® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

A Interceptação Telefônica e seus Requisitos Autorizadores

 

 

 

 

Rodrigo Andrade Viviani

Acadêmico de direito da UNIVALI (Campus de São José – SC);

Estagiário do Ministério Público de Santa Catarina.

 

      

 

O tema pertinente à quebra do sigilo telefônico tem causado polêmica no ordenamento jurídico brasileiro, por ser uma medida que transgride a intimidade do indivíduo, intimidade esta tão tutelada pela Constituição Federal de 1988. A interceptação telefônica, segundo professa Alexandre de Moraes “é a captação e gravação de conversa telefônica, no mesmo momento em que ela se realiza, por terceira pessoa sem o conhecimento de qualquer dos interlocutores”. (1)

 

A interceptação tem sua previsão esculpida no artigo 5º, XII, da Constituição Federal, in verbis:

 

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:                      

 

[...]  

XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.(grifou-se)

 

Há de se ressaltar, todavia, que até o ano de 1996, malgrado o dispositivo do artigo 5º, XII, da Constituição Federal Brasileira, outorgar, em casos extremos, a interceptação telefônica, não havia a possibilidade para a sua concessão, visto que ainda não existia lei regulamentando tal medida. Com isto, surgiram grandes entraves na doutrina e na jurisprudência, o que levou o Supremo Tribunal Federal (2), até a edição da Lei 9.296, de 24 de julho de 1996 – que regulamentou o citado dispositivo constitucional – rechaçar a sua legalidade, ainda que houvesse ordem judicial, justamente por faltar lei que a disciplinasse. Portanto, as provas obtidas por esta violação telefônica, até a mencionada data, eram consideradas ilícitas.

 

Foi, então, com a regulamentação da Lei 9.296/96, que houve a possibilidade desta usurpação à esfera íntima do cidadão, contanto que preenchidos todos os requisitos explícitos no artigo 2º da aludida Lei, bem como aqueles inseridos no artigo 5º, XII, da Carta Política.

 

Contudo, o tema não é tão simples quanto parece, eis que a Constituição Federal erigiu a inviolabilidade do sigilo telefônico à categoria de direito fundamental, colocando uma exceção a tal princípio somente em casos extremos e em processos que tratem de matéria de ordem penal. O que se vislumbra, destarte, é que o artigo 5º, XII, da Magna Carta, é uma norma relativa, pois ao mesmo tempo em que coíbe esta transgressão, também a permite em determinadas circunstâncias.

 

Neste contexto, observa-se que o referido preceito constitucional, conquanto seja um direito fundamental elevado à categoria de cláusula pétrea, possui eficácia limitada, pois está subordinado a uma lei que o regulamente. O magistério de Lenio Luiz Streck leva uma reflexão mais profunda sobre o assunto, senão vejamos (3):

 

À evidência, a nova Lei deve ser examinada com o máximo de cautela, mormente porque trata do estabelecimento de limites às liberdades e garantias individuais do cidadão, o que leva à seguinte indagação: em que medida pode o Estado ingressar na esfera da intimidade das pessoas? Quais os limites e qual o alcance dessa proporcionalidade estabelecida pela nova Lei?

 

 

Tecidas essas considerações, parte-se para o desiderato precípuo deste estudo, que é abordar de forma crítica os requisitos necessários para o consentimento da interceptação telefônica. Segundo preconiza o artigo 2º da Lei em foco, esta transgressão não será admitida quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses: I) não houver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal; II) a prova puder ser feita por outros meios disponíveis; III) o fato investigado constituir infração penal punida, no máximo, com pena de detenção.

 

Desta forma, extrai-se que a medida em exame só será concedida se os três requisitos estiverem reunidos. Quanto aos dois primeiros requisitos, parece-me que foram empregados nos moldes previstos pela Constituição Federal. No entanto, em relação ao terceiro, é imperioso rogar algumas indagações.

 

Segundo se infere do primeiro requisito, previsto no inciso I, artigo 2º, da Lei 9.296, para que haja a autorização ao rompimento do sigilo telefônico, é mister que existam indícios razoáveis da autoria na infração penal, que corresponde ao fumus boni iuris do Processo Cautelar. Esse inciso não requer maiores delongas, pois é evidente que se não houver indícios de que o sujeito seja autor da infração penal, não há o porquê de se promover tal violação.

