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A "ANTI-CIRCUMVENTION PROVISION" DO DMCA E O PARADIGMA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito

Em outro artigo publicado no Infojus (www.infojus.com.br) abordamos a questão do controle legal da publicação de trabalhos intelectuais na forma digital. Mostramos como as leis de diversos países tiveram que se adaptar para tipificar e sancionar a conduta consistente na reprodução não autorizada de obras em meio eletrônico. Dissemos, na oportunidade, que as inquietações no mundo virtual não se limitam a esse aspecto do problema.

De fato, as dificuldades da regulamentação de um ambiente de comunicação eletrônica, livre de fronteiras territoriais, como se apresenta o cyberspace, não se exaurem com a adoção de regra legal prevendo a proteção dos direitos autorais sobre obra intelectual em forma digital. A arquitetura da Internet, assim entendida o conjunto de parâmetros e linhas de programação (em hardware e software) que dão à rede mundial o desenho (a aparência) e a formatação técnica como hoje conhecemos, favorece em muito o anonimato. A Internet é grande como nenhuma outra rede de comunicação (network) porque funciona por meio de um protocolo que permite que computadores e máquinas de diferentes configurações possam se comunicar entre si. Esse protocolo, padrão de especificações técnicas que regulam a transmissão de dados entre computadores na Internet, recebe o nome de protocolo IP (Internet Protocol). O endereço IP de um computador que acessa a Internet tem função similar a um endereço ou número de telefone no mundo físico. Só que, diferentemente deles, o conhecimento do número IP não permite saber onde está localizado o computador.

Através do endereço ou número de telefone de uma pessoa (se acompanhado do prefixo do país e do código de área), é possível identificar a que ponto geográfico corresponde. Com o número de endereço IP não é tão fácil traçar essa correspondência, até porque um mesmo número pode ser utilizado por mais de um computador. Isso favorece em muito o anonimato. As pessoas se comunicam sem saber quem está do outro lado da rede. E se propicia o anonimato, proporciona igualmente a criminalidade na rede. Desencarnados sob o manto de um endereço IP, hackers ou crackers, como são conhecidos os agentes criminosos do mundo virtual, atuam de forma mais livre e segura do que no mundo físico, onde é mais fácil seguir o rastro de um crime. Quer seja invadindo um banco de dados de um site, quer furtando cartões contidas no sistema de um banco que funcione on line, ou ainda simplesmente tendo acesso a informações confidenciais, os hackers praticam toda sorte de condutas criminosas. Para se proteger contra a ação desses criminosos cibernéticos, os proprietários de sites se utilizam de todo um arsenal de dispositivos técnicos, programas que impedem o acesso de pessoas não autorizadas aos bancos de dados e conjunto de registros e informações contidas em seus sistemas, tais como firewalls, senhas, passwords e todo tipo de barreira eletrônica.

Especialmente para proteger obras intelectuais contra a ação de pessoas não autorizadas, isto é, aquelas que não se dispõem a pagar para ter acesso a obras literárias, artísticas e musicais ou qualquer outra criação do intelecto humano, os controladores de sites têm se valido desses recursos técnicos, nem sempre infalíveis, pois não é raro mostrarem-se insuficientes para impedir a ação dos hackers e crackers, que em geral se caracterizam pelos excepcionais conhecimentos de informática e de comunicação em rede. Como contingência desses desafios adicionais, as leis referentes aos direitos autorais têm que se adaptar, pois não adianta somente expressar que a reprodução não autorizada alcança também obras digitais, que não revestem forma física. As novas situações emergentes nos ambientes tecnológicos impõem adicionalmente a necessidade de que as leis prevejam sanções a quem ultrapassar, inutilizar ou tornar ineficaz, seja por qualquer meio, os recursos tecnológicos usados na proteção de obras intelectuais.

Nos Estados Unidos, o Digital Millennium Copyright Act, a nova lei de direitos autorais daquele país, editada em 28 de outubro de 1998, entre outras coisas proibiu a conduta voltada a frustrar ou inutilizar qualquer tipo de tecnologia de controle de acesso empregada para proteger trabalhos intelectuais, protegidos pela legislação de direitos autorais. Na linguagem original, a regra expressa que:"No person shall cicumvent a technological measure that effectvely controls access to a work protected under this title". Sem essa norma os provedores de conteúdo na Internet relutariam em disponibilizar trabalhos intelectuais, ainda que utilizando tecnologia de encriptação, já que não teriam como punir a ação dos hackers, que atuam num ambiente onde a informação digital é facilmente duplicada.

