Pedro Antonio Dourado de Rezende*
A inclusão social que o
software livre promove diretamente é sui generis, antípoda daquela que
vem logo à mente quando se fala em inclusão digital. Para a inserção dos
analfabetos digitais no mercado de trabalho, o software livre promete
contribuir apenas indiretamente, pela generosidade e facilidade nos termos de
licenciamento.
A inclusão social que o software livre diretamente promove é outra, em certo sentido oposta: a inserção da categoria dos mais digitalmente letrados nas relações de poder. Não estamos falando da inserção de programadores no mercado que deles demanda o trabalho como mercadoria valiosa.
Numa tal relação capitalista, o mercado captura e domina desta categoria o potencial para deter e operar seus próprios meios de produção, em troca de salários, opções de remuneração ou crédito, e outras apólices contra risco. Numa tal relação, a categoria dos programadores se põe apenas como outra trabalhista.
Mas no regime negocial e modelo de produção do software livre, uma dada relação semiológica predomina sobre as relações econômicas, em busca de melhores equilíbrios entre controles, riscos e poderes na esfera social. Esta predominância se estabelece no plano jurídico, amparada na jurisprudência atual do Direito Autoral e no fato de que a produção, neste caso, é simbólica. Programadores produzem linhas de código, cujo valor econômico deriva do seu valor semiológico, que por sua vez deriva do contexto que reveste esse código de funcionalidades, contexto que em última instância redunda em mais código.
Na forma manipulável tanto por programadores como por máquinas, chamada código-fonte, tal produto se identifica com seus próprios meios de produção. O regime negocial e modelo de produção do software livre refletem esta identidade na relação semiológica que trata o código-fonte antes como linguagem do que como segredo de negócio, enquanto seu oposto constitui o paradigma do regime e modelo proprietários, hoje prevalentes. Com a desfetichização proposta pelo software livre, o paradigma biológico se apresenta como instrumento adequado de análise do que se descortina, talvez mais eficaz que o paradigma monetarista, hoje predominante.
Para sua auto-reprodução, ambos paradigmas necessitam de massa crítica, de mecanismos de proteção jurídica às relações de poder que requerem ou estabelecem, ou de ambos. No caso do paradigma livre, proteção contra a tentação do atalho fetichizante com o qual o paradigma proprietário promete maior retorno imediato ao investimento. Por um lado, o efeito rede no mercado de software reforça a metáfora software-linguagem, enquanto por outro, empurra-o no rumo do monopolismo, com os custos sociais dos inerentes conflitos de interesse já visíveis, como consequência a longo prazo e em larga escala do maior retorno imediato do software-mercadoria.
O confronto entre esses
dois paradigmas seria apenas um processo de seleção natural para distintas
estratégias de equilíbrio entre competição e cooperação produtivas, perante as
cambiantes necessidades e anseios de um ser social que evolui virtualizando-se,
não fosse a sua dimensão política. Quando o conflito é examinado sob essa
ótica, duas correntes do movimento do software livre se distinguem, pela
importância que dão -- ou não -- à necessidade de proteção jurídica ao meio de
produção no modelo livre, contra a "tentação fetichizante".
A corrente que dá
importância a esta necessidade, representada pela Free Software Foundation
(FSF), institui o conceito de copyleft como baliza negocial a separar os dois
paradigmas. Já a corrente que não lhe dá toda esta importância,
representada pelo Open Source Iniciative, institui a metáfora
software-linguagem como tal baliza. Para analisarmos o quadro que se
descortina, devemos neutralizar a desinformação que é arma no conflito entre os
dois paradigmas, comumente chamada de FUD (sigla para Fear, Uncertainty and
Doubt, que se paronimiza com fudge, borrão) procurando compreender o
que seja o conceito de copyleft.
O mais importante feito
da FSF pode ter sido o de instituir a GPL (General Public Licence) como modelo
de contrato para licenciamento de software livre, que epitomiza o conceito de
copyleft. Nosso primeiro desafio é o de entender porque o FUD é tão eficaz
contra esse conceito. Porque a GPL tanto irrita, atemoriza e desorienta quem
tende a resistir a mudanças evolutivas que desafiam dogmas fundamentalistas
predominantes no mercado de software, vitrine do capitalismo pós-industrial.
