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Uma análise do substitutivo ao projeto de lei sobre crimes digitais

Vladimir Aras


Em 26 de novembro de 2002, o deputado Nelson Pellegrino (PT/BA), relator da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Violência e Narcotráfico da Câmara dos Deputados apresentou parecer pela aprovação do projeto de lei n° 84/99, e dos projetos n° 2.557/2000, 2.558/2000 e 3.796/2000. O relator apresentou também na referida comissão substitutivo ao PL n. 84/99, para que as alterações preconizadas na legislação brasileira, em torno dos delitos informáticos, sejam introduzidas no próprio Código Penal, e não em lei extravagante, como pretende o deputado Luiz Piauhylino Filho, autor da proposta original.

No seu substitutivo, o deputado Nelson Pellegrino sugeriu a inserção de cinco novos tipos no Código Penal, dois deles categorizados como infrações penais de menor potencial ofensivo (artigos 154-A e 154-B) e, portanto, de competência dos Juizados Especiais Criminais, regulados pelas Leis n. 9.099/95 e 10.259/2001, especialmente pelo artigo 2º, parágrafo único, desta última. Seguem a regra geral o crime de difusão de vírus eletrônico, que será da competência do juízo comum, estadual ou federal, conforme o caso (artigo 109, da Constituição), o delito de pornografia infantil (artigo 218-A e §1º) e o crime de falsificação de telefone celular ou meio de acesso a sistema eletrônico.

O primeiro dos novos tipos é o de “acesso indevido a meio eletrônico” (artigo 154-A), punindo com pena de detenção de três meses a um ano, e multa. Trata-se do crime de hacking, que será de ação penal pública condicionada, salvo quando cometido contra a União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista. Seria conveniente que se fizesse menção expressa às autarquias e fundações públicas, a fim de evitar controvérsias a respeito de tipicidade nestes casos. No §1º há uma conduta equiparada à do caput, no caso de favorecimento ao hacking. A competência para o processo e julgamento do crime será dos Juizados Especiais Criminais.

A “manipulação indevida de informação eletrônica” pode passar a ser prevista, como infração penal, no artigo 154-B do Código Penal, com penas de detenção de seis meses a um ano, e multa. Não se abordou a questão dos dados pessoais, principalmente os sensíveis, que merecem uma maior proteção. O delito também será de ação pública condicionada à representação. Convola-se em crime de ação pública incondicionada nas mesmas situações que o tipo do artigo 154-A. A competência também será dos Juizados Especiais. A redação é de certo modo confusa, podendo ser aperfeiçoada. No §1º, que padece do mesmo defeito, há uma conduta equiparada à do caput, como sendo a de “transportar” ilicitamente (melhor seria “transmitir” e “transferir”) dado ou informação eletrônica para qualquer outro meio ou sistema.

O crime de inoculação de vírus de computador (“difusão de vírus eletrônico”), terceira inovação típica, estará previsto no §3º do artigo 163, englobando todos as espécies de malicious codes (vírus, worms e cavalos-de-Tróia) e certos casos de denial of service. Este crime será em regra de ação penal pública incondicionada, mas dependerá de queixa-crime quando “o dado ou informação não tiver potencial de propagação ou alastramento”. A pena será a do §1º, já existente para a modalidade qualificada do dano: seis meses a três anos de detenção, e multa. Será possível a suspensão condicional do processo penal, por proposta do Ministério Público (artigo 89, da Lei n. 9.099/95), mas o crime ficará sob a competência do juízo comum, pelo procedimento sumário, relativo aos delitos apenados com detenção.

Com a introdução de §2º ao artigo 163 do Código Penal (crime de dano), serão equiparados ao conceito de “coisa” tanto “o dado, a informação ou a base de dados presente em meio eletrônico ou sistema informatizado” quanto a “senha ou qualquer meio de identificação que permita o acesso a meio eletrônico ou sistema informatizado” (art. 163, §2º, I e II). Com isso, poderão se encerrar as discussões a respeito da natureza jurídica dos dados informáticos.

