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A utilização de filtros como solução
para combater a pornografia na Internet. A repercussão da
decisão da Suprema Corte americana sobre o COPA
Demócrito
Reinaldo Filho juiz de Direito em
Pernambuco, diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Política da
Informática (IBDI)
A melhor solução contra a disseminação de pornografia na
Internet está na edição de leis específicas que proíbam esse tipo de conteúdo
ou encontra-se no uso de ferramentas tecnológicas à disposição dos pais de
crianças? Essa é a questão que atualmente divide opiniões de sociólogos,
educadores, políticos, assistentes sociais, juristas e todo o espectro de
profissionais que, de uma maneira ou de outra, estão envolvidos e se preocupam
com o acesso indiscriminado à pornografia por crianças, facilitado pelo advento
da Internet, que se tornou um canal privilegiado e praticamente sem controle
para a divulgação de material dessa natureza. Mais recentemente, esse tema foi
objeto de discussão entre os juízes da Suprema Corte dos EUA, por ocasião do
julgamento (em sessão do dia 29 de junho deste ano) de um recurso (1) em torno
da constitucionalidade de uma lei editada pelo Congresso daquele país, o Child
Online Protection Act (conhecida simplesmente pela abreviatura COPA),
que se propõe a impedir a exposição de crianças a material de conteúdo sexual
explícito na Internet.
A referida Lei, em síntese, estabeleceu a imposição de
pena (multa até 50 mil dólares e seis meses de prisão) (2) para qualquer
operador de website comercial que coloque conteúdo considerado
"prejudicial a menores"(3), a não ser que comprove que restringiu o
acesso a esse tipo de material por meio da utilização de sistemas de
verificação de idade(4), que pode ser a exigência do número do cartão de
crédito do internauta(5), de uma conta bancária, um código de acesso ou
qualquer outro sistema digital(6).
O COPA foi editado como resposta do Congresso ao
julgamento de uma lei anterior, declarada inconstitucional pela Suprema Corte
(7). O Communications Decency Act (CDA) (8), assinada pelo
Presidente Clinton em 1996, foi a primeira tentativa do Congresso americano de
tornar a Internet um ambiente mais seguro para crianças, através da proibição
da disseminação de material "obsceno" e "indecente" (9). A
Suprema Corte julgou que o CDA violava o princípio constitucional da
liberdade de expressão (freedom of speech), uma vez que a vaguidade dos
conceitos de obscenidade e indecência representava uma limitação do conteúdo do
discurso permitido na Internet, forçando os provedores a vetar uma imensa massa
de material de valor educacional, artístico, médico e literário. Apenas um ano
depois desse primeiro julgamento (10), o Congresso norte-americano editou o COPA,
assinada pelo Presidente Bill Clinton em 1998. De modo a não incorrer no mesmo
vício de inconstitucionalidade da lei antecessora, os congressistas tiveram o
cuidado de colocar no texto do COPA o conceito de material
"prejudicial a menores", como sendo aquele (em linhas gerais) que uma
pessoa média possa considerar como apelativo a interesses prurientes, por
descrever um ato sexual ou exibir imagens de órgãos sexuais e que, considerado
como um todo, carece de sério valor literário, artístico, político ou
científico (11).
Mesmo essa nova Lei (o COPA) também foi contestada
em termos de violação à liberdade de expressão do pensamento, ao argumento de
que não foi estreitamente desenhada de modo a atender o interesse público de
proteção às crianças e que existem outros meios menos restritivos de se
alcançar esse objetivo. De acordo com a doutrina constitucional
norte-americana, qualquer restrição ao discurso (entenda-se: à liberdade
expressão) baseada em limitação do conteúdo deve atender a um "relevante
interesse público"(12) e o Governo tem o ônus de provar que não existem
outras alternativas igualmente eficazes (13). A razão lógica é assegurar que o
discurso não seja restringido mais do que o necessário para a realização do
interesse público representado em lei editada pelo Congresso. Uma corte
distrital (14) concedeu uma decisão preliminar, suspendendo a execução do COPA,
por entender que não era estreitamente desenhada para cumprir o interesse
público pretendido e que existem meios alternativos tão eficazes e menos
restritivos de prevenir as crianças de usar a Internet para ter acesso a
material pornográfico, particularmente o uso de programas e tecnologias de
bloqueio e filtragem (os conhecidos softwares de filtros para Internet).
Essa decisão foi mantida por um tribunal de federal apelações (15) e o Governo
dela recorreu para a Suprema Corte.