Se por um lado a regra em comento é vista como fator que incentiva o crescimento da Internet, por outro é encarada como protecionismo excessivo aos direitos autorais. A legislação sobre propriedade intelectual sempre procurou proporcionar um adequado balanço entre os direitos dos criadores e o interesse público. Se funciona incentivando a produção intelectual do autor, conferindo-lhe o direito de controle sobre sua obra e conseqüente retorno financeiro, não pode ser de modo tal a impedir o seu uso para fins não lucrativos, didáticos, de crítica ou polêmica. Há um interesse público maior no sentido de que o conhecimento expresso nas obras intelectuais não fique privado ao seu autor, pois o próprio progresso da humanidade depende da difusão de conhecimentos, por meio da qual as obras originais são recriadas, melhoradas e adaptadas, dando margem ao aparecimento de outras e novas obras. É assim que o conhecimento humano evolui; a capacidade inventiva depende sempre de conhecimentos elaborados por outros criadores. Por isso a proteção aos direitos autorais ao longo da história nunca foi ilimitada. Em geral as leis excepcionam condutas não consideradas violadoras dos direitos autorais, tais como a citação de trechos ou passagens de uma obra para fins de estudo ou sua representação e execução (tratando-se de obra musical) no recesso familiar e sem intuito comercial. Essas práticas representam o conjunto do "fair use rights", que são a contrapartida de direitos que o público tem sobre as obras intelectuais. Pela mesma razão de que a propriedade intelectual não pode ter caráter ilimitado, as leis estabelecem prazo em que perduram os direitos patrimoniais do autor, findo o qual a obra cai no domínio público.

A "anti-circumvention provision" do Digital Copyright Millennium Act põe em cheque esse balanço que a teoria tradicional dos direitos autorais sempre guardou, é o que alegam seus opositores. Sob o comando dessa norma, por exemplo, um estudante não pode decriptar um trabalho codificado nem que seja para utilizar um pequeno trecho em trabalho escolar. A simples quebra ou inutilização do programa ou tecnologia de encriptação já configuraria ofensa à lei, sujeitando o agente às suas sanções. Os direitos decorrentes do "fair use", tais como ler, ver, extrair, copiar ou imprimir trechos não substanciais de obra para fins não comerciais, estariam sendo suprimidos. Yochai Benkler, professor de Direito na New York University e um expert em assuntos da Internet, adverte que o DMCA produzirá a criação de uma teoria sobre direitos autorais completamente nova, acaso sua inconstitucionalidade não seja declarada pelas cortes judiciárias.

Não é somente os direitos do "fair use" que estão ameaçados. Muitos alegam que a norma do DMCA também impede a revenda do produto adquirido, que aquele que tenha comprado um produto em forma digital possa revendê-lo, fulminando os direitos públicos da "first sale" doctrine. A teoria da "primeira venda" (first sale) expressa que uma vez que o criador de uma obra intelectual (como um livro, um CD-ROM, por exemplo) vende cópia de seu trabalho, o seu controle sobre as vendas subseqüentes (sobre essa mesma cópia) é limitado. Essa tradicional doutrina é que permite a existência, por exemplo, do mercado de livros usados (os conhecidos "sebos") e das livrarias. Os críticos do DMCA alegam que sua regra retira ou obstaculiza esse direito de revenda ou redistribuição longamente consagrado. Se uma trilha musical ou um capítulo de um livro é encriptado (codificado) e somente pode ser usado em um único computador, o comprador dificilmente vai conseguir revendê-lo e, pela mesma razão, as livrarias não vão poder emprestá-lo, pois o seu uso estaria limitado pela tecnologia empregada para controlar o acesso à obra. Uma vez que o DMCA tipificou como conduta ilegal a eliminação de qualquer medida tecnológica de controle de acesso a uma obra intelectual, os direitos decursivos da "first sale" doctrine estariam ameaçados.

Outro ponto que torna a discussão ainda mais controversa: geralmente as leis sobre direitos autorais garantem aos autores a proteção sobre suas obras durante certo período de tempo. As técnicas de encriptação ou codificação levam a uma situação em que o controle sobre o uso e a disposição de cópias de trabalhos digitais perdurem no tempo, mesmo depois da previsão legal de passagem ao domínio público ter sido alcançada. Esse controle ilimitado no tempo seria contrário aos valores e princípios mais caros da tradicional teoria dos direitos autorais.

A discussão não promete acabar. Situando-se em pólos contrários estão as associações de defesa de direitos autorais e outros núcleos da sociedade civil organizada. As primeiras argumentam que sem a norma em questão os autores não terão incentivo em produzir material em forma digital; sem a certeza de uma proteção efetiva, não vão arriscar perder o controle sobre suas obras. Já a outra vertente de pensamento acredita que o DMCA aumenta os poderes que os autores têm sobre as obras intelectuais de uma forma perigosa, podendo obstaculizar o acesso à cultura de massa e prejudicando a difusão do conhecimento.

Interessante é notar que a Lei brasileira (Lei 9.610/98), no Capítulo II do Título VII, que trata das sanções civis às violações dos direitos autorais, contém disposição muito semelhante à norma do DMCA. O art. 107 dispõe que, independentemente da perda dos equipamentos utilizados, responde por perdas e danos quem "alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia" (inc. I). Em nosso país, no entanto, não há sinais de discussão semelhante à que ocorre nos EUA.

Recife, 14.02.01

Artigo retirado de: http://www.estacio.com.br/direito/novos/arquivos/Direito_Autoral_