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Vida de Gado: O Uso de Implantes Eletrônicos de Identificação e o Direito à Privacidade

 


 Victor Muiños Barroso Lima

 

 

  1. Introdução

A informação, de qualquer natureza, vem se tornando cada vez mais fundamental na dinâmica dos processos da ordem econômica, política, social e cultural em que vivemos.
O comércio, por exemplo, no chamado marketing agressivo, usa técnicas e ferramentas para obtenção de informações sobre consumidores e seus comportamentos, monitorando ações e traçando perfis, não só para a adequação de seus produtos e serviços, como também para a regulação do comportamento dos consumidores. O governo também age de forma semelhante, alegando, porém, outros propósitos como a segurança.
Um primeiro passo para este tipo de monitoramento ou controle passa pela identificação dos indivíduos, e é neste contexto que estão surgindo os artefatos eletrônicos para identificação, tecnicamente conhecidos como transponders. Microchips implantados sob a pele, que ao serem lidos fornecem com rapidez a identidade de seu portador.
E é exatamente quando estes implantes eletrônicos começam a ser disseminados, é que nós, enquanto cidadãos, temos que conhecer como eles funcionam e quais são os aparatos legais e jurídicos que podem nos proteger contra eventuais abusos em relação à nossa dignidade e privacidade, criando pontos de equilíbrio nas relações sociais e políticas perante esta grande arquitetura de controle do comércio ou do Estado que está se tornando cada vez mais real.

Estas tecnologias, de um lado, comparam cada um com todos, homogeneizando e singularizando e, de outro lado, geram um saber sobre cada indivíduo, e, ao mesmo tempo, problematizam as questões relativas à privacidade e às liberdades individuais.
Mais do que nunca somos marcados pela figura do ciborgue, pela hibridação de corpo e tecnologia que instabiliza as fronteiras entre o natural e o artificial e cria novas identidades, novas classes sociais e hierarquias.



2. Os Transponders

O transponder é um dispositivo sem fio que recebe e transmite informações via ondas de rádio. Após receber um sinal, o transponder passa a transmitir ao mesmo tempo outro sinal numa outra freqüência. O termo transponder é uma combinação das palavras transmitter e responder, e, em geral, são usados em comunicações de satélites e em sistemas de localização, identificação e navegação.

Os transponders são compostos internamente por um microchip, uma bobina, e, opcionalmente, sensores, como por exemplo, para medição de temperatura, ou dispositivos de emissão de sinais GPS (Global Positioning System) para localização por satélite.
Nos transponders usados como implantes em seres vivos, cujos comprimentos podem variar de 12 a 28 milímetros, todos estes componentes são envoltos por uma cápsula de vidro cirúrgico biocompatível, coberto por uma bolsa feita com um tipo especial de polímero (polímero polipropileno poroso), também conhecida como capa anti-migração. O uso destes materiais faz com que a taxa de infecções seja baixa, impedindo também que o transponder migre para outros locais dentro do corpo de quem o hospeda (D4, 2004).

Transponders usados para identificação humana e animal são passivos, isto é, não carregam bateria, permanecendo inativos a maior parte do tempo. Um dos motivos do não uso de baterias, é que elas precisam ser trocadas ou recarregadas periodicamente. Outro motivo é que, em geral, elas são feitas a partir da combinação de metais pesados, como níquel e cádmio, potencialmente perigosos para a saúde.
O processo de leitura dos transponders é feito a partir de um outro aparelho, chamado de transceptor ou scanner. Este aparelho emite ondas de radiofreqüência que chegam ao transponder e excitam sua bobina, fazendo com que uma pequena corrente seja gerada e ative o microchip. O microchip passa então a responder, também em ondas de radiofreqüência, emitindo o código de identificação nele gravado.
A seguir apresentaremos dois casos de uso de transponders, o VeriChip para identificação humana e o transponder desenvolvido pela Embrapa para identificação de bovinos, em resposta às exigências do Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (SISBOV).


2.1 O VeriChip

Em outubro de 2004, a FDA (Food and Drug Administration), agência que regula o uso de medicamentos e alimentos nos Estados Unidos, liberou o implante de transponders em humanos para uso médico (FOLHA, 2004).

