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Sem eficácia

Lei seca apenas transfere local para consumo de bebidas

Por João Campos

Proliferam, Brasil afora, leis municipais ora limitando o horário de funcionamento de bares e restaurantes, ora proibindo a venda de bebida alcoólica neste ou naquele lugar. São alternativas desesperadas de quem já cansou de enfrentar a violência urbana e não se sente protegido pelo Estado, no cumprimento do seu dever constitucional perante o cidadão.

 

São as apelidadas "leis secas", cujo maior paradigma é a famosa lei seca americana que vigorou entre 1920 e 1933 com efeitos nefastos para todos os americanos. A experiência americana ensina que durante a lei seca fizeram-se grandes fortunas com o comércio clandestino de bebidas, o crime organizou-se extraordinariamente, o vício aumentou em escalas impressionantes, milhares morreram pela ingestão de uísque de má qualidade. O fato é que o ano novo após a revogação da lei foi comemorado com maciças doses de álcool e felicidade nunca antes vista na Chicago de Al Capone.

 

Embora se deva reconhecer que a sociedade está ansiosa de qualquer iniciativa que ao menos acene com a diminuição da violência em nossas ruas e que uma lei seca municipal é melhor do que nada, a verdade é que notamos uma certa miopia governamental no trato desse assunto tão sério para todos.

 

Todos gostam de apontar que onde uma lei seca foi adotada as ocorrências policiais diminuíram tanto e tanto. Mas, que pesquisa é essa? Será que foram computados os casos de brigas entre vizinhos motivadas por alguns litros de álcool, pelo latido do cachorro, pelos decibéis a mais de um aparelho de som, por uma pipa ou uma bola que atravessou o muro da casa ao lado?

 

O que dizer das mulheres e das crianças espancadas ao fim de um domingo de macarronada com frango regada a cerveja? Ou daquela pancadaria no encerramento de uma partida de futebol? A quem estamos pretendendo enganar quando dizemos "você não poderá beber entre as 23 horas e duas da manhã", "neste ou naquele bar", mas poderá se emborrachar em sua casa, diante de seus filhos, sob os protestos de sua mulher?

 

E os bares bacaninhas, com seus seguranças internos e externos, onde gente de fino trato bebe até as tantas e tampas e, no fim da noite, saem esmagando crânios e amputando vidas com seus Mercedes e Jaguares? Quem vai interferir no "saudável" hábito etílico das elites? E o isopor nos porta-malas? E as garrafas de conhaque, gim e uísque comprados nas conveniências, nos supermercados e levados para os ambientes domésticos?

 

Fato inquestionável: para cada dez trabalhadores ou bebuns retardatários que uma lei seca possa inibir, centenas de milhares de jovens e adolescentes são apresentados ao álcool por eficientes campanhas como "Experimenta!" e "…ela merece" uma certa cerveja. E não adianta colocar um bermudão para acompanhar o "experimenta" do locutor pois o que todo mundo vê (e lembra) é a cerveja que está no anúncio.

 

Infelizmente, a bebida não é mais o nosso maior problema. Nas festinhas de embalo e nas boates os jovens já usam colírios alucinógenos e ecstasy em gota (inodoro, incolor e insípido) que, em segundos, atingem o cérebro como um tiro de 38. Uma gota desse aditivo em um simples copo de guaraná gera uma noite de trevas e de confusão mental sem que o consumidor involuntário perceba.

 

Os bares atingidos por uma lei seca vai reduzir a jornada de trabalho de alguns empregados. Quem vai pagar a conta? Afinal, vender bebida é uma atividade lícita no Brasil. Tanto assim que somos bastante permissivos com esse grande negócio e sua publicidade.

 

Fato indiscutível: o maior sócio dos fabricantes de bebida é o governo, que ganha uma fortuna em tributos sobre cada garrafa de bebida colocada no mercado.

 

Fato vergonhoso: e se é verdade que 90% dos acidentes graves são atribuídos ao uso de bebida alcoólica, pela mesma razão acima, o governo é sócio majoritário nessa estatística, em que se trocam vidas por arrecadação de impostos.

 

Enfim, a tal lei seca, seja em que cidade venha a ser adotada, tal como no exemplo americano, vai apenas transferir a violência dos bares para as residências, os comerciantes de bebidas vão encontrar um meio de vender mais (tudo o que é proibido é mais caro e rentável), autoridades vão fazer propaganda de si mesmos para as próximas eleições com suas estatísticas mentirosas, o crime organizado vai se organizar mais ainda e nós, as vítimas de sempre, sairemos perdendo de uma forma ou de outra. É preciso parar de enganar o povo brasileiro.

 

Revista Consultor Jurídico, 2 de novembro de 2003.