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A Regulamentação da Internet
Omar Kaminski
(*)
Como teremos melhor controle do
ciberespaço, se não existe nenhum governo exercendo um efetivo controle? Deve o
ciberespaço ser regulamentado? Como isto pode ser feito?
Hoje, para buscarmos essas soluções, o desafio é conciliar duas abordagens
distintas: a regulamentação e a auto-regulamentação, buscando interfaces que
permitam uma coexistência.
A arquitetura é a lei do ciberespaço - o código (code) - podem tornar, manter
ou transformar um domínio, um site ou uma rede de computadores, de acesso livre
ou de acesso restrito. As arquiteturas tecnológicas podem influenciar, e muito,
o comportamento das pessoas e os valores que por elas são adotados.
O Código é a Lei
Uma crença cultivada por ciber-tecnólogos e cidadãos virtuais de todo o mundo é
que o ciberespaço, por suas características anarquistas e por sua natureza, é
fundamentalmente impossível de ser regulamentado.
O ciberespaço é fundamentalmente diferente do espaço real em um aspecto
crucial: é uma construção inteiramente artificial, construída pelo homem.
Assim, o modo, a maneira que existimos no ciberespaço, tanto as nossas
capacidades como os limites dessa capacidade são artificiais.Conforme o
professor de cyberlaws da Harvard Law School, Lawrence Lessig argüi, o código é
a lei e nós, ou mais especificamente os programadores de computador, somos como
deuses. Seguindo a teoria do code, a mais importante constatação é que a
artificialidade do ciberespaço, com sua latente potencialidade, pode ser passível
de uma regulamentação que beira a perfeição.Seria possível codificar o
ciberespaço de tal modo que tudo e qualquer coisa que nos fizermos no mundo
virtual esteja cuidadosamente circunscrito e limitado ao que os
"donos" do ciberespaço nos permitirem fazer.
Lessig entende que nos devemos pensar em um código do ciberespaço - o software
e o hardware que fazem o ciberespaço ser o que é - como uma espécie de lei.
Este código, como as leis, intimamente fixa certos valores ao ciberespaço; ele
torna possível certas liberdades. O primeiro passo é entender os valores
implícitos em tal espaço, e que em alguns casos devemos defendê-los, e em
outros, nós devemos querer mudá-lo.
Qualquer código pode ser escrito, claro. Mas o código que regula o ciberespaço,
é simplesmente determinado por quem escreveu o programa. O próprio plano
físico, o espaço (e todo e qualquer software utilizado para o acesso à
Internet) é regulado pelo código. Seria o que os programadores chamam de
"código-fonte", as linhas de programação necessárias para tornar
coerente e funcional um programa ou um aplicativo.
A limitação é, teoricamente, aquela imposta pelo programa. A Internet não seria
um colossal volume de informações, contidas em programas e em trânsito? Então,
exemplificando de forma simples, imagine uma página na Internet. Se você clicar
o botão de "sim", será levado para um caminho. Se clicar o botão
"não", será levado para outro. Se clicar em "enviar dados",
os dados que você forneceu serão enviados para determinado servidor. E só serão
enviados se todos os campos estiverem preenchidos, ou se não houver nenhum
erro, e assim por diante. É um tipo de controle pelo código, implícito, sutil,
quase oculto. Os codificadores (e programadores) escolheram que as coisas
deverão ser deste ou daquele modo. Cada e todo espaço virtual tem um código
embutido.
A própria palavra "regulamentação" pode conseqüentemente tomar um
novo rumo. Quando se fala que o código do ciberespaço regula o espaço ou plano
físico, deve-se entender que ele constitui o modo como o espaço ou o plano
físico o são. A liberdade de expressão é protegida hoje porque o ciberespaço
torna difícil rastrear "quem disse o quê". Você é efetivamente livre
porque o propósito atual faz com que seja assim. Ora, não seria bem assim. Poderíamos
questionar se a conduta é regida ou não pelo meio. Mas o código pode forçar
certas condutas, tornando-as obrigatórias. Ou limitar essas condutas,
proibí-las. Os legisladores reais poderiam então, regulamentar o próprio
código, e não mais as situações dele decorrentes.
Mas para um efetivo e justo controle, deve-se entender os valores que a
Internet inicialmente protegeu (liberdade de expressão, anonimato, um certo
degrau de privacidade, direito de associação, etc.) e defendê-los de mudanças
tanto na arquitetura do espaço, ou nas leis que regulam esse espaço.
À primeira vista, pode parecer que os usuários em geral da Internet possuem uma
liberdade desmedida. O ciberespaço tem sido alvo de massivas propostas para
intensificar a proteção dos direitos autorais, e isto poderá remover algumas
liberdades que o espaço neste momento protege. De outro lado, o comércio também
está tendo muita liberdade na Rede. Da maneira com que a Web foi projetada, é
fácil para o comerciante rastrear, seguir e conhecer o comportamento do
consumidor, podendo coletar, gratuitamente, dados sobre o comprador, e esses
dados são recursos valiosos para ele. O código assim permite. Mas isso pode ser
mudado.
