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O
contexto social
Até há pouco, muito
pouco, não se podia falar em cidadania feminina. Só em 1932 passou a existir o
voto feminino, e, até 1962, as mulheres, ao casarem, tornavam-se relativamente
capazes, sendo assistidas pelo marido para os atos da vida civil, e
necessitavam de sua autorização para trabalhar.
A legislação retratava o
perfil da sociedade da época. Ao homem cabia o espaço público e à mulher, o
privado, nos limites da família e do lar, a ensejar a formação de dois mundos:
um de dominação, externo, produtor, o outro de submissão, interno e reprodutor.
A essa distinção estão associados os papéis ideais de homens e mulheres: ele provendo
a família e ela cuidando do lar, cada
um desempenhando a sua função.
Esse era o modelo de família considerada a célula mater da sociedade. Uma
verdadeira instituição que se formava pelos sagrados laços do matrimônio, face
à forte influência religiosa, que vê o casamento como um sacramento. Em
decorrência da estrutura rural vigente, a família tinha uma formação extensiva,
com numerosa prole, formando uma verdadeira unidade de produção, constituindo
filhos, parentes e agregados mão-de-obra barata para o desempenho das
atividades agropastoris. O patriarca era a figura central, quem tomava as
decisões e administrava o patrimônio. Não havia o reconhecimento de relações
fora do casamento, e a família matrimonializada identificava-se como entidade
patrimonializada. Sua mais aparente característica era a hierarquização, com um
viés patriarcal, que outorgava ao homem um papel paternalista de mando e poder,
exigindo uma postura de submissão da mulher e dos filhos.
Esse modelo
familiar veio a sofrer mutações a partir da Revolução Industrial, quando as
mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho. Também as guerras, que levaram
os homens ao fronte ou à morte, abriram espaço para a atividade laborativa
feminina, principalmente para as tarefas terciárias e repetitivas. Tal inserção
alijou o homem de algumas profissões, que passaram a ser identificadas como
femininas, perdendo ditas atividades o prestígio social com conseqüente
achatamento remuneratório.
As lutas
emancipatórias levaram a mulher a descobrir o direito à liberdade, passando a
almejar a igualdade e a questionar a discriminação de que sempre foi alvo. As
ativistas, que passaram a ser chamadas de feministas, foram identificadas como
lésbicas ou como mulheres feias e mal-amadas, que odiavam os homens e queriam
seu lugar. O medo da identificação com esse estereótipo gerou tal carga de
aversão a essa expressão, que foi repudiada pelas próprias mulheres e acabou
por marginalizar o movimento até os dias de hoje.
De outro lado, a
emergente evolução dos costumes, somada ao surgimento de métodos
contraceptivos, levou à descoberta do prazer feminino, deixando a mulher de ser
refém do medo da gravidez.
Essas mudanças
forjaram o que Norberto Bobbio - o maior filósofo contemporâneo - identificou
como a maior revolução do século: a revolução feminina.
Os reflexos dessas
alterações de paradigma acabaram refletindo-se na própria composição do núcleo
familiar, que se tornou nuclear. Passou a mulher a participar, com o fruto de
seu trabalho, da mantença da família, o que lhe conferiu certa independência,
começando a cobrar uma maior participação do homem no ambiente doméstico,
impondo a ele a necessidade de assumir responsabilidades dentro de casa e
partilhar do cuidado com os filhos.
No entanto, ainda é
forte a resistência aos novos papéis. Tolera-se com mais facilidade a
profissionalização feminina, até por fatores econômicos, assim como, de forma
ainda tímida, sua participação nas esferas do poder. Maior é o preconceito no
que diz com as modificações do desempenho feminino que ponham em risco a
moralidade da família.
A mulher, saindo do gueto familiar e da
“proteção do lar”, adentrou no mercado de trabalho, afastando-se do paradigma
masculino, no qual não ocupava nenhum espaço, e redefiniu, no contexto atual, o
modelo ideal de família.