A empresa Applied Digital Solutions - ADS foi autorizada a utilizar o seu produto, o VeriChip, para acessar informações médicas sobre o portador do dispositivo.
O médico que precisar tratar alguém que tenha implantado sob a pele o dispositivo eletrônico, que é do tamanho de um grão de arroz com cerca de 12 milímetros, precisará apenas passar um leitor sobre o chip e terá acesso ao histórico médico da pessoa.
O VeriChip, após ser implantado, em geral sob a pele do braço, pode ser lido por transceptores da própria ADS, que recuperam o código individual do paciente. Este código permite o acesso criptografado a um dos dois bancos de dados da empresa através da Internet. Os bancos de dados da ADS, conhecidos como Global VeriChip Subscriber Registry, estão sediados na Califórnia e em Maryland e armazenam toda a ficha médica das pessoas cadastradas, contendo, por exemplo, tipo sangüíneo, alergias e tratamentos já realizados.

O VeriChip está sendo vendido por 200 dólares. O usuário ainda paga mais 40 dólares mensais a título de manutenção do serviço. A operação de implante dura cerca de 20 minutos, tempo necessário para aplicar uma anestesia local, injetar o dispositivo por meio de uma seringa descartável e fazer o curativo (ZAKABI, 2004).
Além do uso médico aprovado pelo governo americano, o artefato tem sido usado para outros fins em outros países. No México, funcionários da Secretaria de Justiça implantaram o VeriChip para controlar o acesso a salas de segurança máxima que guardam documentos sigilosos referentes ao narcotráfico naquele país (ZAKABI, 2004).
Em Barcelona, na Espanha, a casa noturna Baja Beach Club adotou em março de 2004 o uso do VeriChip. A um custo de 125 euros, os freqüentadores mais assíduos são estimulados pela casa a implantar o chip, que tem funcionado como uma espécie de cartão de crédito. Na entrada, os portadores do VeriChip são identificados por sensores, e as despesas efetuadas vão sendo registradas eletronicamente. Posteriormente, a boate envia a fatura para a residência de seu cliente. Além disso, há uma área exclusiva dentro da casa para os portadores do chip. Segundo Conrad Chase, proprietário do lugar, cerca de 50 clientes já implantaram o VeriChip. Perguntado se achava que o implante seria bem aceito, disse: "Sim, conheço muita gente com vontade de implantá-lo. Além do mais, atualmente quase todo mundo usa piercings, tatuagens ou silicone" (BAJA, 2004).
Além destas aplicações, o fabricante do VeriChip diz que seu produto pode ser usado como sistema de identificação em rebanhos e em animais de estimação, pode ser usado em conjunto com unidades GPS, para permitir, por exemplo, a localização de pessoas seqüestradas ou o rastreamento de bens de uma empresa, sejam eles bens materiais ou humanos, ou ainda controlar o acesso a propriedades intelectuais (ADS, 2004).
Ainda segundo o fabricante, o VeriChip pode reduzir ou mesmo eliminar o roubo, a perda, a duplicação e a falsificação de dados, documentos de identidade e de cartões bancários ou de crédito (ADS, 2004).


2.2 O SISBOV

No Brasil, o uso de transponders para identificação tem seu uso mais visível na identificação de animais, principalmente em rebanhos bovinos voltados à produção e exportação de carne, cujo monitoramento foi regulamentado pelo governo brasileiro com a criação do SISBOV.

O SISBOV, Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina, foi instituído pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) por meio da publicação da Instrução Normativa nº 1 em janeiro de 2002. O SISBOV foi criado para identificar, registrar e monitorar, individualmente, todos os bovinos e bubalinos nascidos no Brasil ou importados a partir daquela data.
O Sistema Brasileiro de Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina é um conjunto de ações, medidas e procedimentos adotados para caracterizar a origem, o estado sanitário, a produção, a produtividade da pecuária nacional e a segurança dos alimentos provenientes dessa exploração econômica.

Pela instrução normativa do MAPA, até o final de 2007 todas as propriedades com rebanhos bovinos ou bubalinos estarão obrigadas a participar do SISBOV.
Quem executa todas as atividades do SISBOV junto ao pecuarista é uma empresa autorizada pelo MAPA a funcionar como Certificadora. São elas as responsáveis pela execução das atividades de identificação e acompanhamento individual dos animais nas propriedades rurais, desde seu nascimento até o abate. Existem atualmente cerca de 45 certificadoras credenciadas em vários estados brasileiros.

