® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
A Internet e a Liberdade de Expressão
Alexandre Mendes Nina
 
 

O tema da liberdade de expressão na Internet é, sem dúvida alguma, dos mais controversos de que se tem notícia na atualidade. De um lado, os defensores do livre discurso argumentam que a rede constitui um meio de veiculação de informações democrático por excelência - razão pela qual tendem a caracterizar qualquer tentativa de regulamentação no cyberspace como ineficiente e tolhedora das liberdades individuais. Por outro lado, para os adeptos da censura na Internet, o caráter supostamente democrático da rede vem servindo de pretexto para a divulgação de materiais absolutamente degradantes e nocivos à dignidade humana - materiais que devem, portanto, ser inequivocamente colocados fora do alcance dos usuários.

Na verdade, a questão é tornada delicada pela natureza absolutamente peculiar da Internet. Diferentemente dos outros meios convencionais, nos quais existe um certa reputação a ser mantida - afinal, ninguém continuará comprando jornais que, por exemplo, defendem idéias nazistas em seus editoriais - a Internet é um meio através do qual qualquer pessoa dotada de um microcomputador, um modem e um mínimo de conhecimento na área de informática pode divulgar amplamente qualquer assunto, por mais estranho e ofensivo que seja.

Ademais, é sabido que qualquer forma de regulamentação dos discursos individuais deve pressupor uma nítida diferenciação entre as esferas pública e privada. Trata-se de uma distinção elementar: por meio de troca de correspondências (ou em uma conversa informal na mesa de um bar) qualquer pessoa pode defender inteiramente seus pontos de vista, mesmo que estes incluam a defesa da discriminação racial ou do tráfico de drogas - pois, evidentemente, qualquer pessoa pode pensar o que quiser. Porém, na medida em que essas idéias se tornam de conhecimento público, tornam-se crime. O problema é que a Internet é, ao mesmo tempo, um veículo de divulgação de informações público e privado, no qual as fronteiras entre o que deve e o que não pode ser regulado por vezes se confundem.

Além disso, o fato de a Internet ser, por definição, um veículo transnacional vem impor sérios problemas relacionados à diversidade de padrões morais e culturais em diferentes nações. Isto é, determinados assuntos aos quais é permitida a livre divulgação nas home-pages de um país podem ser considerados absolutamente ofensivos para habitantes de outros países, não obstante poderem ser facilmente acessados.

Se a essas complicações derivadas da singularidade da Internet adicionarmos o caráter ainda embrionário da rede no Brasil, torna-se bastante claro que, antes de serem implementadas leis próprias para a sua regulamentação no país, faz- necessário um amplo debate nacional em torno das vantagens e desvantagens de tal procedimento. Nesse sentido, uma análise detalhada do tratamento dado à questão pelos os Estados Unidos - país onde a Internet é bem mais desenvolvida - pode ser bastante útil para os nossos propósitos.

Com efeito, observa-se que, entre os norte-americanos, a possibilidade de imposição de qualquer forma de censura aos usuários da rede adquire contornos particularmente controversos, visto que o país tem ampla tradição de reconhecimento pleno das liberdades individuais de expressão. Não é de se estranhar, pois, o fato de a questão suscitar acaloradas discussões entre grupos de interesses contrários sempre que o governo federal manifesta-se favorável (ou contrário) à efetiva implementação dessas restrições.

Recentemente, a rejeição do CDA (Communications Decency Act) pela Suprema Corte Federal veio demonstrar de maneira contundente como o assunto vem levantando reações extremadas na sociedade americana. Naquela ocasião, para desespero daqueles que se colocam favoráveis à censura na rede, a instância mais elevada do Judiciário do país considerou inconstitucional a medida que estabelecia "leis de decência" a serem seguidas pelos usuários da Internet. Com isso, os discursos veiculados pela rede mundial de computadores adquiriram - como já possuíam os outros meios da mídia impressa no país - proteção total contra eventuais medidas de caráter regulatório.

Como era de se esperar, a decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos não ficou isenta a críticas. Muito pelo contrário. Em editorial recente, a revista inglesa "The Economist" manifesta-se de forma incisiva: "Mr Clinton's cavalier approach, thrilling to American libertarians who see the Net as a sort of cyberian Wild West, will seem madness in those countries whose people do not share the instinctive American mistrust of governmental intervention."

