O
Direito da Internet: o Nascimento de um Novo Ramo Jurídico
Marcio
Morena Pinto
Sumário:
1. O Direito como Ciência e suas Divisões 2. O
Direito da Internet como Nova Disciplina Auxiliar 3. Origem
Histórica 4. A Informática Jurídica e
o Direito da Informática 5. O Direito da Internet
5.1. Criação 5.2. Nomenclatura 5.3.
Fontes 5.4. Autonomia 6. Conclusão.
1. O
Direito como Ciência e suas Divisões
Como nos
lembra Reale, a Ciência do Direito estuda o fenômeno
jurídico em todas as suas manifestações e
momentos, não se restringindo somente à experiência
já aperfeiçoada e formalizada em leis, mas também,
analisando seu desenvolvimento contínuo na sociedade e
consequentemente nas relações de convivência.
Tomando-se a idéia do Direito como ciência, e
considerando que para bem estudá-la, assim como para
estudar qualquer outra ciência, necessária se faz uma
divisão que discrimine de maneira bastante clara suas
funções, destacar-se-á a seguir a primeira
divisão, herança dos antigos romanos, a qual
distinguia o direito público do privado. Como nos
lembra Marky de maneira bastante simplista, o direito público
regula a atividade do Estado e suas relações com
particulares e outros Estados, enquanto o direito privado trata
das relações entre particulares: Publicum ius est
quod ad statum rei Romanae spectat, privatum quod ad singulorum
utilitatem pertinet . A partir desta primeira divisão,
muitas subdivisões se sucederam com o passar do tempo para
melhor esclarecer os segmentos engendrados dentro dos pólos
público e privado. Tomando-se a divisão clássica
e olvidando as controvérsias doutrinárias que não
se fazem relevantes no presente estudo, poder-se-ia citar no campo
do direito público as seguintes disciplinas: Direito
Constitucional, Direito Administrativo, Direito Processual,
Direito Penal, Direito Internacional Público, Direito
Tributário e Direito das Finanças Públicas.
No campo privado: Direito Civil e o Direito Comercial ou
Mercantil, sendo que os demais direitos se situariam numa esfera
ainda nebulosa, de difícil classificação,
como o Direito do Trabalho, Direito Agrário, Econômico,
Urbano, Empresarial, Florestal, Internacional Privado etc. Vale
ressaltar ainda que cada um desses ramos não existe de
forma absolutamente independente, muito pelo contrário, há
um liame entre cada um deles para que juntos constituam a unidade,
o todo que é o Direito. Como mencionado alhures, sendo o
direito extremamente dinâmico na medida em que caminha
pari passu com a sociedade, ou melhor dizendo, com o progresso
social, as novas realizações no plano tecnológico
as novas situações fáticas e os
novos valores, para parafrasear uma vez mais o mestre Reale
-, acabam por incitar o aparecimento de novos corpos ou sistemas
de normas, destinados a disciplinar de maneira própria,
determinadas situações jurídicas.
Destarte,
ao lado dos já tradicionais ramos do direito (as
disciplinas fundamentais), surgem ramificações que
visam à especialização, buscando sempre
melhor atender às lacunas que vão sendo criadas
pelas novas relações jurídicas. São as
disciplinas complementares ou auxiliares, geralmente mescladas com
outras ciências, cuja importância evidencia-se no
enriquecimento do saber jurídico, trazendo-lhe novos
horizontes e contribuições originais.
2. O
Direito da Internet como Nova Disciplina
As
disciplinas jurídicas complementares são
inumeráveis, sendo tantas quantas forem as possibilidades
de outras ciências trazerem a sua contribuição
ao estudo do direito. Em consonância a essa linha de
raciocínio, resgatamos o tema do desenvolvimento
tecnológico das redes digitais e da sociedade de
informação, inserindo-os mais propriamente no
universo disciplinar da Informática Jurídica
uma espécie de matriz originária do atual
direito da Internet, a fim de propugnar no sentido de elevar
as relações entre o Direito e a Informática -
de maneira particular as relações entre Direito e
Internet -, a um patamar de disciplina auxiliar ou complementar às
disciplinas fundamentais.
3.
