„ACCESS DENIED“
MARGINALIZAÇÃO NA ERA DA INFORMAÇÃO
Christiano German[1]
Durante o verão de 2000, registrou-se nos
debates em torno das novas tecnologias a predominância de temas que insistem,
com uma ênfase até então desconhecida, nos riscos inerentes às tendências
atuais no desenvolvimento de áreas como a engenharia genética, a robótica, a
nanotecnologia e, sobretudo, também as tecnologias de informação e comunicação
(I+C). Enquanto a cúpula mundial do G-8, em Okinawa, provocava no mundo todo
uma discussão em torno do termo “Digital Divide”, referindo-se ao abismo cada
vez maior que separa os países ricos e pobres na utilização da internet e de
outros meios de comunicação, começaram a ser detectados novos tipos de exclusão
social também nas demais áreas citadas.
Sem a intenção de esgotar o assunto em toda a
sua abrangência, a seguir pretendo apresentar e discutir o campo dos problemas
mencionados numa perspectiva européia e, mais especificamente, alemã. Nesse
contexto é impossível deixar de considerar o papel dos EUA, assim como se faz
necessário abordar também os efeitos que essa dinâmica deve provocar numa
região em desenvolvimento, como é o caso da América Latina. Quero apresentar
também alguns projetos para uma possível solução dos problemas, comentando, p.
ex., as iniciativas do governo alemão que visam superar a divisão digital da
sociedade por meio de uma grande “ofensiva de internet” e da ampliação do
“governo eletrônico” em todos os setores federais de prestação de serviços que
possam ser integrados à internet.
1.
Engenharia
Genética
Depois da decodificação do genoma humano em
meados de 2000, foi sobretudo Jeremy Rifkin, crítico americano da sociedade e
da tecnologia, que voltou a destacar os riscos de um novo tipo de categorização
e vitimização dos seres humanos, depois de os velhos critérios de etnia,
religião, língua e nacionalidade já terem trazido tanta desgraça para a
humanidade. Uma nova forma de discriminação, essa bem mais séria, poderia
redundar na classificação dos seres humanos segundo o seu genótipo.
A possibilidade de classificar os seres humanos
em indivíduos ou grupos “superiores” ou geneticamente “comprometidos”, tendo
como base testes genéticos, torna-se cada vez mais iminente diante das
pesquisas médicas do genoma humano. Nos EUA, a utilização dessas informações da
esfera íntima do ser humano já faz parte, até certo ponto, das práticas de
muitas empresas na hora de selecionarem seus novos empregados. O Departamento
de Neurobiologia da Universidade de Harvard mostrou num estudo sobre a
discriminação genética, realizado este ano, que os testes genéticos são mais
comuns do que se supunha. Muitas instituições, entre elas seguradoras,
entidades de prevenção de saúde, repartições públicas, agências de adoção e
escolas, praticam hoje nos EUA abertamente a discriminação genética. A
associação de executivos americanos AMA já descobriu em 1997 que entre seis e
dez por cento de todas as empresas americanas recorrem a essa prática para
obterem informações sobre possíveis doenças graves e dispendiosas de seus
empregados.[2]
Na Europa e na Alemanha tem-se a impressão de
que os políticos e os cientistas pretendem aprender com a problemática evolução
dos fatos que se constata nos EUA. Em primeiro plano trava-se inicialmente um
debate de cunho ético[3].
Os convênios médicos e as seguradoras por ora estão mantendo uma certa cautela.
A dimensão ética diz respeito, por exemplo, ao problema da autodeterminação do
ser humano, aos deveres com os seres humanos e à não-comercialização do corpo
humano diante da controvérsia sobre a utilidade de biopatentes.
Na Grã-Bretanha e na Alemanha ainda está se
analisando, por parte dos governos, a adequação de diversos testes genéticos
para a avaliação de riscos. Em países como a Áustria, a Bélgica e Luxemburgo já
se proibiu a assim chamada “anti-seleção” baseada em testes genéticos,
utilizada pelas seguradoras quando se trata de cobrar mais de clientes de risco
ou de nem mesmo admiti-los como segurados. Na prática parece que hoje, na
Alemanha, a introdução de testes genéticos abalaria tremendamente a imagem do
setor de seguros, além de a maior parte dos testes genéticos serem ainda muito
imprecisos para permitir um cálculo razoável dos riscos.[4]
Na América Latina e aqui no Brasil, essa
discussão passará rapidamente das considerações acadêmicas à aplicação prática,
acrescentando aos critérios tradicionais de divisão social, como p. ex. a faixa
salarial e a escolaridade, novos critérios. Mas isso seria apenas o começo.