Há também uma questão moral envolvida. Todas as atitudes tomadas pelo governo
americano no mundo virtual poderão ter um efeito desproporcional no resto do
mundo, justamente por possuírem uma influência dominante no propósito da
Internet. Quando os Estados Unidos restringem a exportação de tecnologias de
criptografia de dados, tal ato pode reverter-se em um efeito profundo no resto
do mundo. Isto significa que o legislador americano deve ser mais cuidadoso no
sentido de assegurar que as regras impostas por ele na Internet não interfiram
nos direitos de outras nações.
A direção que o ciberespaço está tomando hoje é no sentido de criar uma
situação para acomodar uma codificação e legislação locais. Como o espaço se
apresenta atualmente, torna-se muito difícil para qualquer governo controlar o
que quer que seja nesse ambiente virtual. Isto porque é difícil saber quem vem
de onde, e o que se está fazendo. Mas as tecnologias estão vagarosamente sendo
integradas com o ciberespaço, e poderão tornar mais fácil saber de onde alguém
está vindo e em alguns casos, o que ele ou ela está fazendo. Quando isso
efetivamente acontecer, os governantes locais poderão, então, determinar quais
os comportamentos que podem ser adotados, regulando-os localmente. A
arquitetura ou o código do espaço mudam, e a regulamentação e codificação devem
também sofrer transformações - adaptando-se às características de cada
país.
Portanto, se não houver um mínimo de diligência, acordaremos um dia para
descobrir que a natureza do ciberespaço foi transformada por sobre nós. O
ciberespaço não mais será um local de liberdade (ainda que relativa); em lugar
disso, será um mundo com um controle perfeito onde nossas identidades, ações e
desejos serão monitorados, rastreados e analisados pela mais recente e moderna
ferramenta de pesquisa construída pelo mercado.
O Código como Proteção Tecnológica
A experiência com computadores e o uso diário faz muitas pessoas acreditarem
que qualquer coisa digital é passível de ser copiada - programas de computador,
livros digitais, jornais, música e vídeo. Alguns estudiosos da era digital foram
longe ao proclamar que a facilidade de duplicação de dados anuncia o fim dos
direitos autorais: a informação "quer ser livre," eles insistem. É
impossível demover a disseminação de informações, então tal argumento tem
sentido. Tudo que pode ser reduzido a bits pode ser copiado.
Esta noção provocativa questiona o sonho por detrás da criação da Internet: a
possibilidade de acesso universal em uma era digital, onde o trabalho de
qualquer autor ficará disponível para qualquer um, em qualquer lugar, em qualquer
hora. A experiência de diversas pessoas, porém, não é a de que a Net possui
grandes e valiosos trabalhos, mas sim que é apenas um modo fácil e barato de
coletar informações. Ora, muito o que está lá contido é de baixo ou nenhum
valor comercial.
Mas a raiz do problema é que os autores e editores não podem se manter
distribuindo gratuitamente seu trabalho. A reprodução sem controle moveu a
balança do contrato social entre criadores e consumidores de trabalhos digitais
para a situação de não lançarem seus melhores trabalhos na Internet (e na forma
digital).
Nos bastidores, contudo, a tecnologia está mexendo a balança novamente. De uns
anos para cá, diversas companhias, incluindo a IBM e Xerox, vêm desenvolvendo
programas e dispositivos reais e virtuais - baseados no code - que permitirão a
um editor especificar termos e condições para a aquisição do trabalho digital e
para controlar como ele poderá ser utilizado. Estudiosos acreditam que a
mudança pode resultar tão dramática que os editores, com tamanho poder em mãos,
poderão enfraquecer e limitar os direitos e necessidades de consumidores e
distribuidores.
Apesar disso, as necessidades dos consumidores podem ser atendidas até mesmo se
essa transformação se concretizar. Com a tecnologia trazendo mais segurança,
trabalhos de melhor qualidade irão atingir a Net. Autores conhecidos publicando
seus trabalhos diretamente na World Wide Web. Ainda que a informação possa não
ser gratuita, provavelmente custará menos, devido aos custos menores com
tributos, distribuição e impressão. Esta economia poderá ser repassada ao
consumidor.
A chave para esse implemento tecnológico é o desenvolvimento do que os
cientistas chamam de sistemas confiáveis (trusted systems): hardware e software
levados a seguir certas regras - o direito de utilização, que decorre do code.
Essas regras especificam o custo e uma série de termos e condições através das
quais um trabalho digital pode ser visualizado e utilizado. Em teoria, um
computador confiável, por exemplo, recusaria fazer cópias não-autorizadas,
tocar música ou vídeo para um usuário que não pagou por isso.