Origem Histórica
É
próprio da humanidade conceber a técnica como um
ator autônomo, separado da sociedade e da cultura. Em
contraposição a essa postura prosaica, o filósofo
Pierre Lévy defende a técnica como um ângulo
de análise dos sistemas sócio-técnicos
globais, um ponto de vista que enfatiza a parte material e
artificial dos fenômenos humanos, e não uma entidade
real existente independentemente do resto, agindo por vontade
própria. Haja vista a impossibilidade de separar-se o ser
humano daquilo que inventa, produz e utiliza, a tecnologia assume
uma feição de produto de uma sociedade e de uma
cultura, refletindo portanto nas mais diversos campos científicos.
Um dos primeiros cientistas a considerar essa interação
no ramo do direito foi Norbert Wiener, aclamado como o Pai
da Cibernética. Junto de outros cientistas, afirmou
na década de 40 que o conjunto de problemas centrados
no controle e na comunicação, tanto no tecido vivo
quanto na máquina, apresentavam uma unidade essencial.
Dentre suas reflexões acerca da possibilidade de
aplicação da Cibernética ao Direito, coloca
os problemas da lei como problemas de controle sistemático
e reiterável de certas situações críticas,
conceituando-a como:
« o
controle ético aplicado à comunicação
e à linguagem enquanto forma de comunicação,
especialmente quando tal aspecto normativo esteja sob o mando de
alguma autoridade suficientemente poderosa para dar às suas
decisões o caráter de sanção social
efetiva. »
Outra
figura importante a ser lembrada como pioneiro na doutrina que
exsurge é a do advogado Lee Loevinger. Seu objetivo foi
criar uma disciplina jurídica nova, de caráter
empírico, cujo propósito seria a racionalização
do Direito mediante a aplicação dos métodos
quantitativos de automação à experiência
jurídica. A essa disciplina chamou-se Jurimetria .
Posteriormente, Hans W. Baade concluiu as idéias de
Loevinger, atestando que a Jurimetria visava de maneira individual
três setores fundamentais de pesquisa: o processamento
eletrônico de dados jurídicos, o uso da Lógica
no campo do Direito e a análise das decisões
judiciais. Mais recentemente, o jurista Mário Losano
afasta a Jurimetria de Loevinger e a Cibernética de Wiener,
situando-as num plano histórico e reciclando o objeto
dessas duas ciências através da criação
da Juscibernética . Como coloca De Lucca, são
quatro as possíveis abordagens da Juscibernética ao
Direito para esse jurista italiano: 1. O mundo do Direito, na
sua totalidade, é considerado como um subsistema em relação
ao sistema social e são estudadas as inter-relações
entre os dois, conforme um modelo cibernético. 2. O
mundo do Direito é estudado como um sistema normativo,
dinâmico e auto-regulador. O Direito é concebido como
um todo do qual são estudadas as relações
externas, mais as reações internas, isto é,
aquelas que ligam entre si as várias partes do sistema. 3.
Os modelos cibernéticos, em geral, deveriam ser idealizados
tendo em vista a sua utilização em máquinas
cibernéticas. Esta passagem para o computador pressupõe,
porém, uma formalização da linguagem
jurídica. 4. Os aspectos do Direito e das normas que
podem tornar acessíveis aos computadores eletrônicos
determinados fenômenos jurídicos. Baseando-se em
sua estrutura hierárquica da Juscibernética, Losano
acentua uma divisão entre as abordagens teóricas e
as empíricas, classificando as primeiras dentro do modelo
de Juscibernética e deixando as segundas ao que viria a ser
chamado de Informática Jurídica.
4.