Paradigma legal
A Constituição Federal buscou resgatar a
igualdade, cânone da democracia desde a Revolução Francesa e linha mestra da
Declaração dos Direitos Humanos. O igualitarismo formal que vem decantado
enfaticamente na Carta Política em duas oportunidades - arts. 5º, inc. I, e
226, § 5º - não basta, por si só, para se alcançar a absoluta equivalência
social e jurídica de homens e mulheres. O legislador foi até repetitivo ao
consagrar a plena isonomia de direitos e obrigações entre o homem e a mulher,
varrendo do sistema jurídico todo e qualquer dispositivo legal que, mesmo com
aparente feição protecionista, acabava por colocar a mulher num plano de
subordinação e inferioridade. Assim, não mais é o marido o cabeça-do-casal, o representante
legal da família, nem o único responsável para prover o seu sustento.
Mesmo que não mais se justifique a
permanência desses dispositivos nos textos legislativos, ainda não houve a
devida atualização.
O simples estabelecimento do princípio da igualdade
não logrou eliminar as diferenciações existentes. A igualdade formal -
igualdade de todos perante a lei - não conflita com o princípio da igualdade
material, que é o direito à equiparação por meio da redução das diferenças
sociais. Nítida a intenção do novo sistema jurídico de consagrar a máxima
aristotélica de que o princípio da igualdade consiste em tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que eles se desigualam.
A necessidade de obediência ao preceito
constitucional não pode ver como infringência ao princípio da isonomia a adoção
de posturas que gerem normas jurídicas e decisões judiciais protetivas, que,
atentando na realidade, visam a propiciar o equilíbrio para assegurar o direito
à igualdade.
Reflexos
jurídicos
O Poder Judiciário ainda
é uma das instituições mais conservadoras e sempre manteve uma posição
discriminatória nas questões de gênero, com uma visão estereotipada da mulher,
exigindo-lhe uma atitude de recato e impondo-lhe uma situação de dependência.
Ainda se vislumbra nos julgados uma tendência perigosamente protecionista e que
dispõe de uma dupla moral. Em alguns temas, vê-se com bastante clareza que, ao
ser feita uma avaliação comportamental dentro de requisitos de adequação a
determinados papéis sociais, é desconsiderada a liberdade da mulher.
Os processos envolvendo relações familiares
são os em que mais se detecta que a profunda evolução social e legislativa
ocorrida nos últimos tempos não bastou para alterar o discurso dos juízes.
A guarda dos filhos é
outorgada ao cônjuge inocente, uma vez que a noção de inocência e culpa foi
guindada pelo legislador quase como um prêmio ou recompensa. Inúmeros julgados,
porém, estabelecem uma certa confusão entre a vida da mulher e sua capacidade
de ser boa mãe, desconsiderando aspectos econômicos, afetivos e culturais para
o pleno desenvolvimento dos filhos. Olvida-se o interesse do menor de gozar das
melhores condições possíveis, sem qualquer correlação com o exercício da
sexualidade da mãe.
No que diz respeito ao
nome, que tem uma conotação simbólica, ligado ao direito de personalidade,
também há um colorido dominador. O Código Civil determinava a assunção pela
mulher dos apelidos do marido, quando do casamento, nome que perdia ao ser
condenada na ação de desquite. Pela Lei do Divórcio, o acréscimo do nome de
família do cônjuge tornou-se facultativo, sendo da mulher a opção de continuar
a usar o nome de casada quando da separação judicial. Contudo, mesmo havendo
consenso de ambos, não vem sendo admitido, quando do divórcio, que continue ela
a usar o patronímico do varão, como a impor-se uma apenação. Olvida-se que a
escolha do nome é um direito de personalidade da mulher, não podendo haver a
interferência nem do juiz nem do ex-cônjuge ao seu direito de optar.
Quanto à pensão
alimentícia, o Código Civil, com nítido perfil patriarcal, impunha ao homem a
manutenção da família, só merecendo alimentos a mulher inocente e pobre,
cessando o dever de sustento no caso de abandono do lar sem justo motivo. Ainda
que, desde a Lei do Divórcio, haja reciprocidade obrigacional, continua a
jurisprudência centrando sua preocupação, não na necessidade, mas na conduta da
mulher, guindando a honestidade como condição para obter o pensionamento. A
concessão de alimentos é condicionada direta e exclusivamente à adoção de uma
vida celibatária, como se a castidade integrasse o suporte fático do direito,
sem atentar em que a vida sexual ou afetiva é área de indevassável intimidade.
Também no campo do
Direito Penal, nítido o tratamento desigualitário decorrente do sexo do réu.
Principalmente nas situações de violência familiar, existe a falsa idéia de que
as relações privadas estão fora do âmbito de intervenção do Judiciário.