Diante da perspectiva de melhora do material genético pela aplicação da
engenharia genética, os abastados de todos os países poderiam passar a gerar
filhos mais inteligentes, mais belos e alegres. Também no Brasil – que é famoso
no mundo todo, entre outros motivos, pela qualidade de seus cirurgiões
plásticos – já estão sendo utilizados
intensamente esses recursos ainda relativamente modestos.
2.
Robótica e nanotecnologia
Sem que a opinião pública da Europa e da
América Latina se desse muita conta, o presidente Clinton declarou, em janeiro
de 2000, a nanotecnologia e a combinação de engenharia genética e tecnologia de
computação como tecnologias-chave do século 21. Assim, os nanotécnicos
revolucionam as ciências trabalhando p. ex. na miniaturização microscópica de
elementos eletrônicos. Nos anos 40, o computador tinha as dimensões de uma
sala. Dentro de trinta anos, um supercomputador deverá caber dentro de um
relógio de pulso ou, como prevê o teórico das ciências Ray Kurzweil[5],
um mini-robô poderá estar percorrendo as veias de um homem.
Uma visão especialmente polêmica e
controvertida no mundo todo partiu nesse contexto, em meados de 2000, de um
artigo de Bill Joy, cientista-chefe da Sun Microsystems e inventor da linguagem
de programação Java, publicado na revista de internet “Wired”.[6]
Sem recapitular os detalhes desse debate entre os maiores críticos das novas
tecnologias, os protagonistas da bio-informática e da engenharia genética e os
visionários da computadorização e da nanotecnologia, quero lembrar que a
discussão girou em torno da pergunta: como a ciência deverá lidar com essa nova
caixa de pandora e poderá o ser humano transformar-se em espécie ameaçada por
essas tecnologias poderosas?
Todos estão de acordo de que os riscos são
potencialmente maiores do que as que acompanharam o desenvolvimento da bomba
atômica. Um dos motivos está no fato de que, nas tecnologias nucleares, se
podia distinguir com relativa clareza entre a utilização militar e a comercial;
além disso, ficava mais fácil o controle por causa da radioatividade. Ainda
persiste uma controvérsia a respeito da opinião de cientistas como o físico
Freeman Dyson, de Princeton, que atribuem à engenharia genética bem mais riscos
do que à tecnologia da informação e à nanotecnologia.[7]
Os riscos estariam no fato de o desenvolvimento
de robôs poder dar um salto muito grande em virtude da integração das
tecnologias mencionadas. Bill Joy supõe p. ex. que os cientistas de computação
em tempo previsível estarão em condições de desenvolver máquinas inteligentes
que saberão fazer tudo melhor do que o ser humano. Num mundo desses, todo o
trabalho será realizado provavelmente por enormes sistemas de máquinas
superorganizadas. O problema principal pode ser formulado assim: deve se
permitir às máquinas que elas mesmas tomem as decisões? Pelo estado atual de nossos
conhecimentos, as conseqüências seriam imprevisíveis, além de haver o risco
adicional de uma reprodução autônoma dessas máquinas comandadas por softwares.
Um exemplo bem conhecido de uma entidade auto-reprodutiva não-biológica é o
vírus de computador.
Existe atualmente a perspectiva de que, dentro
de uns trinta anos, o desempenho do computador poderá ser comparável ao de um
ser humano. Segundo a “lei de Moore”, a velocidade dos computadores duplica a
cada ano e meio.[8] Para o ano
de 2019, Ray Kurzweil prevê que os computadores passarão no teste de Turing.
Com isso teriam chegado à capacidade de intervir como seres humanos em qualquer
diálogo, sem serem reconhecidos como computadores. Os projetistas dessa
inteligência artificial acham que existe o risco de a consciência da máquina
não se limitar à simulação do cérebro humano passando a criar seu próprio
sistema evolucionário. Será possível, então, que o ser humano não sobreviva ao
confronto com uma espécie superior de robôs. Isso levaria a uma total exclusão
da entidade protéica que é o ser humano.