Informática Jurídica e Direito da Informática
Em
sucinta definição, o professor Losano conceitua a
informática jurídica como um estudo das
aplicações dos computadores eletrônicos ao
direito, unida aos pressupostos e conseqüências desta
aplicação. Bipartindo a acepção
do termo informática jurídica, o ilustre mestre o
designa, no primeiro sentido, como a criação de um
banco de dados jurídicos, enquanto no segundo sentido, o
coloca como qualquer forma de automação da
Administração Pública ou dos procedimentos
regulados pelo direito. Destarte, a informática
jurídica se restringia bastante a um universo operacional
do direito, não abarcando as futuras relações
jurídico-sociais que pudessem advir do desenvolvimento da
informática. Todavia, como bem lembra o próprio
Losano, já na década de setenta existia uma
preocupação dos doutrinadores em relação
a esta questão, levando-os a pleitear uma regulamentação
para as potenciais relações jurídicas que se
instaurariam. Essas normas constituiriam o que se poderia chamar
de Direito da Informática . Vejamos o que afirma
Losano quanto ao desenvolvimento desta disciplina:
Era
um dos casos típicos no qual a doutrina jurídica
executava a função de estimular o legislador. Porém,
o direito da informática começou a tomar corpo com
uma certa lentidão porque, por um lado, os cultores da
informática jurídica ainda estavam fascinados com
pela técnica, e , por outro, era freqüente que as
aplicações dessa técnica estivessem ainda no
início e, por isso, envolvessem um número limitado
de pessoas.
Tal
colocação demonstra claramente uma certa precocidade
da doutrina em relação às necessidades da
sociedade daquela época, preocupada com os problemas
meramente técnicos. Atualmente, o Direito da
Informática tomou forma e autonomia em relação
à informática jurídica, ganhando uma acepção
própria. Entretanto, a doutrina é ainda bastante
divergente no que se refere a essa independência. As
diferenças começam no que se refere ao objeto de
cada disciplina. A informática jurídica tem como
objeto o direito. O direito da informática tem como objeto
a informática, entendendo-a lato sensu , ou seja, no
âmbito das conseqüências decorrentes de sua
utilização pelo homem. Seguindo esta linha, o
professor Veiga distingue a Informática Jurídica do
Direito da Informática da seguinte forma:
A
informática jurídica afeta o direito de duas
maneiras, que podem ser conceituadas como informática
jurídica e direito da Informática. Como ferramenta
possibilita maior eficiência e eficácia no exercício
do nobre ofício, por todos os operadores jurídicos,
constituindo a informática jurídica. O direito,
regulando a vida em sociedade, é chamado a normatizar as
mudanças ocorridas, para que se verifiquem e se situem
dentro dos parâmetros desejáveis para uma sociedade
sadia e justa. É o direito da informática.
A acepção
de Direito da Informática dada por Veiga, tem-se confirmado
no Direito Comparado:
(...)
el vínculo entre informática jurídica y
derecho informático es claro: ambos temas giran en torno a
las computadoras. Pero su diferencia es aún más
clara: el primero averigua las necesidades del derecho para
satisfacerlas desde la informática, en tanto el segundo
recibe las inquietudes generadas por la informática y trata
de satisfacerlas desde el derecho. Los objetos son cruzados entre
sí, los métodos son distintos y el marco en que cada
disciplina se inscribe no podría ser más
divergente.
La
interazione fra informatica e diritto come si è venuta
delineando nel tempo, è caratterizzada da due opproci:
l'informatica giuridica che riguarda l'applicazione dei metodi e
delle tecniche dell'informatica all'elaborazione dei datti
giuridici o di interesse giuridico e el diritto dell'informatica
che concerne l'elaborazione e lo studio delle norme che regolano
l'uso dell'indormatica nella società e le relative
conseguenze.
5. O
Direito da Internet
A criação
de uma nova disciplina é sempre uma tarefa árdua,
uma vez que, como bem pontua De Lucca, o jurista foi sempre um ser
inteiramente refratário às inovações.
Para citar ainda o eminente jurista Fábio Konder Comparato:
a tradição misoneísta dos nossos
jurisconsultos continua a condenar às trevas exteriores
toda e qualquer manifestação jurídica que não
se enquadre no seu sistema. Por conseguinte, há
um evidente repúdio quanto ao desenvolvimento de novos
campos dentro do direito por parte de muitos juristas. Silva
Neto nos lembra que quando foi introduzido o telégrafo no
convívio humano, não houve necessidade do
estabelecimento de qualquer direito telegráfico ,
razão pela qual as relações jurídicas
na tecnologia da informação não necessitariam
de qualquer ramo específico do direito. Ora, a
assertiva é eminentemente esdrúxula, não há
comparar-se uma invenção de ordem prática
realizada pelo homem, cuja importância se restringiu a uma
área específica de utilização, com a
Internet, verdadeiro paradigma emergente nas relações
sociais e que vem remodelando diversas conjunturas em suas mais
variadas searas. Dentro do mesmo raciocínio De Silva Netto,
Poletti chama atenção para o longo caminho
percorrido pelas disciplinas jurídicas para adquirirem
autonomia científica e curricular, acreditando que com a
incrível velocidade nas alterações
conjunturais, há certa precipitação no
batismo de novas disciplinas, o que decorreria, por sua vez, de
uma especialização desmedida e fragmentária.