A evolução deste mercado
é inexorável e se encontra numa importante encruzilhada, com as bandeiras da PI
(propriedade intelectual) "forte" e do copyleft apontando direções
opostas para metas alargadamente às mesmas. A "PI forte" é um
movimento legislativo-jurídico de radicalização do regime patentário,
estendendo a patenteabilidade de invenções a idéias expressáveis em software, e
do regime autoral, afrouxando critérios de admissibilidade de provas de
violação. Com o FUD a serviço da primeira, empenhado em borrar a segunda com
desinformação, freqüentemente seus atores e vítimas se confundem, o que
dificulta valorar e juridicar o papel social das TICs (Tecnologias da
Informação e Comunicação). A PI forte protege mais e antes o
intermediador monopolista do que o autor ou o inventor.
Em breves palavras, o
copyleft é, na linguagem hacker, um hacking do copyright visando corrigir um
"bug" no seu regime, que faz distanciar as metas formais dos efeitos
reais. Copyright é um modelo de lei de direito autoral, estabelecido pela
primeira lei do gênero, sancionada na Inglaterra em 1710. Nas jurisdições
uniformizadas por tratado internacional de Berna, de 1988, do qual o Brasil é
signatário, estas leis geram, para o autor, a liberdade de dispor sobre o
usufruto e disponibilidade da sua obra, além de outros direitos que vigem na
ausência de contrato particular para este fim, implicando em obrigações
correspondentes para o usufruinte.
A idéia do copyleft é a
de produzir-se, através de contratos de adesão, para jurisdições que garantam
tal liberdade ao autor, algo como uma imagem especular das obrigações e
direitos "default" do copyright, refletida sobre o eixo que os
vincula entre contratantes, a partir daquilo que o copyright estabelece para
casos em que um tal contrato particular inexista. O motivo? A alegada meta das
leis de direito autoral, cada vez mais distante dos seus efeitos.
Quanto mais essas leis
se radicalizam, mais estimulam o negócio monopolizador da intermediação desse
usufruto, e menos os seus benefícios sociais diretos ou a produção intelectual per
se. Um modelo para contratos de adesão que busca corrigir falhas
sociais no direito autoral padrão, sem quebrá-lo na tentativa, modelo do qual
resultam as quatro liberdades como eixo, e os treze artigos como corpo da GPL.
Essas quatro liberdades
foram (e são freqüentemente) confundidas com o conceito. Mas não formam o
conceito -- são antes suas metas. O conceito de software livre está expresso na
licença, que precisa ter dentes --a essência do copyleft -- para se atingir
tais metas. Outra feita, esses dentes nada tem a ver com obrigações ou
interdições de gratuidades ou cobranças -- exceto pelo direito de uso --, no
mercado onde mordem. Esses dentes apenas invertem a natureza da relação
jurídica que vincula, de um lado, um empreendimento interessado em suprir uma
demanda, e de outro, sua mão de obra básica (programador ou outro
empreendimento).
Para se entender esta
inversão e conseqüências, há que se começar observando este vínculo no modelo
hoje prevalente. Via de regra, este vínculo no modelo proprietário é formado
por uma relação trabalhista na qual o programador, em troca de pagamentos e
promessas de ganho pelo seu labor (produzir código fonte), cede os direitos de
autor e se compromete com o sigilo do resultado (cláusulas NDA). A partir desta
relação básica, o empreendimento põe em marcha o seu processo produtivo.
Se o processo é
industrial, o que constitui o grosso do mercado proprietário, programas em
código fonte são especificados e agregados para constituir um software. O
software é compilado para um formato que seja executável nos sistemas de
destino, formando builds (versões). Aos builds se adiciona uma licença de uso
(EULA), para constituírem a matriz de um "produto". Nas EULAs, o
empreendimento é identificado como "autor do produto", o software
enquanto espécimen (uma cópia de um build) é o objeto "as is" (sem
garantias), e o software enquanto espécie (o código fonte que produz o build) é
propriedade a ser protegida como segredo industrial e/ou negocial, à revelia de
qualquer direito consumidor sobre o "produto licenciado". As EULAs
podem se agregar pacotes de integração e de fornecimento de suporte (aditivos
contratuais geralmente de adesão), num regime cartelizado por credenciamentos
controlados pelo empreendedor.
Sob o regime copyleft,
muita coisa muda com a inversão do controle nesta relação jurídica básica,
sobre a qual podem se fundar práticas negociais até nunca dantes navegadas. Mas
jamais para lançar o objeto das licenças em domínio público, e seus usuários ao
deus-dará, aos monstros que habitam o precipício no fim dos mares, como quer o
FUD. Sob este regime o programador (ou empreendimento) retém, como autor, o
direito de dispor sobre o usufruto de sua obra (programa), dispondo-a sob
contrato de adesão que estabelece não só a liberdade irrestrita de uso do
programa enquanto espécimen (exemplar executável), mas também as condições de
usufruto do programa enquanto espécie (código-fonte), ou seja, também para
empreendimentos de software que o incluam.
