de que a velocidade da luz aparentava ser a mesma para todo observador, independentemente de como estivesse se deslocando, levou a teoria da relatividade e, com ela tivemos que abandonar idéia de que houvesse um tempo único e absoluto... Assim, o tempo passou a ser um conceito mais pessoal, relativo ao observador que o media.”(HAWKING, Stephen. Breve História do Tempo Ilustrado, ed. Albert Einstein ltda, 1997, p. 182).

 

 

4. O ambiente virtual representa o ápice da liberdade humana tornando difícil seu monitoramento.

 

A palavra “cyberspace” foi usada, pela primeira vez, pelo escritor norte-americano Willian Gibson, em sua obra “Neuromancer”, de 1982. Tal termo definia uma rede de computadores futurista, utilizada conectando-se a mente diretamente a ela.

Enquanto se movem no ciberespaço, as pessoas não têm conhecimento da existência de fronteiras. Embora cada internauta tenha seu próprio endereço, nem sempre é possível ao destinatário saber a localização física do remetente.

A internet revolucionou a maneira como as pessoas interagem. Nenhum outro meio consegue superar seu potencial de comunicação.

Em 1997, eram 60 milhões de usuários em 160 países, ao final de 2002, segundo a Organização das Nações Unidas, eram mais de 500 milhões de internautas.

O ciberespaço fez surgir uma nova forma de sociabilidade global, pois representa um novo espaço público democrático e livre. Mesmo assim, não há que se falar em um novo tipo de sociedade ou em uma nova era, pois o que mudou foram os instrumentos e técnicas, e não o objetivo do capitalismo em obter lucro e acumular riquezas.

A internet, ao contrário do nosso ordenamento, não possui a estrutura hierárquica de uma pirâmide, além disso, ela cresce horizontalmente sem um comando central. Não existe uma autoridade máxima que a controle, nada a governa. Sendo assim, ela pode ser encarada como sendo o ápice da liberdade humana.

A quantidade de informações que cruzam as fronteiras geográficas pelo ambiente virtual é grande demais em relação aos recursos existentes a disposição das autoridades para permitir um tipo razoável de controle. A internet é um sistema global, sendo assim, tende a ampliar a jurisdição  política e jurídica , tornando, desta forma, a instituição de formas, leis locais uma alternativa inviável para os países que pretendem participar do comércio mundial.

 “Desde o começo dos tempos, o poder tem se baseado na informação. A difusão de informações outrora estritamente confidenciais para um número imenso de pessoas que antes não tinham acesso às mesmas, com freqüência indispõe as estruturas de poder existentes. Da mesma forma que a difusão de conhecimentos médicos rudimentares tirou o poder do feiticeiro tribal, a difusão de informação sobre estilos de vida alternativos de outros países ameaça a validade de algumas doutrinas políticas oficiais, a credibilidade d liderança e a estabilidade do regime”.(WRISTON, Walter B. O Crepúsculo da Soberania: como a revolução da informação está transformando nosso mundo. São Paulo: Makron Books,1994, p. 03).

 

 

5. A globalização traz novas experiências jurídicas que desafiam a soberania dos Estados.

 

            O Estado, submetido à realidade das tecnologias de tempo instantâneo e sob pena de perder sua função devido à mudança de produção na base da sociedade, transformou-se em um Estado Rede ou Estado Virtual. Tal Estado é uma nova forma de organização de governos e países exportadores de capital e tecnologia onde as operações são realizadas através de redes de comunicações instantâneas.

            Os negócios do comércio eletrônico realizados no ambiente virtual fazem surgir novas experiências jurídicas aumentando a preocupação com a validade e a eficácia jurídica dos documentos eletrônicos.

            Da mesma forma que a economia global, o crime organizado e vários outros tipos de delitos têm se utilizado das conexões em rede desafiando a soberania e a capacidade de intervenção reguladora dos Estados pois durante o inter criminis pode haver vários intermediários, cada um em países diferentes.

            Múltiplos delitos ocorridos na internet podem ser processados na justiça brasileira, porém, a inexistência de regulamentação específica da matéria permite que um delito possa ser julgado em toda ou qualquer parte do mundo, fato que exigiu um tratado internacional, da mesma forma que evita a omissão dos países ou pode gerar confusão caso ocorra disputa entre os países para julgarem o caso.  

            A globalização também gerou problemas na competência tributária internacional ocasionando o fenômeno da bitributação que pode ser definida quando vários titulares de soberania tributária submetem o mesmo contribuinte a um imposto de mesma espécie. As diferentes jurisdições fiscais no âmbito internacional geram lacunas jurídicas relativas à tributação influindo diretamente no conceito clássico de soberania.