Deixa-se de atentar na enorme dificuldade da vítima em veicular a queixa: por
medo, por não ter aonde ir, por vergonha de não ser acreditada. Tal leva,
muitas vezes, à tentativa de “retirar o processo” ou de encobrir a verdade,
alegando ocorrência de autolesões, ensejando que tanto a polícia como o agente
do Ministério Público e o próprio juiz desestimulem a instauração da ação
penal. Também a absolvição do agressor acaba sendo proclamada, não por ausência
de culpabilidade, mas como meio de preservar a entidade familiar.
Ao depois, não é apreciado tão-só o agir do
agressor no momento do crime, investigando-se mais a vida dos protagonistas
como elemento decisivo para o resultado do processo. Se o varão corresponde ao
papel ideal de bom pai de família, e se a mulher não é uma fiel dona-de-casa,
seguramente o seu agressor será absolvido. Só são condenados maridos ou
companheiros que têm evidência de alcoolismo, vício em drogas, um passado de
abuso doméstico ou estão desempregados. O perfil dos absolvidos é o oposto:
réus primários, trabalhadores, carinhosos e bons maridos.
A Justiça tem uma certa
condescendência para com os réus, sempre entrando em linha de questionamento a
atitude da vítima, como sendo o móvel dos fatos. Perquirir-se a moral da mulher
- conceito sempre ligado ao exercício de sua sexualidade - pode levar,
surpreendentemente, ao reconhecimento de que foi ela que provocou o crime,
sendo culpada pela própria sorte.
Essas situações,
pinçadas como mera amostragem, não permitem negar, frente a tal panorama, que
as mulheres são vítimas nos tribunais brasileiros, já que os processos sofrem
influência de normas sociais permeadas de preconceitos de gênero. Há a
necessidade de uma profunda reflexão, para que se aparem diferenças que não têm
mais sentido na sociedade atual. Os operadores do Direito precisam atentar em
que não pode persistir essa injustificável diferenciação de gênero, fazendo-se
imperioso eliminar qualquer resquício de discriminação contra a mulher. É
mister uma revisão crítica e uma nova avaliação valorativa do fenômeno social,
para que se alcance a perfeita igualdade.
Ressalta Sílvia Pimentel, na obra que
visualiza o Direito sob a ótica das relações de gênero, que a mulher é julgada
tomando por parâmetro o comportamento-padrão. Na argumentação judicial, é
geralmente definida mediante adjetivos como: inocência da mulher, honestidade, conduta desgarrada, vida dissoluta,
expressões todas elas ligadas exclusivamente ao seu comportamento sexual,
adjetivação, no entanto, não usada como referencial na análise do comportamento
masculino.[1][1]
As mulheres na Justiça
Ainda nenhuma mulher
teve assento no Supremo Tribunal Federal, e recente a presença da primeira no
Superior Tribunal de Justiça. Mesmo que já despontem mulheres nos Tribunais
Estaduais, não se pode endossar a assertiva do Ministro Sepúlveda Pertence,
enquanto Presidente do Supremo Tribunal Federal, de que está superado
definitivamente o preconceito dos tribunais contra a mulher juíza.[2][2]
Apesar de persistir
forte a discriminação contra a mulher na órbita do Judiciário, crescente sua
participação no primeiro grau de jurisdição, em que o ingresso depende de
concurso público, quando é mensurada sua capacidade e competência. Mais
rarefeita a presença feminina nos tribunais, cujo acesso está condicionado a
promoção por critério de merecimento ou por decisão política.
Ainda assim, não só na magistratura, mas em
todas as carreiras jurídicas, marcante a mudança, podendo-se afirmar que está
ocorrendo uma verdadeira feminização da própria Justiça.
Como recente é a presença das mulheres no poder,
normalmente não gozam da mesma credibilidade de seus pares. São alvo de
referências que dizem mais com seus atributos pessoais do que com seu
desempenho profissional. Como toda novidade, despertam mais a atenção,
correspondendo sua imagem a verdadeiros totens. Por isso, acabam recebendo
rótulos: como mais severas ou mais condescendentes que os juízes, ou ainda são
apontadas como adequadas ou não para jurisdicionar determinadas varas. Essa
estratificação dicotômica decorre de percepções freqüentemente inconscientes e
que registram um conteúdo discriminatório, pois atitudes por vezes
não-relevantes ficam mais visíveis e são potencializadas de forma
generalizante.