Na verdade, ainda que o CDA tenha sido rejeitado, os Estados Unidos ainda mantêm um código de conduta capaz de punir, eventualmente, a divulgação de materiais de conteúdo duvidoso na Internet. Dependendo da categoria em que a sua atuação restritiva se enquadra, o governo federal possui um determinado grau de discrição para a imposição da censura. Melhor explicando, se se considera que o governo está agindo de forma análoga a um empregador, subsidiário, educador primário ou proprietário, o direito norte-americano, de modo geral, atribui-lhe um grau bastante significativo de poder para banir o material considerado inadequado. Afinal, parece bastante razoável que o governo tenha a capacidade de despedir um funcionário que envie e-mails inadequados dentro de uma empresa pública, ou ainda que o governo tenha o direito de prevenir o acesso a material considerado indecente em escolas públicas do primeiro grau.

Por outro lado, na medida em que o governo norte-americano passa a agir como soberano, o seu grau de discrição para a imposição de censura dependerá essencialmente do conteúdo do material a ser banido. Existem assuntos merecedores de "proteção total", como discursos políticos e religiosos, arte, literatura, diversão, etc; a outros assuntos é reservada qualidade de "proteção intermediária", como propagandas comerciais, discursos de conteúdo sexual não obsceno, etc; e, por fim, os considerados "discursos sem valor constitucional", que não ganham nenhuma forma de proteção, devendo seus divulgadores serem punidos - como calúnia, obscenidade, pornografia infantil, ameaças ou conspirações.

Além desse conjunto de medidas visando a restrição de discursos inadequados, o governo dos Estados Unidos vem estudando, em reuniões conjuntas com representantes das principais indústrias da área de informática, a confecção de mecanismos de bloqueio às home-pages de conteúdos duvidosos. Para desespero de associações como a ACLU (American Civil Liberties Union) , dentre as medidas em análise pela Casa Branca figuram: o estabelecimento de um sistema de rating, através do qual as home-pages seriam classificadas pelo seu conteúdo (como nos filmes); a Microsoft se uniria a Netscape para a adoção conjunta do chamado PICS (Plataform for Internet Content Selection) nos browsers; os maiores mecanismos de busca na rede concordariam em banir de suas páginas os endereços de sites indecentes.

Pela experiência dos Estados Unidos, observa-se, portanto, que a idéia de regulamentação da Internet é uma questão controversa e, como tal, constitui um assunto recorrente entre os responsáveis pela elaboração das leis daquele país. Ainda que os norte-americanos estejam longe de alcançar um mínimo de consenso em torno da questão, já podemos tirar algumas conclusões quando se trata de discutir o problema em nosso país.

Em primeiro lugar, parece claro que existem certos materiais divulgados pela tecnologia Internet que devem, evidentemente, ser passíveis de censura. Não se concebe outro tratamento a discursos fomentadores de questões nitidamente degradantes, como a propaganda nazista ou o incentivo à pornografia infantil. Aliás, não se trata de propor a formulação de leis específicas para banir esses assuntos da rede - afinal, se já existe uma legislação proibindo a divulgação desses materiais em outros meios, não há porque permiti-los em qualquer ambiente on line.

Nesse sentido, a solução preliminar parece tomar essa direção: deve-se proibir a divulgação de conteúdos que já sejam proibidos por lei. Como salientou o engenheiro Silvio Lemos Meira, representante dos usuários no Comitê Gestor da Internet no Brasil, em recente entrevista à Folha de São Paulo, "o que a Internet precisa menos hoje é de leis" .

No entanto, se, ao adotarmos esses procedimento, é bem provável que estejamos perto de achar uma solução sobre o quê deve ser censurado, obviamente ainda fica sem resposta satisfatória a questão de como empregar a censura - afinal, como já salientamos, trata-se de um terreno complicado, onde as esferas públicas e privadas podem ser bastante difusas. Colocando a questão em termos práticos: devem ser censuradas apenas as páginas da Web com material inadequado? E os Newgroups e as Mailing lists, devem ser restringidos? Como?

Ou seja, deve-se ter em mente (e aí está o problema) que a intervenção governamental na Internet deve ser absolutamente cirúrgica, confinada aos conteúdos já descritos e sem interferir na esfera privada das pessoas, de modo a evitar que se abra um precedente perigoso, capaz de, eventualmente, servir de estímulo à proliferação de práticas restritivas que possam vir a minar a liberdade de expressão - conceito que, nunca é demais lembrar, é garantido como direito fundamental do indivíduo na Constituição brasileira.
 

Retirado do site:http://jus.com.br/infojur/artigos.html