Caminhamos no sentido contrário a tal opinião,
já que, apesar do direito ser algo uno, faz-se necessário
sua fragmentação a título de estudo e melhor
aplicação. A grandeza do direito não nos
permite conhecer todo o seu universo, o que praticamente obriga o
jurista a especializar-se em determinada área e desenvolver
novas disciplinas a medida que o direito compreende novas
situações, o que não implica necessariamente
na alienação frente às demais áreas.
Destarte, instituir-se o ramo Direito da Internet é um
avanço jurídico rumo às novas demandas por
regulamentação de uma mátéria ainda
incipiente, pois a partir do momento que se circunscreve a matéria
a um âmbito de estudo específico, surgem diversas
soluções doutrinárias que tendem a confluir
para uma uniformização, pré-requisito para
uma possível organização de leis específicas.
5.1
Criação
Não
obstante a inegável saliência de nossa proposta, não
há falar-se em pioneirismo do tema, mas sim ressaltar-se o
importante papel do professor Pasquale Costanzo na criação
de uma cátedra de Direito da Internet na Faculdade de
Jurisprudência da Universidade de Gênova. O
Direito da Internet surge em decorrência do fenômeno
das redes, estando albergado dentro da designação
genérica de Direito da Informática, o qual, por sua
vez, serve de base para o Direito da Internet. Nas palavras de
Constanzo, o Direito da Informática teria um valor
propedêutico em relação ao Direito da
Internet, e a Informática jurídica continuaria sendo
uma espécie de matriz originária daquele.
Filiamo-nos claramente à linha de pensamento deste
eminente professor, de maneira que ao referi-se aos aspectos
jurídicos da Internet, estar-se-á propondo uma nova
disciplina auxiliar que venha a tutelar as relações
advindas daquela. O comércio eletrônico é
a implicação mais evidente que decorre da utilização
da rede como meio de realização de negócios
jurídicos.
5.2
Nomenclatura.
Analisados
os fatores históricos e a importância da criação
desta nova disciplina, cabe ainda analisar a nomenclatura mais
adequada. Já foi visto que Informática Jurídica
é um termo que se restringe à parte operacional
aliada ao profissional do Direito, enquanto o Direito da
Informática chegaria mais próximo do que
convencionamos chamar de Direito da Internet. Estamos com De
Lucca ao privilegiar-se a designação Direito da
Internet em face das demais; a saber, direito virtual,
direito do ciberespaço ou do espaço virtual,
ciberdireito, direito cibernético , etc. Em suas
conjecturas, De Lucca evidencia sua preferência a esta
expressão na medida em que se optássemos por direito
virtual , ter-se-ia a impressão equivocada de tratar-se
de um complexo de normas virtuais e não reais. De
Lucca nivela ainda a expressão direito da Internet à
direito do espaço virtual ou do ciberespaço, pois
tanto uma como a outra melhor descrevem o conjunto de normas que
incidem sobre as relações recorrentes naquele mundo.
5.3
Fontes
No dizer
de Savigny, a fonte substancial suprema do direito encontra-se na
consciência comum do povo, vivendo sob a forma de intuição
viva dos institutos jurídicos considerados em seu complexo
orgânico e não sob a forma de uma regra abstrata.