 

Já a dicção de inciso II demonstra que a prova não pode ser realizada por outros meios, equivalendo ao periculum in mora do processo cautelar. Assim, havendo outras formas para a elucidação do fato investigado ou processado, não será permitida a interceptação telefônica, pois esta violação, conforme prelecionam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho e Antonio Fernandes, é “uma insidiosa ingerência na intimidade não só do suspeito ou do acusado, mas até de terceiros, pelo que só devem ser utilizadas como ultima ratio(4).

 

Extrai-se, portanto, que o magistrado, ao decidir sobre a admissibilidade ou não da interceptação, deve se atentar a outros mecanismos processuais disponíveis para a obtenção da prova almejada, para somente em último caso – quando não houver outros meios disponíveis – concedê-la, sob pena de causar uma aberração aos direitos fundamentais. Assim, se houver a possibilidade de servir-se de alguma prova testemunhal ou pericial, por exemplo, não haverá razão para a interceptação. Nesta diretriz, o renomado jurista Luiz Flávio Gomes assevera que “Impõe-se ao Juiz a valoração da existência ou não de “outros meios disponíveis”, examinado detidamente o caso concreto. Sempre tendo em vista o bem jurídico tutelado, a intimidade e o sigilo das comunicações, que é de natureza fundamental” (5).

 

Com relação ao último requisito, tipificado no inciso III, o qual disserta que as interceptações telefônicas só poderão ser concretizadas nos crimes apenados com reclusão, deve-se dar maior relevo ao preceito, considerando algumas perplexidades que vêm causando na doutrina.

 

Analisando este último requisito, há de se ressaltar que o legislador, ao colocar a reclusão como pressuposto necessário, excedeu-se, levando-se em consideração os reais objetivos tutelados pela Constituição Federal. Ao mesmo tempo, o legislador também se mostrou omisso, por não inserir alguns crimes apenados com detenção cujo esclarecimento reclama de prova obtida por interceptação telefônica, como no caso de ameaça ou injúria por meio de telefone, onde geralmente só existe a palavra da vítima.

 

Raúl Cervini, ao analisar a Lei 9.296/96, já pronuncia críticas ao inciso III, ministrando que “De acuerdo al elevado espectro de penas existente em el derecho positivo brasileño este quantum habilita a que gran número de delitos – más allá de todo lo razonable – puedan cobijar la admisión judicial este tipo de prueba “especial”, hasta el mero hurto simple habilitaria su aplicación. Em tal sentido, la normativa brasileña aparece como bastante permissiva y este es uno de los poços aspectos criticables de su texto” (6).

 

Neste norte, com respaldo aos ensinamentos do já citado Lenio Streck (7), a finalidade precípua da interceptação telefônica deveria ser acometida aos delitos da pós-modernidade, representadas por crimes do tipo colarinho branco, sonegação de imposto, corrupção, a não àqueles, que embora sejam apenados com reclusão, tenham inexpressiva capacidade ofensiva, como o furto, estelionato e apropriação indébita. E neste sentido, é que o acatado professor oferta o seguinte escólio (8):

 

No sopesamento entre os diversos bens jurídicos, pecou o Poder Legislativo em não impor um sacrifício maior aos bens – e conseqüentemente aos crimes cometidos contra estes – pertinentes à defesa da ordem econômico-social, cultural e ambiental, todos hierarquicamente superiores, em um Estado de Direito Democrático, aos tradicionais crimes contra o patrimônio. Não é crível considerar, diante dos princípios e valores constitucionais que asseguram o direito à intimidade, que a proporcionalidade diferida pelo Poder Constituinte ao Poder Legislativo ordinário contivesse o objetivo de permitir o sacrifício de um direito fundamental, trocando sua intangibilidade pela possibilidade de, mediante escuta telefônica, investigar um crime de estelionato ou de um furto, ou quiçá, de uma receptação! Daí a necessidade de se recorrer a instrumentos como o da interpretação conforme a Constituição e o da nulidade parcial sem redução de texto”.

 

Posto isto, é forçoso concluir que as interceptações telefônicas somente deveriam ser concedidas com relação aos delitos que coloquem em risco à vida, à integridade física ou aqueles crimes que afrontem o Estado Democrático de Direito, posto que é um disparate invadir a esfera da intimidade de um indivíduo por infração penal de irrelevante valor social. Por outro vértice, observa-se que o Poder Legislativo pecou por não incluir determinados delitos, como o ilícito de ameaça cometido por intermédio de um aparelho telefônico, que por seu feitio só poderia ser comprovado através da citada medida. Diga-se o mesmo para os crimes contra a honra, também punidos com detenção, abarcando a injúria, difamação e a calúnia.