Os produtores e criadores interessados em ingressar no SISBOV, devem escolher uma entidade certificadora para se inscrever no sistema. O pecuarista deve informar à certificadora sobre todos os eventos relacionados a cada animal: sistema de criação, alimentação básica, alimentação suplementar, vacinas etc. Deve informar também quando o animal morre ou é vendido.

Para cada animal, é emitido pelo SISBOV um número de registro. O pecuarista faz a identificação dos animais com o número do SISBOV, fato este que deve ser constatado pela certificadora por meio de uma visita técnica à propriedade. Informado da realização da identificação, o SISBOV autoriza a certificadora a emitir o Documento de Identificação Animal (DIA) e entregá-lo ao pecuarista. O DIA funcionará como o R.G. do animal (INSTRUÇÃO NORMATIVA, 2002). Posteriormente, as certificadoras enviam os dados coletados nas fazendas para a Base Nacional de Dados (BND) sob a guarda do MAPA em Brasília.

O governo não especifica um único sistema de identificação para os animais. A Instrução Normativa Nº 21 de abril de 2004, especifica apenas que podem ser usadas combinações de brincos, marcações a fogo, tatuagens e dispositivos eletrônicos (INSTRUÇÃO NORMATIVA, 2004).

Em termos de dispositivos eletrônicos, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) desenvolveu um transponder para armazenar eletronicamente a identidade do animal. Este transponder é revestido por porcelana ou resina de mamona e é envolto por uma capa anti-migração, substâncias que são biocompatíveis e que não deixam resíduo na carne, além de serem resistentes, não permitindo a quebra por impactos ou pressões provenientes dos manejos realizados cotidianamente (TAVARES, 2001).
O transponder é implantado em bezerros recém-nascidos na cicatriz umbilical, aproveitando o tratamento que já é feito normalmente para a cura do umbigo. No caso de animais adultos, o chip é depositado no rúmen. A opção pelo implante nestes locais foi devido à baixa incidência de infecções, baixa mobilidade do artefato, pouca possibilidade de quebra e baixa taxa de erros durante a leitura do transponder (TAVARES, 2001).

Uma vez lido, o código de identificação é enviado automaticamente pelos transceptores ou scanners a um sistema computacional, onde todos os dados referentes àquele animal são cadastrados, conferidos e atualizados.

O transponder desenvolvido pela Embrapa está em processo de registro de patente, e atualmente é fabricado pela empresa americana Digital Angel Corporation a um custo aproximado de US$ 3,00. A Digital Angel Corporation faz parte do mesmo grupo da empresa Applied Digital Solutions, fabricante do VeriChip.

Apesar do custo do sistema de identificação e gerenciamento eletrônicos ainda ser alto, trata-se de um sistema de controle rápido, se comparado aos outros tipos de identificadores. No experimento feito por FERREIRA et al. (2002) foi gasto, em média, apenas 1 segundo para leitura do transponder, enquanto que para leitura de brincos levou-se em torno de 6 segundos. Além da velocidade de leitura, a precisão do transponder também é maior e a leitura pode ser feita mesmo com o animal se deslocando a uma velocidade de 40 Km/h (TAVARES, 2002).
Segundo alguns pesquisadores, a identificação eletrônica pode também incorporar outros elementos, como sensores capazes de avaliar alguns aspectos do animal, como, por exemplo, variação do estado metabólico e temperatura. Estas informações adicionais são de grande utilidade para o criador e o auxiliam na detecção de eventuais enfermidades ou do período do cio nas vacas (TAVARES, 2002).
Os transceptores e scanners também podem funcionar em conjunto com outros aparelhos, como, por exemplo, balanças eletrônicas, fazendo com que a identificação e a pesagem dos animais possam ser executadas numa só operação.
Uma outra vantagem é que o uso do chip praticamente inviabiliza fraudes, como troca de identificadores entre animais, o que no caso de brincos é facilmente feito.
Apesar das inúmeras vantagens enaltecidas pela indústria, os artefatos de identificação eletrônica por radiofreqüência, se usados de forma abusiva, podem servir como forma de controle e regulação de seus portadores, e, como veremos a seguir, podem violar alguns princípios constitucionais básicos como, por exemplo, o direito à privacidade.


