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Verdades e
falácias sobre a troca de arquivos na Internet e o Direito, em um Brasil
pós-Napster
Rodrigo Guimarães
Colares acadêmico de Direito em
Recife (PE), membro da Unidade de Direito da Tecnologia da Informação de
Martorelli Advogados, consultor do Porto Digital
No Brasil, muito tem se falado sobre a troca de mp3 e a
criminalização dessa conduta. Como ocorre na maioria dos temas polêmicos
ligados à Internet e afetos ao Direito, muitas histórias mirabolantes foram
levantadas.
Essas hipóteses, que às vezes se demonstram teratológicas
até mesmo do ponto de vista jurídico, hoje orbitam em torno da seguinte
questão: até que ponto a troca de arquivos fonográficos (e de outras obras
intelectuais) de terceiros é crime?
Toda essa confusão tem sua nascente na sanção presidencial
de uma Lei que adicionou quatro novos parágrafos ao art. 184 do Código Penal
Brasileiro, que trata especificamente da violação ao direito autoral. A Lei n.
10.695 de 1º de julho de 2003, dentre outras medidas, determinou o seguinte
texto normativo:
"Art.
184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos:
Pena
- detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa.
§
1º Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro
direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual,
interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do
artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os
represente:
Pena
- reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§
2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com o intuito de lucro direto ou
indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire,
oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma
reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete
ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original
ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos
titulares dos direitos ou de quem os represente.
§
3º Se a violação consistir no oferecimento ao público, mediante cabo, fibra
ótica, satélite, ondas ou qualquer outro sistema que permita ao usuário
realizar a seleção da obra ou produção para recebê-la em um tempo e lugar
previamente determinados por quem formula a demanda, com intuito de lucro,
direto ou indireto, sem autorização expressa, conforme o caso, do autor, do
artista intérprete ou executante, do produtor de fonograma, ou de quem os represente:
Pena
- reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.
§
4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplica quando se tratar de exceção ou
limitação ao direito de autor ou os que lhe são conexos, em conformidade com o
previsto na Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, nem a cópia de obra
intelectual ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem
intuito de lucro direto ou indireto."
O tema que ora nos importa é exatamente o concernente aos
dois últimos parágrafos – os que mais chamam atenção devido à novidade da
matéria e, conseqüentemente, às interpretações controvertidas que geraram.
Napster, KaZaA e Peer-to-Peer no
Brasil: crime?
O parágrafo terceiro dispõe que passa a ser crime a
conduta de oferecer ao público qualquer sistema que possibilite a troca de
obras intelectuais por meios eletrônicos ou telemáticos, sem autorização
expressa do titular, com fim de lucro direto ou indireto. Em outras palavras, a
atividade de programas peer-to-peer (P2P), de trocas de arquivos com
obras intelectuais, como o Napster e o KaZaA, passou a ser crime no Brasil. De
igual forma são tratados sites que disponibilizam esses arquivos. E os
proprietários desses programas e sites podem ser punidos com penas que
variam de 2 a 4 anos, além da multa.
Esse dispositivo legal provavelmente teve sua inspiração
no famoso caso norte-americano RIAA vs. Napster, que a Associação
Americana das Indústrias de Gravadoras (Recording Industry Association of
América – RIAA) moveu contra os proprietários do programa Napster. Um dos
pontos principais analisados foi se os titulares do programa obtinham ou não
lucro com os arquivos que eram trocados. Outra questão importante suscitada
perante as Cortes Norte-Americanas foi se o Napster teria ou não ingerência
sobre as obras distribuídas com seu auxílio, uma vez que em redes peer-to-peer
o contato se dá diretamente entre os usuários, sem qualquer intervenção de
outro servidor.
O caso foi tão importante para o Direito da Informática
Internacional que culminou em um documento publicado este ano (2003) pela
Faculdade de Direito da Universidade de Harvard (Berkman Center for Internet
& Society at Harvard Law School) em conjunto com o GartnerG2,
intitulado "Direitos Autorais e Mídia Digital em um Mundo
Pós-Napster". Deste, infere-se que a proteção à mídia digital não pode ser
baseada apenas na força da Lei.
Deve-se partir de três vetores, quais sejam, tecnologia
(elemento tecnológico), educação dos consumidores (elemento cultural) e Direito
(elemento Estatal). Mas isto, tendo em vista uma política cultural de
flexibilização das bases dos direitos autorais. No Brasil, este posicionamento
facilmente encontra seu fundamento na função social que deve ser exercida pela
propriedade, princípio de nossa Constituição Federal.
Usuários, download e sua situação no
Direito Brasileiro
Já o quarto parágrafo do art. 184 do Código Penal
Brasileiro, dentre outras estipulações, prevê que a cópia de obra intelectual
ou fonograma, em um só exemplar, para uso privado do copista, sem intuito de
lucro direto ou indireto, não se enquadrará nos parágrafos anteriores, ou seja,
não será crime punido com penas de 2 a 4 anos e multa.