No capítulo do Código Penal atinente aos crimes contra os costumes, o substitutivo propõe a inserção do artigo 218-A, para tipificar o delito de “pornografia infantil” (quarta inovação), punindo com penas de um a quatro anos de reclusão, e multa, quem “fotografar, publicar ou divulgar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente”. A redação do dispositivo é semelhante à do artigo 241 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que será revogado (artigo 10 do projeto), mas avança por introduzir a este tipo de conduta múltipla a ação de “divulgar” pornografia infantil, bem como por tornar indiferente o meio da prática criminosa, com a expressão “por qualquer meio”, ausente do ECA. A sanção permanecerá a mesma, não se alterando também a natureza pública incondicionada da ação penal. Todavia, o §1º do novo artigo proposto prevê uma forma qualificada, que determina o aumento da pena de metade até dois terços, “se o crime é cometido por meio de rede de computadores ou outro meio de alta propagação”.

O crime de pornografia infantil (artigo 218-A do CP) será de competência do juízo comum, podendo haver, como hoje (artigo 241 do ECA), proposta de suspensão condicional do processo em relação à figura do caput. A forma qualificada, aquela cometida pela Internet ou por meio equivalente, não admitirá o instituto do artigo 89 da Lei n° 9.099/95, pois a pena mínima, abstratamente cominada ao tipo (artigo 218-A, c/c o §1º), superará o limite de um ano, estabelecido para a obtenção do sursis processual. Entendemos que a gravidade do problema da pornografia infantil on-line autoriza essa solução mais rigorosa.

O quinto novo tipo preconizado no substitutivo do deputado Nelson Pellegrino é o de “falsificação de telefone celular ou meio de acesso a sistema eletrônico” (artigo 298-A), colocado no capítulo atinente à falsidade documental (crimes contra a fé pública), com penas de um a cinco anos de reclusão, e multa. Aqui as condutas consideradas são o phreaking e comportamentos ilícitos correlatos, inclusive delitos de uso clandestino de mídias eletrônicas. A competência será do juízo comum, com possibilidade de sursis processual.

Dois outros tipos penais mereceram proposta de nova redação, para adequação às necessidades de combate à cibercriminalidade. Ambos são e continuarão a ser (caso aprovado o substitutivo) de competência do juízo comum e sujeitos a suspensão condicional do processo. Com efeito, o artigo 265 do Código Penal, de “atentado contra a segurança de serviço de utilidade pública”, com penas de um a cinco anos de reclusão e multa, poderá vir a ser alterado simplesmente para inserir no caput, como objeto material da conduta, os serviços de telecomunicação. A modificação é despicienda, pois entre os serviços de utilidade pública já estão os de telecomunicação.

No tocante ao artigo 266 do Estatuto Repressivo, a alteração alvitrada é mais apropriada, embora proponha-se tão-somente a inclusão do mesmo objeto material, “serviço de telecomunicação”, ao rol ali existente. Cremos que este dispositivo poderá ensejar conflito com a última conduta da parte final do artigo 163, §3º, sugerido pelo substitutivo, em relação aos ataques da espécie denial of service - DoS, quando atinjam sistemas informáticos de prestadores de serviços de telecomunicação. Entretanto, o conflito será apenas aparente, bastando, para a sua solução, o emprego do princípio da especialidade. A pena cominada será de um a três anos de reclusão, e multa, não havendo, neste passo, qualquer alteração.

O parecer propôs também definições legais para “meio eletrônico” e “sistema informatizado” (melhor seria “sistema informático”). Entende-se por meio eletrônico, “o computador, o processador de dados, o disquete, o CD-Rom ou qualquer outro meio capaz de armazenar ou transmitir dados magnética, óptica ou eletronicamente”. A definição merece crítica por não respeitar, às inteiras, o princípio da neutralidade tecnológica. Já o “sistema informatizado” é “a rede de computadores, a base de dados, o programa de computador ou qualquer outro sistema capaz de armazenar ou transmitir dados eletronicamente”.