Uma maior compreensão da
feminilidade é que permitirá identificar grande parte dos conflitos e atender
às reivindicações femininas, tarefa essa que necessita ser assumida pela ala
das mulheres, tanto juristas, como magistradas, promotoras ou advogadas. Se à mulher é possível ser o primeiro agente
de sua condição, também se seduz às vezes pelo poder opressor, identificando-se
com as figuras às quais percebeu até então como dominadoras.[3][3]
Indispensável se faz perquirir se
a inserção das mulheres nas carreiras jurídicas afeta o contexto das decisões
judiciais, passando elas a exercer o papel de agentes modificadoras do
conservador modelo vigorante.
Denise Bruno, ao discorrer sobre
Mulheres e Direito[4][4], concluiu: por se sentirem incapazes de confrontar o padrão patriarcal, por não
terem consciência do mesmo, ou por não estarem dispostas a arcarem com as
conseqüências de romper com as
expectativas patriarcais sobre as mulheres, as juízas, apesar de terem
consciência da necessidade de mudanças, não rompem com os códigos e padrões
legais vigentes.
Ainda predomina o protótipo masculino, como
sinônimo de êxito, como o único aceitável. Para Rose Mari Muraro, são as
“mulheres de bigode” que confundem facilmente eficiência com virilidade e
atividade criativa com masculino.
Não basta o aumento do número de magistradas
para que determinados padrões de comportamento sejam alterados, com o
estabelecimento da igualdade, o fim da discriminação e a eliminação da
violência contra a mulher. Necessário, em um primeiro momento, desmistificar a
idéia sacralizada da família. Considerada como a responsável pela organização
social, em que se desenvolve o senso de justiça e cidadania, estrutura-se, no
entanto, de forma hierarquizada, tão-só pela diferença dos sexos, restando à
mulher sempre um papel de subordinação.
Descabe persistir essa visão idealizada, cuja
preservação é de ser mantida ainda que o custo seja a integridade física da
mulher e, muitas vezes, dos filhos.
Necessário olhar a mulher em relação ao
Direito, a partir do conceito de gênero, não como sexo biológico, mas como as
diversidades biológicas se expressam em determinadas relações sociais. As
diferenças entre homens e mulheres, decorrentes de toda uma conjuntura social e
cultural, acabaram por colocá-los em dois mundos, a ponto de serem tidos como
sexos opostos, e não compostos, complementares. Essa divergência posicional,
que levou à diferenciação de papéis assumidos, com certeza estruturou
diferentemente cada um de seus protagonistas. No momento em que a mulher
adentrou na esfera pública, não deixou de trazer sua bagagem acumulada em
decorrência de suas funções privadas, havendo indiscutivelmente a reconhecer
como enriquecedora uma convivência harmônica e igualitária entre ambos.
A partir dos estudos de Carl Gilligan[5][5], que busca fundamentos em
teorias psicológicas e psicanalíticas, constatou-se que as mulheres têm
preceitos morais diversos dos preceitos masculinos. Enquanto os homens decidem
a partir da noção do Direito como uma norma abstrata, as mulheres, por serem
responsáveis pela preservação do sofrimento, são guiadas por uma noção de ética
da responsabilidade, dispensando mais atenção aos efeitos concretos das
decisões. Tal constitui a “voz diferente” das mulheres, que acaba por alterar o
contexto das decisões judiciais.
Não
mais se pode dizer que Judiciário é um substantivo masculino, devendo-se ter
sempre presente que Themis, a Deusa da Justiça, é uma mulher.
[6][1] Pimentel, Di Giorgi e Piovesan,
A Figura/Personagem Mulher em Processos de Família. Porto Alegre: Fabris,
1993, p. 141.
[7][2] entrevista publicada no Jornal
Folha de São Paulo em 16/11/1996,
Cotidiano, p. 3.
[8][3] SOUZA, Ivone Coelho de.
Conflitos da Mulher - a Responsabilidade. Jornal Mulher, nº 4 de agosto de
1995, p. 16.
[9][4] I Encontro de Magistradas do
Paraná que ocorreu em Foz do Iguaçu em novembro de 1996.
[10][5] Conferência citada.
(Artigo publicado no Cadernos Themis – Gênero
e Direito – ano II – nº 2 - Porto Alegre – RS, setembro de 2002,