Essa visão romântica de fonte do direito há
muito foi superada, todavia não se pode negar a importância
da força das pressões sociais pela modificação
do direito, pois é da sociedade que ele nasce e é
para ela que ele vive. Reale considera fonte de direito como
sinônimo de processos de produção de normas
jurídicas, os quais pressupõem uma estrutura de
poder capaz de assegurar o adimplemento das normas por ele
emanadas. Costumava-se distinguir, de maneira equívoca,
as fontes em formal e material. Por fonte material
indicavam-se as razões últimas, os motivos lógicos
ou morais que guiavam o legislador em sua tarefa, dando-se ênfase
à natureza filosófica, que diz respeito às
condições lógicas e éticas do fenômeno
jurídico. Para Reale, tratar dos problemas de fundamento
ético ou social das normas jurídicas é tarefa
da Sociologia ou da Filosofia, estando fora do campo da Ciência
Jurídica. Em que pesem tais opiniões, autores
existem como Maria Helena Diniz, a qual nos filiamos, que resgata
o caráter de quase marginalidade das fontes materiais,
invocando a teoria egológica de Carlos Cossio, ao
considerar que o jurista deve ater-se tanto às fontes
materiais como às formais, preconizando a supressão
da distinção, preferindo falar em fonte
formal-material , já que toda fonte formal
contém, de modo implícito, uma valoração,
que só pode ser compreendida como fonte de direito no
sentido de fonte material. Ante essas considerações,
dividir-se-ão as fontes formais em estatais e não-
estatais. As fontes estatais subdividem-se em:
legislativas (leis, decretos, regulamentos etc.), jurisprudenciais
(sentenças, precedentes judiciais, súmulas etc.) e
convencionais (tratados e convenções
internacionais). As não-estatais abarcam os usos e
costumes, a doutrina e as convenções em geral ou
negócios jurídicos. Analisada a teoria
concernente às fontes, o Direito da Internet, como ramo
relativamente autônomo, sustentar-se-ia numa incipiente
doutrina, cuja importância se reflete na constituição
das noções gerais, nos conceitos, nas
classificações, nas teorias e nos sistemas,
exercendo função relevante na elaboração
e aplicação do direito; na momentaneamente escassa
jurisprudência, e no que poderíamos chamar -
sem o intuito de cometer qualquer tautologia e nem a pretensão
de reduzir esse novo ramo do direito à uma disciplina
específica - de fontes transdisciplinares, ou seja,
o alargamento das fontes concernentes a outros ramos do direito
devido à sua aplicabilidade ao fenômeno das redes,
mesmo que de forma oblíqua e análoga. Evocamos ainda
em separado a importância dos usos e costumes e dos negócios
jurídicos ou poder negocial, no dizer de Reale, como
fontes do Direito da Internet, dadas suas respectivas
importâncias. Os usos e costumes remetem-nos uma vez mais ao
pensamento de Savigny, sendo frutos da vontade livre do povo em
viver e organizar a vida de determinada maneira. Como
esclarece Poletti:
(....)
os usos e costumes aparecem de forma imprevista. E o processo de
seu surgimento parece estar além de nossa compreensão,
pois não podemos explicá-lo nem determiná-lo
com segurança. Na verdade, eles brotam de uma
subconsciência social, às vezes, até de uma
espécie de inconsciente coletivo de Jung, que os governa no
seu aparecimento e na sua eficácia jurídica.
Daí
extrair-se a importância desta fonte em relação
ao Direito da Internet e particularmente às relações
comerciais em ambiente virtual, já que os costumes imporiam
a consciência social da obrigatoriedade de determinado
comportamento ainda não previsto em lei. Quanto ao
poder negocial, o que se destaca é a importância do
direito nascido dos contratos no caso, contratos
eletrônicos ou virtuais -, fazendo lei entre as partes em
função do ordenamento jurídico estatal que
assim o permite. E finalmente, para esgotar as possibilidades
de fontes concernentes à matéria em estudo, não
nos olvidemos dos princípios gerais do direito,
fonte subsidiária dos usos e costumes prevista no artigo 4o
da Lei de Introdução ao Código Civil
Brasileiro, os quais adquirem força normativa para solução
das controvérsias submetidas a juízo na falta de
disposição legal.