Por sua vez, pelo projeto, o artigo 298 do Código Penal, que cuida do crime de falsificação de documento particular, passará a ter um parágrafo único, para equiparar a documento particular o cartão de crédito ou de débito. Com isso, surge uma modalidade especial do crime tradicional de falsidade documental, com penas de um a cinco anos de reclusão, e multa, idêntica à do caput. A competência permanecerá no juízo comum, com possibilidade de sursis processual.

Infelizmente, a única alteração proposta pelo substitutivo em relação às leis processuais penais é a que introduz um novo parágrafo ao artigo 2º da Lei n. 9.296/96, que cuida da interceptação de comunicações telefônicas e telemáticas. Outras alterações necessárias, especialmente no Código de Processo Penal, foram deixadas de lado. O §1º do artigo 2º da Lei Federal n. 9.296, de 1996 passará a prever que o disposto no inciso III do caput não se aplicará “quando se tratar de interceptação do fluxo de comunicações em sistema de informática ou telemática”.

A alteração é essencial para a investigação de crimes de informática, tendo em vista que o referido inciso III veda a interceptação para os crimes apenados com detenção. Ou seja, hoje só admite a escuta telefônica ou telemática quando o fato investigado é tipificado como infração sujeita a pena de reclusão (artigo 2º, inciso III, da Lei n. 9.296/96). Se aprovado o projeto, a vedação persistirá apenas em relação às comunicações telefônicas, ao passo que em qualquer crime informático (próprio ou impróprio), apenado com reclusão ou detenção, será possível a interceptação.

Quanto ao artigo 11 do substitutivo, que determina vigência imediata das novas disposições, pensamos que é conveniente estabelecer um prazo de vacatio legis razoável, a fim de permitir a adequação dos operadores ao novo sistema. Noventa dias seria um período adequado. Neste aspecto, não se podem olvidar as recomendações do artigo 8º da Lei Complementar Federal n. 95/98: “A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula ‘entra em vigor na data de sua publicação’ para as leis de pequena repercussão”.

Concluindo esta breve análise, não se pode deixar de lamentar a perda de oportunidade para uma regulamentação mais abrangente da cibercriminalidade, enfocando não só o direito material, mas também o direito processual. Como quer que seja, o projeto do deputado Luiz Piauhylino Filho, com os substitutivos dos deputados Leo Alcântara e Nelson Pellegrino, é uma das iniciativas de melhor qualidade em curso no Congresso Nacional. Espera-se que o projeto (ou outro que o venha substituir) seja acolhido em breve no plenário da Câmara dos Deputados e pelas comissões que o analisarão no Senado. Espera-se também que possam ser acrescidas inovações, corrigidos os pequenos equívocos existentes e supridas as omissões, a fim de que o ordenamento jurídico nacional venha a fazer frente à ameaça cibernética. A melhor maneira de fazê-lo é, sem dúvida, aproveitando o paradigma da Convenção contra a Cibercriminalidade do Conselho da Europa - CoE. Com efeito, a chamada Convenção de Budapeste, de 2001, encarta um modelo cibercriminal completo, englobando tipos penais, medidas processuais e mecanismos de cooperação internacional muito específicos. Neste particular, a legislação portuguesa, em especial a Lei n. 109/91 (Lei de Criminalidade Informática) e a Lei n. 67/98 (Lei de Proteção a Dados Pessoais), também podem servir de inspiração ao legislador brasileiro.

Vladimir Aras é promotor de Justiça na Bahia, pós-graduado em Direito (concentração em Direito da Internet) pela UFPE e mestrando em Direito Público pela mesma universidade, com dissertação sobre a Convenção contra a Criminalidade do Conselho da Europa, concluída em 2001, em Budapeste.