Tais sistemas podem adotar diferentes formas, como leitores de livros digitais,
aparelhos para tocar músicas e gravações de vídeo, e servidores que vendem
trabalhos digitais na Internet. Mesmo que as técnicas que tornam um sistema
confiável sejam complexas, o resultado é simples. O editor pode distribuir seu
trabalho - na forma criptografada - de modo que ele possa ser visualizado ou
impresso apenas em determinadas situações. No início, tais dispositivos de
segurança deverão ser acrescidos da mercadoria por um custo adicional, pois
permitirão o acesso a algo de muito mais valor. Eventualmente os custos cairão
à medida que a tecnologia for sendo difundida. Claro, um editor ou artista
ainda poderá optar por disponibilizar gratuitamente alguns de seus trabalhos -
e o sistema confiável permitir a qualquer pessoa o acesso a esses
trabalhos.
Como um sistema confiável saberá quais são as regras? Na Xerox e em qualquer
outro lugar, estudiosos e pesquisadores têm buscado expressar as condições e
custos associados com qualquer trabalho particular, em uma linguagem formal,
que pode ser precisamente interpretada pelos sistemas confiáveis. Como a
linguagem das convenções para direitos de uso é essencial para o comércio
eletrônico, a abrangência das coisas que as pessoas podem ou não podem fazer
deve ser explícita - assim os vendedores e compradores podem negociar e chegar
a um acordo. Os direitos digitais são alvo de diversas condutas, humanas ou
não, como permissão para reprodução, transferência ou empréstimo; impressão,
uso, extração e edição de informações e a inserção em outras publicações; e as
cópias de segurança (backup).
Diferentes trabalhos intelectuais exigem diferentes níveis de segurança. Mas os
sistemas confiáveis permitirão aos editores e divulgadores especificar o nível
de segurança necessário para salvaguardar um documento ou vídeo. A propriedade
digital mais secreta e valiosa deve ser protegida por sistemas que detectem qualquer
tentativa de fraude ou acesso não autorizado, acionando alarmes e até mesmo
apagando as informações antes que sejam acessadas por usuários não autorizados.
Em um nível intermediário, o sistema confiável deverá bloquear uma tentativa de
acesso com a simples requisição de senha. E em um nível de segurança baixo, irá
oferecer alguns obstáculos para o eventual violador e também sinalizar e marcar
o trabalho digital (como uma marca d'água digital que vem sendo utilizada em
programas de manipulação de imagens), de forma que sua fonte possa ser
rastreada e identificada. Essas marcas d'água - que possuirão um registro de
cada trabalho, o nome do comprador e o código para os dispositivos onde o
trabalho poderá ser reproduzido - poderão identificadores localizarão cópias
não autorizadas ou alterações no trabalho original. Isto porque estas
informações de direitos autorais poderão ser miniaturalizadas e escondidas no
próprio texto, por exemplo. A informação identificadora poderá ser
essencialmente invisível ao adquirente - e irremovível para os potenciais
fraudadores.
A maioria dos computadores dotados do sistema trusted terá a capacidade de
reconhecer outro sistema semelhante, com as mesmas características, podendo
executar exatamente o que foi solicitado, gerando um trabalho que não poderá
ser copiado fielmente uma segunda vez, ou que carregue uma assinatura digital
de sua origem. Para executar uma transação altamente segura, dois sistemas
confiáveis trocarão dados utilizando-se de um canal de comunicação, como a
Internet, fornecendo garantias sobre suas verdadeiras identidades. O
gerenciamento de comunicações em um canal de segurança pode ser reforçado com a
utilização de criptografia de dados e por protocolos de comunicação
específicos.
Porém, os autores e divulgadores ainda deverão ser precavidos quanto à
distribuição não autorizada de sua propriedade. O usuário de computador poderá
sempre imprimir uma página digital e depois fotocopiá-la. Um pirata de filmes
digitais poderá sentar-se em frente à tela do cinema e gravar o filme com uma
filmadora portátil. O que os sistemas confiáveis previnem é a reprodução por
atacado e distribuição de cópias perfeitas dos trabalhos originais.
A concretização dessa visão irá depender do desenvolvimento e do crescimento tanto
da tecnologia como do mercado. Os editores poderão instituir medidas que
assegurem a privacidade dos consumidores que utilizarem-se dos sistemas
confiáveis, posto que a mesma tecnologia que protege os direitos de propriedade
pode também proteger dados pessoais dos consumidores. Sistemas confiáveis
também presumem que as vendas diretas, e não a propaganda, que irá pagar os
custos de distribuição de trabalhos digitais. A propaganda irá prevalecer
apenas para trabalhos com apelo substancial em mercados com maior concentração
de poder aquisitivo.
Conclusão
O guru Nicholas Negroponte acredita que a proliferação de dispositivos de
acesso remoto (sem fio) vai permitir que mais de um bilhão de pessoas estejam
conectadas à Internet nos próximos anos. E que até brinquedos estarão
conectados à Rede.
A tecnologia proverá a infraestrutura para o comércio digital, e as forças
comerciais irão impor a mudança. Mas a arquitetura - a estrutura própria do
ciberespaço - ditará a forma com que as inteirações poderão ou não poderão
tomar. Essa sim, precisa ser regulamentada.
É a sobrevivência (ou não) dos valores democráticos na Era da Informação.
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Omar Kaminski
www.kaminski.adv.br
Retirado de: http://www.subjudiceonline.com.br/dirint/Internet/Artigos/regulamentacao.htm