3. Privacidade

A palavra privacidade vem do latim privat, e, segundo o dicionário Aurélio, significa vida íntima, vida privada, intimidade. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 assegura a sua inviolabilidade em seu artigo 5º, inciso X, ao estabelecer que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (BLUM, 2003).
O direito à privacidade pode encampar distintas ações objetivando cessar práticas lesivas e reparar danos patrimoniais e morais, visando sancionar todo tipo de divulgação indevida de informação sobre a privacidade alheia.
O Novo Código Civil brasileiro, em vigor a partir de janeiro de 2003, também faz referências ao direito à privacidade. No Capítulo dos Direitos da Personalidade, em seu artigo 21, estabelece que "a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma".

Apesar de várias referências ao direito à privacidade, a legislação brasileira vigente sobre o assunto consiste em normas genéricas, o que implica em interpretações caso a caso, diferentemente daquilo que se encontra em disposições específicas de outros países.
Adicionalmente a este fato, muitos juristas consideram que nem sempre é fácil definir a privacidade em situações concretas, e encaram a privacidade como um conceito eminentemente subjetivo, pois algumas pessoas não se sentem invadidas na sua intimidade ao serem observadas e até gostam disso (PAIVA, 2003).
O fenômeno da perda da privacidade, seja por meio da criação de instrumentos tecnológicos capazes de espionar com detalhes o comportamento dos indivíduos, seja pela superexposição voluntária das pessoas em busca de notoriedade e de identidade social, é uma característica típica da sociedade contemporânea (PAIVA, 2003).
Todavia, o que temos que questionar não é a liberdade que as pessoas têm de suprimir parcelas de sua privacidade, mas a sua invasão sem autorização.

Podemos então conceituar a privacidade como uma faculdade inerente a todo e qualquer indivíduo de manter fora do alcance de terceiros o conhecimento sobre fatos inerentes a sua própria pessoa ou atividades particulares (MARCACINI, 2002), ou como citado em LESSIG (1999, pp. 143), privacidade é o poder de controlar o que os outros podem saber sobre você.

Ainda segundo LESSIG (1999, pp. 143) as pessoas podem adquirir algum conhecimento sobre você de duas maneiras, ou através de seu monitoramento ou pesquisando informações a seu respeito.

São exatamente estes alguns dos questionamentos por trás de artefatos como o VeriChip. Toda a arquitetura que inclui os transponders, os transceptores e os sistemas de informação e bancos de dados possibilitam que se faça tanto o monitoramento quanto a pesquisa de informações pessoais. As pessoas portadoras de um transponder podem ser monitoradas por sensores e transceptores instalados nos mais diferentes lugares. Este monitoramento ainda pode produzir registros acerca da identidade e dos comportamentos individuais, ficando armazenados em sistemas de informação e bancos de dados, possibilitando que sejam feitas pesquisas posteriores.
Segundo LESSIG (1999, pp. 152) este tipo de monitoramento realça um problema: à medida que as ações das pessoas passam a ficar registradas permanentemente, ficam abertas à revelação a qualquer momento, e conseqüentemente, podem demandar eventuais justificativas futuras.

Toda pessoa possui aspectos de sua identidade que são revelados automaticamente, como seus aspectos físicos e de sua aparência, como, por exemplo, cor dos olhos, tipo de cabelo, cor da pele e estatura. Existem outros aspectos que precisam de credenciais, autenticadas por documentos oficiais, como carteira de motorista ou carteira de identidade. De acordo com LESSIG (1999, pp. 31) a regulabilidade depende destas credenciais, ou seja, quanto mais confiáveis elas forem, mais o poder de regulação aumenta.
É exatamente esta confiabilidade que a indústria destes artefatos eletrônicos promete, quando afirmam serem eles de difícil perda, roubo, duplicação ou falsificação, principalmente se comparados com os documentos em papel comumente utilizados.
Este tipo de arquitetura acaba por tornar o comportamento das pessoas cada vez mais regulável. Quando uma pessoa portadora de um transponder entra num local qualquer, equipado com sensores, sua identificação é checada automaticamente, e seu acesso é liberado ou não. Uma vez dentro deste local se saberá muito a seu respeito, mesmo sem perguntá-la.
Diversas organizações não-governamentais como as americanas Eletronic Privacy Information Center (EPIC) e a American Civil Liberties Union (ACLU) alertam para possíveis abusos no uso deste tipo de tecnologia. Segundo a EPIC (2004), à medida que esta tecnologia evoluir, novos planos de uso mais invasivos poderão surgir.
As últimas pesquisas dos fabricantes para aumentar a velocidade de processamento, a capacidade de memória dos microchips e a distância em que os transponders podem ser lidos, são, em parte, respostas a uma demanda do mercado mundial por produtos de identificação por radiofreqüência estimada em 10 bilhões de dólares por ano durante a próxima década (EPIC, 2004).