Conforme o grau de
liberdade que tais condições geram para o licenciado, pode-se distinguir, como
faz a Free Software Foundation, dentre tais licenças, as que se enquadram no
regime copyleft das que são apenas open source. Ou pode-se juntá-las numa
categoria que atrai o nome de "modelo livre", já que, com qualquer
delas, o programador exerce suas liberdades de autor, controlando a forma como
empreendimentos poderão dispor do seu trabalho intelectual, em troca da
renúncia à necessidade de pagamento direto e antecipado ao retorno do seu
labor, mas sem precluir tais ganhos. A tais licenças podem ser agregados
pacotes de integração e de fornecimento de suporte, num regime de diversidade
transparente, controlado pela livre competitividade premiada pela cooperação
[3]. Em particular à GPL, que explicita o alcance deste direito de agregação
até à esfera comercial, alcance que o FUD tenta borrar antonimizando software
livre a "software comercial".
Comparando
empreendimentos sob o regime copyleft e sob o modelo proprietário, pode-se
concluir que as diferenças se restringem às conseqüências da inversão no
controle da relação jurídica entre empreendimentos e sua base de mão de obra. E
estas diferenças podem ser entendidas como contrapesos aos poderes econômico e
semiológico do empreeendedor, potencial ou real, balanceados pela autonomia
daqueles que realmente programam, quando decidem usar sinergisticamente o poder
do conhecimento que detêm, em precedência à lógica econômica racional do maior
retorno econômico no menor tempo.
Pelo ângulo econômico do
processo produtivo completo, a diferença fundamental estará nas métricas de
eficiência. No modelo livre as métricas de longo prazo terão como referencial o
usuário, e no modelo proprietário, o empreendedor. No primeiro caso, quanto
mais barato o valor médio dos produtos e serviços, de qualidade e função
equivalentes, melhor. No segundo, quanto mais caro, melhor. Quanto a isso, é
salutar não nos iludirmos. Um modelo se guia por critérios sociais, enquanto
outro, por critérios capitalistas de eficiência sob as distorções induzidas
pelo estágio de monopolismo ou cartelização alcançado pelo correspondente
segmento do mercado. O exemplo da privatização de serviços públicos como
eletricidade e telefonia nos mostra como esta lógica funciona na prática.
O modelo livre oferece
ganho social através do impedimento prático à monopolização e cartelização na
esfera dos empreendimentos, naturalmente abusivas, já que o licenciamento do
software enquanto espécie, é livre. E, quando menos, ainda o será livre -- ou
mais livre -- sob a cláusula essencial do copyleft (relicenciamento compatível
com a licença original), talhada para preservar esta mesma liberdade. O modelo
livre oferece mais equilíbrio na distribuição de riscos e barreiras entre os
agentes da aventura virtualizante: programadores, empreendedores e usuários, em
troca da renúncia à possibilidade de esquemas negociam socialmente abusivos.
Aos usuários, o modelo
livre oferece a oportunidade de resgate das liberdades civis que vão se
erodindo nessa aventura, principalmente direitos de conhecimento. Ou, como quer
o filósofo Jaques Derrida, direitos de defesa da inteligência, atacada pelo
modus negociandi do modelo proprietário através da supressão ao direito
fiduciário desse saber como softwares intermedeiam a comunicação da
personalidade civil do usuário da informática, num mundo onde os valores estão
cada vez mais virtualmente representados. Ou, como quer o sociólogo Lucien
Sfez, direitos de defesa contra a violência simbólica, aquela que leva a
comunidade de usuários da informática aa entrar em um sistema de crenças
(fundamentalismo de mercado) sem que seus membros percebam.
Não se trata de se
querer impor um conhecimento inalcançável na prática, como se costuma borrar
contra a filosofia do software livre e do open source, mas de se resgatar os
direitos de acesso e de escolha dos intermediadores, face aos graves riscos de
erosão de outros direitos no seu impedimento. O modelo livre oferece tudo isso
como contrapeso e alternativa aos crescentes abusos de um regime de PI em rota
de insanidade, borrados ao ponto de serem tidos por simples danos colaterais de
um processo inevitável, a PI "forte". Enquanto o modelo proprietário
oferece o que hoje prevalece por aí, já visível sem ou com as lentes
obnubilantes do FUD.
*Professor do Departamento de
Ciência da Computação - Universidade de Brasília
Em 20 de Outubro de 2004
VII Semana de Mobilização Social,
Universidade Católica de Salvador
I Fórum Goiano de Software Livre,
Goiânia, GO
Disponível em: http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/segdadtop.htm