5.4
Autonomia
Cada ramo
do direito que insurge, requer para si o reconhecimento de sua
autonomia. A autonomia pode ser de ordem legislativa,
jurisdicional e didático-docente, todas oriundas da
manifestação prática de uma autonomia
precedente: a autonomia científica. Aftalión
acredita que não há falar-se em autonomia científica
se os princípios de um ramo em questão aparecem como
contingentes exceções, especificações
dos de outra disciplina, a qual se recorre para solução
de casos não previstos. Assim, em suas palavras: (..
.) no
cabe hablar de una rama autónoma, sino, a lo sumo, de un
recuadro o ramal más o menos excepcional (derecho de
excepción) o especializado (derecho especial).
Malgrado
seu posicionamento pouco flexível, estamos para que todas
as disciplinas jurídicas se socorrem uma das outras para
formar uma opinião acerca de determinado assunto, o que não
as restringe necessariamente a mera especificação de
outra disciplina, evidenciando-se, ao contrário, o
intercâmbio contínuo entre os mais diversos ramos
jurídicos, privilegiando-se a característica mor do
direito que é a sua unicidade. Logo, tal critério
não nos satisfaz, a medida que restringe a autonomia à
dependência ou não de outras disciplinas. Neste
ponto, vale lembrar o que nos ensina o eminente e saudoso mestre
Vicente Ráo:
(...)
as disciplinas jurídicas, cedendo às pressões
das vicissitudes contemporâneas da vida social, se dividem e
subdividem em um número sempre crescente de ramos e
sub-ramos, os quais, por sua vez, padecendo de gigantismo, tendem
a se constituir em disciplinas autônomas e distintas
Ráo
afirma que a especialização e a subespecialização
são extremamente úteis e clamam por sua autonomia.
Contudo, para que a criação de um novo ramo jurídico
tenha êxito, deve haver um forte vínculo aos
princípios gerais do direito, desprezando-se o caráter
estritamente técnico e reafirmando os postulados
ideológicos e os elementos intelectuais, morais e
espirituais que integram a personalidade humana.. Talvez ainda
seja realmente cedo para falar-se em autonomia como a entendemos
em seu universo mais amplo, haja vista a falta de uma normatização
específica quanto à matéria. Não
obstante, há que considerar-se uma autonomia relativa,
alicerçada principalmente no plano doutrinário e em
menor grau no plano jurisprudencial.
6.
Conclusão
A
sociedade global hodierna tem em concreto um fenômeno ainda
prematuro - cujos traços ainda não puderam ser
completamente percebidos nem definidos - que caracteriza e
remodela o que toca, causa motivadora dos estudos de
diversas ciências que se vêem tocadas em
seu cerne, o que consequentemente as obriga a reformular diversos
conceitos pré-estabelecido e a adaptar-se gradativamente à
nova realidade emergente. Sem pretensos exageros, a rede
Internet tornou-se um verdadeiro paradigma para a rede de
informação, uma forma de universal caracterizada
pela heterogeneidade e fluidez incessante, o que torna cada vez
mais difícil encontrar um sentido global que permita
circunscrever toda a fenomenologia do novo à uma suposta
dominação. O ponto fulcral da Internet está
na possibilidade de criar-se uma harmonia entre o divergente,
exaltando as diversidades em busca de uma identidade global
horizontal, na qual a presença virtual da humanidade em si
mesma não mais se limite à identidade do sentido.
Daí a importância de se estabelecer um ramo
jurídico com diretrizes próprias, produzindo-se
reflexões jurídicas abrangentes e sistemáticas,
tencionando esclarecer as novas práticas geradas com
advento da rede, legitimando-as e conduzindo-as gradativamente a
uma possível regulamentação.
São
Paulo, Fevereiro de 2000.
Notas:
Reale,
Miguel, Lições Preliminares de Direito, São
Paulo, 24a ed., Saraiva, 1998., p. 323.
2 Marky,
Thomas, Curso Elementar de Direito Romano, São Paulo, 8a
ed., Saraiva, 1995, pp. 15-6.
3 Souza,
Daniel Coelho de, Introdução à Ciência
do Direito, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio
Vargas, em convênio com a Universidade federal do Pará,
1972, p. 81.