No julgamento do dia 29 de junho, a Suprema Corte
considerou (por maioria de votos, 5x4) que não dispunha de meios suficientes
para avaliar a eficácia da tecnologia de filtros para programas de navegação na
Internet e determinou que o processo na corte inferior seguisse para instrução.
Falando em nome da maioria dos integrantes da Corte, o Juiz Anthony M. Kennedy
expressou sua opinião de que nos autos não havia elementos suficientes que
refletissem o estado atual do desenvolvimento da tecnologia de filtros (16). Já
haviam se passados cinco anos desde que a corte distrital colhera os primeiros
pareceres e depoimentos de especialistas sobre a matéria (quando examinou o
pedido liminar), daí porque os juízes da Suprema Corte decidiram ser mais
conveniente manter a decisão preliminar e devolver o caso à instância inferior,
onde as partes terão oportunidade de atualizar e suplementar os seus elementos
de prova, de forma a revelar o grau de desenvolvimento atual da tecnologia de
filtros para a Internet (17).
1
Embora tendo devolvido a questão à instância inferior, para nova colheita de
provas técnicas quanto à atualidade da tecnologia de filtros para Internet, a
Corte Suprema parece já ter deixado assente sua inclinação pela preferência a
esse meio alternativo (técnico) de restrição à pornografia. Em seu voto
condutor, o Justice Kennedy repetiu as conclusões da Corte distrital no
sentido de que essa tecnologia é menos restritiva e mais eficiente (no que
tange à proteção de menores contra material impróprio) do que a proibição de
conteúdo por via legal. Ele explicou que a solução dos filtros permite que
adultos tenham acesso a material pornográfico sem a necessidade de ter que se
identificarem perante um provedor ou operador de website. Os pais que
optarem por ter acesso a material dessa natureza só têm que desligar os filtros
no momento em que eles próprios navegam na Internet. Além disso, a Lei (o COPA)
somente teria possibilidade de penalizar operadores de websites residentes
nos EUA, enquanto os filtros permitem bloquear sites de pornografia
baseados no exterior. Segundo pesquisa lida por ele, 40% do material
pornográfico ou considerado impróprio para crianças provêm de sites operados
do exterior. Anthony Kennedy ressaltou que, mesmo sendo a Lei aprovada, os
administradores de websites pornográficos poderiam mover suas operações
para fora do território dos EUA ou se registrar em provedores de outros países.
Ele destacou ainda dados existentes no processo que comprovam que os filtros
são mais eficazes do que sistemas de verificação de idade (implantados nas
páginas de entrada dos websites), pois estes últimos estão sujeitos à
burla e mesmo alguns menores de idade possuem cartão de crédito (18).
Finalmente, concluiu, os filtros podem ser aplicados a qualquer forma de
comunicação na Internet, incluindo os servidores de e-mail, e não somente na Web
(a World Wide Web), único canal da Internet sobre o qual a Lei teria
efeito.
Os softwares e filtros para a Internet, obviamente,
não representam uma solução perfeita para problema da proteção de crianças
contra pornografia. Eles podem bloquear material que não seja impróprio como
podem falhar em bloquear conteúdo efetivamente pornográfico. Quaisquer que
sejam, no entanto, as deficiências das soluções técnicas de filtragem, é quase
certo que elas venham a prevalecer como opção menos gravosa à liberdade de expressão.
O processo das tentativas de controle da informação que circulam na rede
mundial deixa transparecer que entra em nova fase. Se a primeira foi marcada
pela iniciativa legislativa dos governos, com a edição de leis repressivas,
censurando certos tipos de conteúdo (como aconteceu com o CDA e com o COPA),
a segunda é caracterizada pela utilização de programas de computadores e
dispositivos tecnológicos, os conhecidos filtros de conteúdo, que permitem
bloquear o acesso a certos tipos de informações indesejadas, pelos próprios
destinatários e de forma voluntária. Limitações legais à liberdade de expressão
são presumivelmente inválidas. Qualquer lei que pretenda suprimir da Internet
uma grande quantidade de conteúdo que os adultos têm o direito constitucional de
receber e divulgar corre o risco de ser tachada de inconstitucional, por ferir
o princípio da liberdade de expressão. Como disse o Juiz Kennedy,
"proibições relativas ao conteúdo, impostas com base em severas
penalidades criminais, têm o constante potencial de ser uma força repressiva
nas vidas e pensamentos de um povo livre" (19).
Seria importante que os nossos próprios legisladores
retirassem as mesmas conclusões dos julgamentos da Suprema Corte
norte-americana Afinal, nossa Carta constitucional também consagra o princípio
da liberdade de expressão (art. 5o., IV, VI, VII, IX e XIV, e art.