Enquanto a indústria enaltece as virtudes da identificação eletrônica por ondas de radiofreqüência, a EPIC e a ACLU alertam que a habilidade de rastrear e monitorar pessoas, veículos e produtos pode criar um mundo como o imaginado por George Orwell em "1984" (ORWELL, 1989), o mundo do "Big Brother is Watching You", na medida em que as pessoas podem ter seus dados lidos ou seu comportamento monitorado mesmo sem saber.

Não é difícil imaginar que transceptores e scanners podem ser instalados estrategicamente em aeroportos, portos, rodoviárias, avenidas, supermercados, lojas, livrarias, empresas, indústrias e até mesmo dentro de residências, todos em constante atividade, processando e monitorando o comportamento das pessoas.
Outro cenário possível, segundo a ACLU (2004), que provavelmente não está longe de acontecer, é empresas obrigarem seus empregados a usarem implantes eletrônicos de identificação sob pena de serem demitidos.

Além de eliminarem a possibilidade do anonimato, muitos críticos dizem que as informações captadas podem ser requisitadas pelo governo por questões de segurança, ou ainda serem interceptadas por hackers ou criminosos.

O custo destes artefatos ainda é relativamente alto, mas à medida que este custo diminua a tendência é que eles sejam usados em grande número. Segundo LESSIG (1999, pp. 56), a liberdade depende de que a regulação permaneça cara, ou seja, quanto maior for o custo dos transponders e transceptores, menos eles serão usados para regular.
Em relação ao SISBOV, toda a sua arquitetura, composta pelos identificadores, scanners e banco de dados, tem a capacidade de tornar não só o rebanho bovino brasileiro mais regulável, como também os próprios criadores e pecuaristas. Neste caso o potencial de controle do SISBOV é enorme, na medida em que são registrados toda a movimentação dos animais e todo seu manejo, é também registrada toda a atividade econômica do criador, sendo que ele também, de forma indireta, pode passar a ser monitorado.
Nos bancos de dados das certificadoras e muito provavelmente também na Base Nacional de Dados (BND) do MAPA, ficam registrados todas as informações relativas a cada animal e também algumas informações acerca das propriedades rurais.
Não é difícil, portanto, que o governo tenha todo um mapa da atividade econômica de cada criador, como tamanho do rebanho, número de animais vendidos e comprados e o tipo de ração e vacina dados. O governo pode inclusive, se assim o quiser, cruzar os dados do BND com os dados da Receita Federal para saber se determinado criador está ou não sonegando impostos. O que não deixa de significar uma violação à privacidade e à liberdade do pecuarista no exercício de sua atividade econômica.
Percebemos nitidamente até aqui, que a discussão sobre estes artefatos de identificação eletrônica não pode se limitar somente às questões técnicas, uma vez que seu uso abusivo pode atentar contra liberdades individuais e o direito à privacidade. A seguir veremos que a ótica tecnicista se embaralha com as óticas social e política, e como estes artefatos acabam por construir novas classes sociais, novas identidades e uma nova sociedade, definida por DELEUZE (1992) como a sociedade de controle.

4. Sociedade de Controle

Sob um olhar sociotécnico, podemos perguntar "Com que fios entrelaçados esta nova sociedade está sendo construída?" O enfoque da pergunta não está no sujeito e nem nas teorias sociais, o enfoque está na rede que produz o sujeito e as teorias sociais. Segundo LAW (1992) a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas são todos efeitos gerados em redes de certos padrões de diversos materiais, não apenas humanos. É a partir do olhar sobre esta rede, que podemos compreender melhor como que, por exemplo, estes artefatos eletrônicos moldam e são moldados por novas relações sociais.
Portanto, a análise destes artefatos deve ser feita não só pelo ponto de vista técnico, como simples "coisas materiais", mas como híbridos, meio objetos e meio sujeitos, na medida que passam a criar identidades, classes sociais e hierarquias.