4 De
Lucca, Newton, Títulos e Contratos Eletrônicos, in De
Lucca, Newton, Simão Filho, Adalberto (Coordenadores),
Direito & Internet: Aspectos Jurídicos Relevantes, São
Paulo, EDIPRO, 2000. p. 33
5 Lévy,
Pierre, Cibercultura, 2a ed., São Paulo, Editora 34, 2000.
6
Szklarwosky, Leon Fredja. A Informática e o Mundo
Moderno. Jus Navigandi [periódico on line] 2000.
Disponível em [2001 Fev 17]
7Wiener,
Norbert, Cibernética e Sociedade, in De Lucca,
Newton, Simão Filho, Adalberto (Coordenadores), Direito &
Internet: Aspectos Jurídicos Relevantes, São Paulo,
EDIPRO, 2000, p. 35
8 Cf. De
Lucca, Newton, op. cit., pp. 35-6. Szklarwosky, Leon Fredja, A
Informática e o Mundo Moderno.
9 De
Lucca, Newton, op. cit., pp. 37-8
10
Losano, Mário, A Informática Jurídica
20 anos depois, Revista dos Tribunais, n. 715, maio de 1995,
pp. 350-367.
11
Losano, Mário, op. cit, p. 352.
12
Losano, Mário, op. cit, p. 363.
13 Veiga,
Adolfo Olsen da, Apresentação, in Olivo,
Luiz Carlos Cancellier de, Direito e Internet: a Regulamentação
do Ciberespaço, UFSC, 2000.
14
Guibourg, Ricardo A., Alende, Jorge D., Campanella, Elena M.,
Manual de Informática Jurídica, Buenos Aires,
Astrea, 1996, p. 218.
15
Caridi, Gianfranco, Metodologia e Tecniche dell'Informatica
Giuridica, Milano, Giuffrè, 1989, p. 11.
16 De
Lucca, Newton, op. cit., p. 23
17
Comparato, Fábio Konder, O indispensável
direito econômico in De Lucca, Newton, op. cit., p. 23
18 Silva
Neto, Diogo José da. Filosofia do Direito, p.34
19
Poletti, Ronaldo, Introdução ao Direito, 3a ed., São
Paulo, Saraiva, 1996, p.
20
Costanzo, Pasquale in De Lucca, Newton, op. cit., p.32.
21 De
Lucca, Newton, op. cit., p. 22.
22
Savigny, Sistema, vol. I, parágrafo 7o, in Ráo,
Vicente, O Direito e A Vida dos Direitos, vol. I, São
Paulo, Max Limonad, 1960, p.7
23 Reale,
Miguel, op. cit., p. 139
24 Idem,
p. 140
25 Como
esclarece Maria Helena Diniz: (...) a fonte material aponta
a origem do direito, configurando a sua gênese, daí
ser fonte de produção, aludindo a fatores éticos,
sociológicos, históricos políticos etc; que
produzem o direito e condicionam seu desenvolvimento. A fonte
formal khe dá forma, demonstrando quais os meios empregados
pelo jurista para conhecer o direito, ao indicar os documentos que
revelam o direito vigente, possibilitando sua aplicação
a casos concretos, apresentando-se, portanto, como fonte de
cognição Diniz, Maria Helena, Curso de Direito
Civil Brasileiro, vol. I, 14a ed., São Paulo, Saraiva,
1998, p. 21.
26 Diniz,
Maria Helena, ob. cit., p. 22
27
Poletti, Ronaldo, ob. cit., p.206.
28
Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de
acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais
do direito.
29 Ráo,
Vicente, O Direito e A Vida dos Direitos, vol. I, São
Paulo, Max Limonad, 1960, p. 308.
30
Guibourg, Ricardo A., Alende, Jorge D., Campanella, Elena M., op.
cit. p. 218.
31
Aftalión Vilanova, Introdución al derecho, p.
912, in Guibourg, Ricardo A., Alende, Jorge D., Campanella, Elena
M., op. cit
32 Ráo,
Vicente, ob. cit., p.7
33 Idem.,
pp.7-8
Acadêmico
do 4o ano de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de
São Paulo e Pesquisador da FAPESP.
Retirado
de: http://www.faroljuridico.com.br/art-direitointernet06.htm
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