220). Na Câmara dos Deputados tramita uma série de projetos de lei com objetivo
similar ao do CDA e do COPA, buscando a proteção das crianças
pela mesma via da criminalização da transmissão de material obsceno na Internet
(20).
A bem da verdade, esses julgamentos parecem já ter ecoado
por aqui. No dia 26 de maio deste ano, ao oferecer parecer ao Projeto de Lei
1070, de 1995, de autoria do Deputado Ildemar Kussler (PSDB/RO), que dispõe
sobre crimes oriundos da divulgação de material pornográfico através de
computadores – ao qual foram apensados todos os outros projetos que tratam
sobre o mesmo tema -, o Deputado José Mendonça Bezerra (PFL/PE), relator
perante a Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI),
opinou pela aprovação do projeto com substitutivo em que sugere apenas a
obrigatoriedade da utilização de sistemas de verificação de idade nos sites
destinados ao público adulto (21), excluindo a opção da criminalização de
certos conteúdos. Na justificativa do substitutivo, o relator reconhece que a
tipificação do crime de transmissão de material obsceno é "regra de
difícil aplicação, uma vez que não é consensual a definição do que seja obscenidade"
(22). O relator também reconhece que a proposta original corria o risco de
violar o princípio da liberdade de expressão.
Projetos mais recentes estão até mais atualizados (23),
pois apenas impõem aos fornecedores de sistemas operacionais e de programas de
navegação e aos provedores de Internet a obrigação de colocar, à disposição dos
usuários, programa (software) que permite o controle do acesso de
crianças a endereços de sítios na rede que ofereçam material inadequado à sua
faixa etária. Trata-se, portanto, de política legislativa destinada a
incentivar a disseminação dos filtros de conteúdo para a Internet (24),
demonstrando que, ao contrário do que se pensa, nossos legisladores já estão
atentos para a necessidade de se garantir a proteção das crianças contra
material impróprio na Internet, sem deixar que se sacrifique por completo o
valor constitucional da liberdade de expressão dos adultos. É esse tipo de
equilíbrio que a sociedade espera deles.
Notas:
(1) O caso Ashcroft v. American Civil Liberties Union.
(2) A Lei altera o 47 U.S.C § 231.
(3) A expressão, em inglês, é harmful to minors. A
lei considera menor a pessoa com menos de 17 anos.
(4) A Lei na verdade estabelece uma affirmative defense,
ou seja, ela impõe ao acusado o dever de provar que restringiu o acesso ao
conteúdo do site.
(5) A pressuposição dos legisladores é que, por meio da
exigência do fornecimento do número do cartão de crédito, o operador do site
tem como verificar se o internauta que pretende ter acesso é menor de
idade.
(6) §231(c)(1).
(7) No julgamento do caso Reno v. American Civil
Liberties Union, 521 U. S. 844 (1997).
(8) Que poderia ser traduzida como "Lei da
Moralização das Comunicações", numa tradução não literal.
(9) A Lei responsabilizava os provedores de acesso à
Internet, em cujos sistemas fosse encontrado material considerado obsceno, com
a aplicação de multas de até 250 mil dólares, e dois anos de prisão.
(10) Que ocorreu em 1997.
(11) Material "harmful to minors" é definido
como (no original, em inglês):
"any
communication, picture, image, graphic image file, article, recording, writing,
or other matter of any kind that is obscene or that—
(A) the
average person, applying contemporary community standards, would find, taking
the material as a whole and with respect to minors, is designed to appeal to,
or is designed to pander to, the prurient interest;
(B)
depicts, describes, or represents, in a manner patently offensive with respect
to minors, an actual or simulated sexual act or sexual contact, an actual or
simulated normal or perverted sexual act, or a lewd exhibition of the genitals
or post-pubescent female breast; and
(C) taken
as a whole, lacks serious literary, artistic, political, or scientific value
for minors." §231(e)(6).
(12) A expressão em inglês é compelling governmental
interest.
(13) Em um precedente citado no julgamento (o caso United
States v. Play-boy Entertainment Group, Inc., 529 U. S. 803), que
também envolvia uma restrição a conteúdo por via legal com o objetivo de
proteger crianças do acesso a material prejudicial, ficou assente na
jurisprudência da Corte Suprema essa orientação, no sentido de que, não tendo o
Governo provado que outros meios alternativos não são tão eficazes, a limitação
ao discurso não se compadece com a garantia constitucional da liberdade de
expressão (free speech), enclausurada na 1a. Emenda.