            Outras questões que influem diretamente no conceito de soberania são os aspectos relacionados aos direitos humanos e ao direito ambiental. A medida em que os Estados se relacionam e firmam pacto entre si vêm-se construindo a idéia de que a comunidade internacional deve intervir na defesa dos direitos humanos e do meio ambiente em qualquer lugar do mundo, afinal, a poluição e qualquer tipo de interferência no ecossistema ultrapassa os limites territoriais prejudicando todo o planeta.

 

 

6. A territorialidade do poder judiciário afeta a sua utilidade como sistema para a pacificação de conflitos

 

            A aliança da criminalidade com a tecnologia gerou o problema da transnacionalidade do crime, ou seja, a possibilidade do agente cometer o delito em um Estado, fazendo-o consumar-se ou também prejudicando outro Estado.

            As diferenças entre as legislações dos diferentes países e a dificuldade de investigação demonstram a necessidade de uma cooperação entre os países, haja vista que os mesmos possuem, quando isolados, suas forças reduzidas, pois esbarram nos princípios de territorialidade e soberania.

            Um caso decidido recentemente nos Estados Unidos ilustra bem essa questão. Técnicos em computação na Estônia foram contratados por uma companhia holandesa para desenvolver um software que proporcionasse a troca de arquivos pela internet. O software é disponibilizado gratuitamente em um website, e a maioria de seus milhões de usuários encontra-se nos Estados Unidos. A tecnologia foi vendida a uma sociedade incorporada na ilha-país de Vanuatu, mas o principal lugar de negócios dessa empresa é a Austrália. Diante de uma demanda por violação de direitos autorais, em qual foro deve ser ajuizada a ação? Qual lei deverá ser aplicada?

 

 

 6. O Direito precisa se aprimorar : os Estados devem se unir para combater a criminalidade virtual e o jurista deve preparar- se frente às novas exigências.

 

            A Grande Rede fez surgir um fenômeno completamente diferente que precisa ser submetido a um regime jurídico minimamente satisfatório. Ela porém, não pode ser governada isoladamente, mas estar simultaneamente submetida às leis de todos os países soberanos que a integram.

Nenhum Estado ou organização detém legitimidade para exercer um controle absoluto no ciberespaço. Podem os Estados prescrever certas regras de conduta referentes ao ciberespaço desde que estas regras sejam compatíveis com a noção de soberania e com outros princípios do direito internacional. Mesmo assim, Estados e organizações devem superar diferenças políticas e culturais para a criação de procedimentos de regulamentação da internet que alcancem reconhecimento e aceitação unânime.

            Em 1997 foi realizada uma declaração pelos países membros do G-8 os quais concluíram que para combater a criminalidade cibernética é necessário uma cooperação internacional. Além disso, Os Estados Unidos propôs a criação de uma polícia do ciberespaço comum.

            Diante das inúmeras transformações que a globalização e o avanço da tecnologia vem causando no mundo jurídico surge a necessidade da formação de profissionais de direito em questões que envolvam a informática, bem como a elaboração de leis e de técnicas eficazes no combate à criminalidade cibernética, pois os danos causados através do ambiente virtual podem atingir proporções muito maiores que aqueles efetuados no mundo real.

            “Se o jurista se recusar a aceitar o computador que formula um novo modo de pensar, o mundo, que certamente não dispensará a máquina, dispensará o jurista. Será o fim Estado de Direito e a democracia se transformará facilmente em tecnocracia.”(apud DAOUN e BLUM, 2000, p. 129).

 

 

7. Considerações finais

 

            A interdependência econômica tem contribuído para a redefinição do conceito de soberania, além disso, a internet tem gerado efeitos políticos e sociais que envolvem a ordem pública surgindo a necessidade de uma regulamentação abrangente, logo, terá que ascender as fronteiras dos países.

            Para conter os delitos no ciberespaço é necessário uma ciberjustiça com extraterritorialidade internacional ou uma jurisdição internacional. Para tanto, é indispensável que as nações se unam e revejam seus conceitos de soberania, mesmo que abrindo mão de parte desta, a fim de estabelecerem regras internacionais e a efetivação de mecanismos  eficazes via tratado ou convenção.

 

* Artigo apresentado na disciplina de Informática Jurídica semestre 2005.1 ministrada pelo professor Dr. Aires José Rover.