O primeiro problema decorrente deste ponto surge quanto à
interpretação que alguns deram no sentido de que a cópia privada de um usuário,
quando não houver intuito de lucro, não será crime. Isto faria com que usuários
dos programas peer-to-peer tivessem o legítimo direito de copiar
quaisquer arquivos de obras intelectuais de terceiros, sem autorização, desde
que para uso próprio e sem o fim de obter lucro. Do ponto de vista social, esta
interpretação talvez pareça quase inexpugnável. Entrementes, enfrenta alguns
problemas.
Em que pese esta opinião, a norma incriminadora não tem
serventia de legitimar novos direitos, mas sim prevenir condutas lesivas a
direitos. O legislador penal jamais traria para si tais atribuições. Além
disso, essa interpretação causa ofensa à propriedade intelectual, que não pode
ser usurpada, em atenção a tratados e convenções internacionais dos quais o
Brasil é signatário.
Em nossa opinião, o que ocorreu foi a previsão legal da
possibilidade de cópia única privada, para aqueles que já tinham adquirido a
obra legalmente. Fala-se em analogia à cópia de backup prevista na Lei
do Software.
Por outro lado, na opinião do diretor jurídico da
Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF), Jorge
Eduardo Grahl, em entrevista a Paulo Rebêlo, "há o entendimento de que
quem copia ou compartilha arquivos com a intenção de economizar por não pagar
pelos direitos autorais e impostos, automaticamente está tendo lucro indireto
e, portanto, enquadra-se na violação de direitos autorais". Assim, estaria
o usuário enquadrado no parágrafo 1º do art. 184 do Código Penal, cuja pena é
de 2 a 4 anos, além de multa.
Salvo melhor juízo, lucro indireto pode ocorrer em
episódios de sites que disponibilizem arquivos e tenham sua renda
proveniente de outras fontes – indiretas, como anúncios de publicidade de
terceiros. No caso do usuário, o que passa a ocorrer é a violação ao direito de
autor, pura e simples, prevista no caput do art. 184 do Código Penal,
punível com penas que variam de 3 meses a 1 ano ou multa.
Na prática, esta interpretação é benéfica a ambas as
partes, haja vista que se facilita o procedimento judicial, que passa a ter
competência dos Juizados Especiais Criminais, possibilitando transação penal,
sem necessitar de um processo criminal propriamente dito.
O caso brasileiro: APDIF vs. Alvir Reichert Júnior
Em 25 de agosto de 2003, menos de dois meses após sua
sanção, a Lei n. 10.695/03 fez sua primeira vítima. O paranaense Alvir Reicher
Júnior foi preso, sob a acusação de vender mp3 em um site que mantinha,
chamado "mp3forever". A prisão foi fruto de uma investigação movida
pela Associação Protetora dos Direitos Intelectuais Fonográficos (APDIF).
Reicher foi enquadrado nos parágrafos 1º, 2º e 3º da nova Lei.
Também neste ano (2003), a Associação Americana das
Indústrias de Gravadoras (RIAA) moveu várias ações contra 261 usuários
que trocavam arquivos musicais em redes peer-to-peer. Esta medida
judicial perante Cortes de Justiça Norte-Americanas, invés de se tornar
conhecida como um efetivo meio de combate à pirataria, tornou-se alvo de
sátiras pela imprensa especializada. Dentre os indiciados, há até mesmo uma criança
de 12 anos de idade. Os dois casos guardam semelhanças pelo fato de que foram
atacados judicialmente indivíduos de relativo pouco potencial ofensivo,
particulares, ao invés de se perseguir grandes piratas industriais.
Assim como o Digital Millennium Copyright Act de
1998 fez surgir inúmeros casos nos Estados Unidos da América, as determinações
recém introduzidas no art. 184 do Código Penal Brasileiro nos levarão a novas
reflexões, que devem considerar o atual cenário global dos direitos autorais.
O mundo não é mais o mesmo e não pode ser tratado como se
estivéssemos na era do surgimento da imprensa. A Internet revolucionou
contundentemente o acesso à informação. Tudo isso deve ser pesado na adoção de
medidas efetivas de proteção à propriedade intelectual, não se olvidando para o
aspecto social que esta deve exercer.
REFERÊNCIAS
Berkman
Center for Internet & Society at Harvard Law School – http://cyber.law.harvard.edu
REBÊLO, Paulo. Mudança na Lei deixa prender quem baixa
mp3. Site do IBDI. http://www.ibdi.org.br/index.php?secao=&id_noticia=178&acao=lendo
acessado em 18 de setembro de 2003.
Retirado: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4412