O debate brevemente delineado entre Joy e
Kurzweil, ambos integrantes da equipe de assessores do presidente americano,
foi recebido por muitos cientistas com reservas e até com alguma ironia. Quanto
às previsões sobre o progresso da nanotecnologia, o cientista de materiais
Rustom Roy fala até em bolhas de sabão de alta tecnologia. Jaron Lanier, que
conta entre os teóricos de computação mais influentes dos EUA e que criou o
conceito de “realidade virtual”, afirma ter mais medo de softwares burros do
que de computadores inteligentes. Com toda a razão chama a atenção para o fato
de os saltos de qualidade no hardware costumarem ser bem adiantados em relação
ao software.
Da Alemanha vem a previsão confiante de que o
ser humano deverá sobreviver. O filósofo Walther Zimmerli destaca que, por
enquanto, só sabemos isso do futuro: que a probabilidade de ele não ser
conforme as previsões é muito grande. Falta pouco para chegarmos ao ano de
2001, mas o computador assassino HAL do livro de Arthur C. Clarke e do filme
homônimo de Stanley Kubrick continua não existindo, nem tampouco a “sociedade
sem papel”.
Para muitos, a credibilidade das previsões
sobre a divisão da sociedade em seres humanos, robôs e híbridos de ambos vem do
fato de terem sido feitos por cientistas diretamente envolvidos no
desenvolvimento dessas tecnologias poderosas. Sentindo-se responsáveis,
advertem para as conseqüências desse trabalho, caso caia em mãos erradas. O
professor alemão Zimmerli critica que “só notícias ruins são boas notícias”,
mas ele esquece que é possível criar na opinião pública as condições para uma
reação contra essa evolução das coisas, mesmo que seja apenas nos dias sem
assunto do verão. Isso vale também para a América Latina, mesmo que o
desenvolvimento tecnológico por aqui ainda não esteja tão adiantado. Nesse
sentido, Bill Joy exige que se institua uma espécie de juramento hipocrático
para cientistas e engenheiros, que se faça uma análise pública dos riscos e que
se criem laboratórios internacionais com critérios especiais de segurança.
Resumindo os resultados do debate podemos
afirmar, no entanto, que a renúncia – sobretudo à nanotecnologia – exigida por
Joy não é nem viável nem razoável. Um país como os EUA não pode renunciar ao
desenvolvimento dessas tecnologias potencialmente tão perigosas. O campo
ficaria apenas à disposição de outros e acabaria faltando o conhecimento
necessário à adoção de contramedidas adequadas, mesmo que seja apenas para o
desenvolvimento de um certo programa antivírus.
3.
Tecnologias de
informação e de comunicação
Um cenário de aspecto relativamente inofensivo
descreve a idéia de uma divisão crescente das sociedades de todos os países em
“conectadas” e “isoladas”, ou então de uma “Network High Society” e
“Information Poor”. Essa nova forma de divisão da população mundial e dos
habitantes de cada país já se vislumbrava em meados dos anos 90; mesmo assim, a
problemática só foi identificada na política mundial depois que o Human
Development Report de 1999 dedicara uma atenção maior ao fato.[9]
Em julho de 2000, o tema finalmente ganhou as
manchetes da imprensa quando, na cúpula do G-8 numa ilha ao sul do Japão, ficou
decidido, na “Carta de Okinawa sobre a sociedade global de informação”, opor
resistência “à divisão digital” do mundo. O Japão foi o primeiro país
industrializado a prometer subvenções e créditos num total de cerca de 30
bilhões de reais para diminuir o atraso na área da tecnologia digital. Entre
outras vozes críticas fez-se ouvir também a do presidente da UNESCO, Philipe
Queau.[10]
Para ele, o “mundo da informação já se encontra numa situação enviesada”, uma
vez que as comunicações na internet se realizam quase exclusivamente via EUA
onde se localizariam as matrizes das 13 maiores empresas da internet. Uma
delas, a MCI Worldcom, dominaria sozinha 30% de todas as conexões na internet.
Mas não pretendo destacar aqui o predomínio tecnológico dos EUA e o atraso da
Europa, antes quero fazer um breve levantamento da problemática e indicar
possíveis soluções.