 

Desta forma, com base no enunciado do artigo 2º, III, da Lei 9.296/96, verifica-se que o legislador empregou essa invasão ao sigilo telefônico como regra, e sua inadmissibilidade como exceção. Com isto, resulta claro que os pólos foram invertidos, posto a Constituição Federal prega justamente o contrário, ou seja, coloca a interceptação como exceção, e sua inviolabilidade como regra, como pode ser observado na leitura do artigo 5º, XII, da Carta Maior. Destarte, resta evidente que os direitos fundamentais foram burlados e repugnados.

 

Daí emana a lição de Antonio Magalhães Gomes Filho (9), para quem o inciso III, do artigo 2º, da Lei em exame, molesta o princípio da proporcionalidade, observando que “longe de atender à natureza excepcional da previsão contida na parte final do art. 5º, inciso XII, da CF, a nova lei conferiu-lhe amplitude suficiente para propiciar o virtual aniquilamento do direito à intimidade assegurado pela cláusula constitucional. Com isso, torna-se cada vez mais evidente a distância entre o modelo garantista de processo penal esboçado pelo constituinte e a realidade legislativa”.

 

O mesmo autor, ao dissertar o tema junto com Ada Pellegrini e Antônio Scarance Fernandes, traz à colação a seguinte lição (10):

Consideramos inconstitucional a postura do legislador brasileiro. Os sistemas modernos, incluindo o brasileiro, adotam (expressa ou implicitamente) o princípio da proporcionalidade, segundo o qual uma lei restritiva, mesmo quando adequada e necessária, pode ser inconstitucional quando adote cargas coativas desmedidas, desajustadas, excessivas ou desproporcionais em relação aos resultados.

 

 

Ante os argumentos expostos, e considerando o disposto na Constituição Federal, que confere a inviolabilidade do sigilo telefônico como uma regra, e sua quebra como exceção, verifica-se a necessidade de se analisar tal medida com extrema cautela.

 

O magistrado, portanto, quando for apreciar qualquer caso que vislumbre à quebra do sigilo telefônico, deverá ser extremamente diligente, sempre respeitando o texto constitucional. Assim, verificando que o delito investigado não possua grande potencialidade ofensiva, não se deve autorizar tal violação, sob o risco de infringir um princípio constitucional, que para o insigne doutrinador Celso Antônio Bandeira de Mello “é a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, por que representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra” (11).

 

Destarte, tendo em vista que a interceptação telefônica é uma medida excepcional, haja vista que transgride a intimidade do indivíduo, torna-se indispensável interpretar a Lei 9.296/96 em harmonia com as normas e princípios constitucionais. Deve haver, portanto, um equilíbrio entre os direitos fundamentais e a violação à intimidade do cidadão, pois embora o Estado seja o protetor da sociedade, não pode violar direitos individuais. Sendo assim, é preciso analisar a interceptação com máxima cautela, para que assim possa-se poupar uma verdadeira devassa à vida íntima das pessoas.

 

 

                                               NOTAS

 

1.  MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 81.

 

2.   Neste sentido, ver as seguintes decisões: HC 72.588-PB, Rel. Min. Maurício Corrêa, 12 jun. 96 – Informativo STF, Brasília, nº 35, 10 a 14 de jun. 1996; HC 73351-SP – hábeas corpus, Rel. Min. Ilmar Galvão, m.v., j.9 maio 96, Informativo STF nº 30. No mesmo sentido: HC 73.461-SP, Rel. Min. Octávio Galloti, 11 jun. 96.

 

3.  STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. 2.ed.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.17.

 

4.     GRINOVER, Ada Pellegrini et al. As nulidades do processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 186.

 

5.  GOMES, Luiz Flávio. Interceptação telefônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 182.

 

6.   CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p. 61.

 

7.   STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 70/71.

 

8.    STRECK, Lenio Luiz. As interceptações telefônicas e os direitos fundamentais. 2.ed.  Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 139.

 

9.  GOMES FILHO, Antônio Magalhães, A violação do princípio da proporcionalidade pela Lei 9.296/96. Boletim IBCCrim, edição especial nº 45, agosto de 1996, p.14.

 

10.   GRINOVER, Ada Pellegrini et al. As nulidades do processo penal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 184.

 

11.   BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Malheiros, p. 451.