(14)
Corte Federal Distrital da Filadélfia (United States District Court for the
Eastern District of Pennsylvania).
(15) Corte de Apelações para o 3o. Circuito (United States Court of
Appeals for the Third Circuit)
(16) Esse problema da não atualização dos registros e
informes processuais tem se verificado quase sempre que uma corte tem que
julgar um problema envolvendo a Internet, como disse o próprio Juiz Kennedy,
pois "a rede se desenvolve em passos rápidos".
(17) Os juízes também ressaltaram que seguindo o processo
para instrução regular, a corte distrital poderá analisar a circunstância
adicional de que, nesse espaço de cinco anos, o Congresso passou duas novas
leis que podem ser consideradas como alternativas menos restritivas ao COPA -
uma que proíbe nomes de domínio enganosos (misleading domain names),
pretendendo com isso combater a prática de registro e estabelecimento de sites
com nomes ligeiramente parecidos com sites tradicionais e conhecidos, mas que
na verdade contêm material pornográfico, e outra que cria um domínio de segundo
nível (.kids), para o qual só se aceitam registros de sites de conteúdo
adequado ao desenvolvimento de crianças.
(18) Um relatório apresentado por uma Comissão perante o
Congresso americano (em outubro de 2000), e citado pelo Justice Kennedy,
atribuiu um percentual de eficácia de 7.4 aos filtros instalados em servidores,
6.5 aos filtros instalados em computadores pessoais, 5.9 aos sistemas digitais
de verificação de idade e 5.5 aos sistemas de verificação de cartão de crédito.
(19)
"Content-based prohibitions, enforced by severe criminal penalties, have
the constant potential to be a repressive force in the lives and thoughts of a
free people".
(20) Podem ser citados os seguintes projetos, que tratam
sobre o tema:
Projeto de Lei nº 1.654, de 1996, de autoria do
Deputado Herculano Anghinetti, que proíbe a fabricação, importação e
comercialização de jogos eletrônicos ou programas com material obsceno (tem
abordagem similar ao da proposição geral de combater a pornografia vedando a
divulgação de material obsceno); Projeto de Lei 3268, de 1997, de
autoria do Deputado Agnelo Queiroz (PcdoB/DF), que proíbe o acesso a sítios e a
veiculação de mensagens eletrônicas ou programas de caráter obsceno; Projeto
de Lei 3498, de 1997, do Deputado Silas Brasileiro (PMDB-MG), que tipifica
o crime de veicular material pornográfico pela Internet; Projeto de Lei
3258, de 1997, do Deputado Osmânio Pereira (PSDB-MG), que dispõe sobre
crimes perpetrados por meio de redes de informação, tipificando a divulgação
pela Internet de material pornográfico, instruções para fabricação de bombas
caseiras e textos que incitam e facilitam o acesso a drogas ilegais. Todos
esses projetos foram apensados ao Projeto de Lei 1070, de 1995, do
Deputado Ildemar Kussler (PSDB/RO), que dispõe sobre crimes oriundos da
divulgação de material pornográfico através de computadores.
(21) O art. 2o. do Substitutivo dá nova redação
à Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente),
acrescentado o art. 79-A, que nos parágrafos 1o. e 2o.
prevêem a obrigatoriedade aos operadores de sites de conteúdo destinado ao
público adulto de adotar sistemas de verificação de idade.
(22) Além disso, o Substitutivo impõe que os sites
destinados ao público adulto contenham aviso a respeito da classificação do seu
conteúdo.
(23) Projeto de Lei 2231, de 1999, do Deputado
Carlos Elias (PTB/ES), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de
controle do acesso de crianças e adolescentes a redes de computadores
destinados ao uso do público; Projeto de Lei 4426, de 2001, da Deputada
Ana Corso (PT/RS), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de controle do
acesso de crianças e adolescentes a redes de computadores destinadas ao uso do
público; Projeto de Lei 1264, de 2003, do Deputado Leonardo Monteiro
(PT/MG), que dispõe sobre o fornecimento de mecanismos de controle do acesso de
crianças e adolescentes a redes de computadores destinadas ao uso do público;
Projeto de Lei 2842, de 2003, do Deputado Takayama (PMDB/PR), que modifica
a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, regulando o acesso de crianças e
adolescentes a provedores de informações na Internet.
(24) Diversos programas já disponíveis no mercado
(Surfwatch, Cybernanny, Cyberpatrol e outros) já oferecem essa funcionalidade.
Fonte: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5873