Dez anos depois do desenvolvimento do “World
Wide Web” aparece no mapa mundial da internet um tipo novo de contrastes em
relação aos países em desenvolvimento que já se vêem bastante prejudicados nos
mercados de bens e capitais. Apesar da crescente necessidade de acesso aos
conhecimentos para poder contar com alguma chance de desenvolvimento num mundo
globalizado, a quinta parte mais pobre dos “Information Poor” dispõe de meros
0,2 por cento das conexões à internet, enquanto a quinta parte mais rica dos “Information
Rich” chega a abocanhar mais de 93 por cento. No máximo, três por cento da
população mundial dispõem atualmente de uma conexão à internet. E essa elite de
informação encontra-se nos países industrializados do mundo ocidental,
sobretudo nos EUA.[11]
A América Latina e o Caribe também estão
tentando manter-se em contato com a era da informação. Ao todo são 0,8 por
cento da população, ou seja, 3,2 milhões de seus cerca de 395 milhões de
habitantes, que podem surfar na internet. Em primeiro lugar está o país mais
populoso e extenso dessa região, o Brasil, que, com seus cerca de dois milhões
de internautas, em 1998 já ocupava o oitavo lugar no mundo todo. Hoje seriam
aproximadamente cinco milhões. Na própria América Latina seguem, com alguma
distância, o México, a Argentina e o Chile.[12]
Nesse meio tempo, estudos empíricos comprovaram
que também na Europa, em países com elevado desenvolvimento industrial, como é
o caso da Alemanha, começa a surgir um novo tipo de exclusão social, sobretudo
nas camadas dos mais velhos e pobres, bem como em pequenas empresas e entre
seus empregados.[13] O risco de
uma divisão visível da população européia em cidadãos com e sem conexão à
internet já deverá existir dentro de três anos. Fala-se em três barreiras que
ainda hoje manteriam afastados muitos cidadãos do ingresso no mundo da
internet: os custos de aquisição de um computador e as despesas regulares de
utilização são muito altos. Em segundo lugar faltam conhecimentos para
possibilitar um aproveitamento econômico e cultural razoável do computador
tanto na vida profissional quanto na particular. Em terceiro lugar, os serviços
oferecidos pela internet não são suficientemente atraentes. O próprio comércio
eletrônico na área do B2C (Business-to-Consumer) não está conseguindo o sucesso
esperado, em parte por causa dos problemas com a criminalidade no cyber-espaço.
Segundo especialistas de empresas de cartão de crédito, uma entre dez
transações no mundo on-line é fraudulenta, e a tendência indica para um aumento
desse tipo de fraude.[14]
O único setor realmente bem-sucedido é o B2B (Business-to-Business) via
internet ou intranet com grandes lucros e economias reais para as empresas.
Quanto aos modelos para possíveis soluções,
convém adiantar que muitas dessas abordagens têm a sua origem na indústria que
tem interesse numa interligação técnica abrangente visando um máximo de
socialização do uso da internet na população. O grande dinamismo próprio do
desenvolvimento tecnológico fez com que os políticos em toda a Europa tentem
agora pular no trem que já está em movimento, contando com a ajuda da
indústria. Mas os interesses da indústria estão ligados, naturalmente, a
categorias como investimentos e lucros.
Atualmente, apenas 16 milhões de alemães, ou
seja 34% da população adulta, utilizam a rede eletrônica, o que significa que
seu número dobrou nos últimos três anos. Em comparação com outros países
europeus, a Alemanha ocupa um lugar intermediário quanto ao acesso, à
utilização e às compras on-line. Para melhorar esse atraso até mesmo dentro da
Europa, Gerhard Schröder, o chefe de governo, anunciou em setembro de 2000 uma
grande ofensiva nessa área pela aplicação de um programa de dez itens. Com a
ajuda das empresas e por meio de incentivos fiscais, todas as 44.000 escolas e
bibliotecas públicas deverão estar equipadas com PCs até o final de 2001 e ter
acesso à internet. No momento são 11.000 as escolas que estão conectadas à
internet, mas em muitos casos só através do micro do diretor.[15]
Em comparação com os EUA, essa iniciativa vem
com um atraso de uns sete anos. A assim chamada Iniciativa Clinton-Gore já
incentivara em 1993 a ampliação de sistemas de comunicação de alto desempenho
em todo o país. O vice-presidente Gore prometeu conectar as infovias até o ano
2000 todas as escolas, bibliotecas e hospitais.[16]
Mas naquele tempo o governo cristão-liberal da Alemanha ainda não via nenhuma
necessidade para uma iniciativa desse tipo. O ex-chanceler Helmut Kohl chegou a
confundir o termo “Infovia/Datenautobahn” com as políticas de transportes e seu
então “ministro do futuro”, Jürgen Rüttgers, questionava nas entrevistas dos
jornais a possibilidade de convencê-lo da utilidade das áreas de multimídia e
internet.[17] Nem por
isso é possível querer comparar o atual chanceler Schröder com o candidato à
presidência dos EUA, Al Gore, que deu nome já nos anos 70 ao conceito do
“Information Superhighway” e que, desde então, se destacou como “e-ministro”.
