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Software Livre no Brasil: vamos nos tornar desenvolvedores de tecnologia?

 

 

Gustavo Noronha Silva

 

 

O Software Livre, já estamos carecas de saber e cansados de ouvir nas palestras, possibilita ao país sair da condição de mero usuário de tecnologia e passar a ser produtor. "País" fica muito amplo, falemos de "pessoa". O Software Livre me possibilita passar de mero usuário a produtor de tecnologia. Mas será que realmente compreendemos o que está envolvido e o que precisamos fazer para chegar lá?

 

Muita gente já está de saco cheio de ler meus emails reclamando de projetos que teoricamente seriam projetos de software livre, mas que muitas vezes têm o processo de desenvolvimento fechado -- um pequeno grupo trabalha fisicamente próximo, os fontes não estão disponíveis em CVS ou tarball o tempo todo, as listas de discussão são fechadas ou não divulgadas, não têm arquivos públicos, entre outras coisas.

 

Minha crítica a respeito desses projetos normalmente tem relação com a falta de interação com os projetos originais em que se baseiam.

 

Um exemplo prático disso é um projeto divulgado recentemente pela UFPR. A notícia divulgada pela Gazeta do Povo[0], com a chamada "Pesquisadores criam sistema 'multi-head'", traz o depoimento de um dos pesquisadores que afirma: "É um sistema inédito que vai facilitar a democratização do acesso à tecnologia.".

 

Quando li a notícia, meses atrás, fiquei super empolgado e logo fui correndo olhar a página. O problema é que, até hoje, não consegui descobrir o que há de inédito ou de tecnologia criada por brasileiros. A página[1] do projeto traz uma documentação bem legal sobre como montar o sistema multi-head. O hardware você encontra em qualquer loja, o kernel é o Linux, o patch que torna possível acessar o sistema usando vários dispositivos de entrada saída diferentes foi desenvolvido por uma pessoa da Letônia[2], baseado no trabalho do Console Linux Project[3]. Não consegui encontrar menção aos pesquisadores brasileiros nos Changelogs do derivado[4] nem na lista de commits do original[5]. Para efeito de comparação, o letão que criou o patch derivado, Aivils Stoss, é um dos grandes contribuidores do projeto original.

 

Onde foi que nos tornamos desenvolvedores de tecnologia ou a incorporamos de verdade nesse caso? Onde está a "criação" dos pesquisadores brasileiros e o ineditismo da solução? Sim, porque seguir howtos, aplicar patches no kernel, ligar cabos e organizar mesas não é o que eu chamo de inovação tecnológica. Isso não significa que o trabalho dos paranaenses tenha sido ruim... certamente um howto montando os pedaços separados que existem, em português, é uma contribuição importante. O know-how internalizado e divulgado por eles já é um grande mérito. Tecnologicamente, no entanto, não saímos do lado dos usuários nesse caso também.

 

Assim como os pesquisadores da UFPR, os criadores das distribuições brasileiras que se baseiam em outras de origem internacional[6] também acabam fazendo isso. Ao invés de se incorporarem no processo de desenvolvimento das tecnologias, eles pegam os "produtos" prontos e os customizam, gerando um produto customizado, com um iconezinho diferente que some na primeira atualização, porque nem sequer se deram ao trabalho de ler o guia de administração do KDE ou do GNOME para saber como fazer customizações do jeito certo.

 

Voltando ao exemplo das "distribuições" brasileiras (porque está na moda atualmente criá-las), uma coisa que me deixa feliz é que boa parte delas é baseada no Debian. Muitas delas usam GNOME ou KDE e muitas vezes fizeram melhorias e adaptações interessantes. Sendo desenvolvedor Debian ativo, participando das listas e acompanhando os relatos de erros (em especial os relacionados ao GNOME), nunca vi um patch de nenhum desses projetos. Pior: nunca vi um relato de erro sequer. Pode até ser que exista um ou outro vagando por aí, se alguém achar me mande o link. O ideal, no entanto, seria que essas contribuições fossem expressivas.

 

Alguns argumentarão que estou tentando puxar a sardinha pra meu lado, porque sou do Debian. O fato é que o buraco é mais embaixo: isso tem a ver com nossa cultura de usuários de tecnologia. Sempre vejo notícias muito interessantes de brasileiros montando clusters openmosix, redes com boot remoto e outras configurações complicadas, como a que citei anteriormente. A minha dúvida é sempre onde estão os patches que eles geraram para os projetos que usaram. Eles realmente incorporaram a tecnologia e tornaram-se desenvolvedores ou simplesmente dominaram seu uso?

 

O Software Livre, com seu dinamismo, pode se tornar uma ferramenta poderosa para destruir a inércia e mudar essa realidade, mas isso depende de como nós encaramos a oportunidade que se apresenta. Depende de decidirmos se vamos arregaçar as mangas para escrever e compartilhar os patches ou se continuaremos nos vangloriando de saber aplicar os que são disponibilizados.

 

[0] http://tudoparana.globo.com/gazetadopovo/informatica/conteudo.phtml?id=351530

 

[1] http://www.c3sl.ufpr.br/multiterminal/

 

[2] http://www.ltn.lv/~aivils/

 

[3] http://linuxconsole.sourceforge.net/

 

[4] http://www.ltn.lv/~aivils/eng-chglog.html

 

[5] http://sourceforge.net/mailarchive/forum.php?forum=linuxconsole-commit

 

[6] Vale ressaltar aqui como excessões a Conectiva, que começou quase como tradução da Red Hat mas hoje colabora grandemente com o desenvolvimento de várias tecnologias base como o apt/apt-rpm, synaptic, KDE, parted, e até mesmo o kernel e a Debian-BR-CDD, cujos mantenedores trabalham diretamente com o time do Debian na construção da infra-estrutura de CDDs.

 

Colaborou com a produção desse texto: Luis Alberto GC - luisalbertogc@gmail.com

 

Pequenas contribuições foram dadas também por: Fernanda Weiden - fernanda@debian-rs.org Priscila Pimenta - priscilla@cotemig.com.br Guilherme de S. Pastore - gpastore@colband.com.br

 

Disponível em: http://www.softwarelivre.org/articles/61 acesso em 22 de agosto de 2005.