A esfera técnica, da ciência e tecnologia, quando as palavras de ordem são precisão e rapidez de leitura, acaba por se entrelaçar com as esferas social e política, no momento em que são criadas novas hierarquias e classes sociais e quando são afetados os direitos à privacidade e à liberdade de ir e vir.

Exemplo claro é dado pelos freqüentadores da casa noturna espanhola, onde os transponders criam uma nova classe social, com privilégios diferenciados e com acesso a salas exclusivas.

O implante de um chip cria uma nova natureza, conforma novos corpos, numa espécie de ciborguização que produz um novo homem e um novo animal, construindo e sendo construídos por sistemas de informação e bancos de dados. É como se nos tornássemos verdadeiros bancos de dados ambulantes.

Como citado em MARQUES et al. (2004), instituições policiais, militares, médicas, comerciais e industriais acabam por se incorporar em nossos corpos, não metaforicamente, mas literalmente.

Diferentemente dos sistemas disciplinares estudados por Michel Foucault (FOUCALUT, 1987), que prevaleceram do fim do século 18 até meados do 20 e agiam por estratégias de confinamento (prisão, hospício, hospital, escola etc.), essa rede ao redor dos artefatos eletrônicos de identificação, conforma e consolida um novo tipo de regime de dominação, que recorre a estratégias de modulação do comportamento, criando uma nuvem de vigilância e monitoramento, uma atmosfera policialesca, que é a base da sociedade de controle preconizada por Gilles Deleuze (DELEUZE, 1992). Na visão de Deleuze6, "coleiras eletrônicas" capazes de detectar a posição de cada indivíduo, lícita ou ilicitamente, operando uma modulação universal, seriam os novos instrumentos de controle a serem implantados no lugar dos meios de confinamento disciplinares estudados por Foucault. É a sociedade de controle substituindo a sociedade disciplinar.

5. Conclusões

O advento e uso destes artefatos de identificação podem desenhar um novo sistema, em que regular e controlar se tornam sinônimos de invadir a privacidade alheia, sem que se avente qualquer possibilidade de lutar contra esta invasão, a não ser tornando-se cúmplice de sistemas de vigilância que começam a se espalhar de forma capilar pela sociedade para além de qualquer arbítrio da própria comunidade.
Esse quadro denuncia a passagem gradual e definitiva da sociedade da norma, em que se entrecruzam o sistema penal e os regimes disciplinares, à sociedade de controle, onde tudo e todos passam a funcionar como agentes de poder, onde a noção de indivíduo e de coletividade é substituída gradativamente pela do dado escaneável.
O fato é que a tecnologia quase sempre está à frente da lei, e, assim como a lei, a tecnologia é capaz de inibir ou estimular comportamentos, habilitar ou desabilitar valores, operando por meio das arquiteturas que constrói. A arquitetura em torno dos transponders é potencialmente uma arquitetura de controle, e pode ser usada pelo governo, pelo comércio ou ainda pelos dois. Conseqüentemente, nossa proteção contra eventuais abusos deve passar não somente pela alçada jurídica de leis e normas, mas também pela alçada técnica, atuando diretamente nos códigos, no software e no hardware, que constroem estas arquiteturas tecnológicas, pois como citado por LESSIG (1999): "Code is Law".

Cabe por fim um alerta, de que passamos por uma revolução cibernética que atinge em cheio as relações sociais e que, portanto, devem ser estudados e solucionados os conflitos provenientes dessas transformações, munindo os atores sociais de arcabouços técnicos, jurídicos e legais aptos para lidar com esses tipos de relações, com vistas a criar um equilíbrio social entre o comércio e o consumidor, entre o patrão e o empregado e entre o Estado e o cidadão.

Como disse Norbert Wiener (WIENER, 1954): "o perigo da máquina para a sociedade não provém da máquina em si, mas daquilo que o Homem faz dela".

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Disponível em: <http://www.ibdi.org.br/index.php?secao=&id_noticia=433&acao=lendo> . Acesso em 02 de maio de 05.