Por isso não deve causar espanto que em países
chamados “em desenvolvimento”, como p. ex. no Brasil, as possibilidades de
aplicação das novas tecnologias de informação e da internet tenham progredido
mais rapidamente do que num país como a Alemanha.[18]
No Brasil, as eleições são realizadas com o uso de urnas eletrônicas, os
contribuintes podem entregar a sua declaração de imposto de renda via internet
em qualquer parte do mundo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal informa a
população de modo abrangente sobre o andamento dos processos e sentenças. Em
meados do ano 2000 foi lançado o programa “Governo Transparente” via internet.
Pode-se mencionar também as formas de democracia direta em Porto Alegre com o
assim chamado “Orçamento Participativo”. Há sete anos, os cidadãos da capital
do Estado do Rio Grande do Sul podem votar em questões de ordem orçamentária. Para
que os cidadãos disponham de informações adequadas, o governo e o câmara fazem
com que todos os dados pertinentes do orçamento estejam disponíveis na
internet.[19] Em países
industrializados do ocidente, como p. ex. na Alemanha, tais variantes de
e–government ainda estão em fase de testes. Em setembro deste ano, o chefe do
governo alemão pelo menos já anunciou – conforme mencionamos no início da
palestra – que até 2005 todos os serviços federais compatíveis com a internet
deverão estar disponíveis on-line.
Será que iniciativas como a administração de
cursos gratuitos de internet para desempregados conseguirão neutralizar o risco
de uma divisão da sociedade alemã em uma elite on-line e em um novo tipo de
proletariado off-line? Além disso, a introdução apressada do futuro on-line
constitui-se em ameaça à democracia liberal, já que, entre outras
conseqüências, leva à perda da privacidade do ser humano pela redução do sigilo
de dados na internet. Uma solução para os problemas de distribuição da riqueza
– também na Alemanha se registra há dez anos um aumento contínuo da pobreza –
não poderá ser substituída por ofensivas no campo da internet.
Segundo a opinião de Jeremy Rifkin, professor
da Wharton-School e assessor do governo norte-americano, na economia de rede da
Nova Economia, o velho problema da distribuição de renda será ampliado por mais
uma variante da divisão social: o direito do indivíduo ao acesso e às
possibilidades de acesso. “Acesso” passa a ser a palavra-chave. Na era dos
meios de comunicação digitais, o computador, o telefone, a difusão de rádio e
tv, as editoras e a indústria de entretenimento abrem caminhos totalmente novos
para a organização das relações inter-humanas. Tudo o que é oferecido no mundo
ilimitado do cyberspace, como p. ex. estilo de vida, aventura,
informação e assessoria, pode
levar a uma situação em que as pessoas só poderão dispor das coisas de que
necessitam em forma de serviço pago. A nova forma de capitalismo já não
consistirá então, como na Velha Economia, em comprar e possuir, e sim em alugar
e utilizar. A ameaça é uma economização totalmente nova do ser humano e de suas
relações e necessidades.[20]
A natureza problemática da comercialização da
informação, da principal matéria prima do futuro, já fora descoberta antes de
Rifkin. O comunicólogo Herbert I. Schiller advertiu, em meados dos anos 90, que
a interligação global e a liberalização dos mercados poderia levar não a uma
maior igualdade de oportunidades e, sim, a mais desigualdade ainda.[21]Ao
menos por enquanto, a orientação para o caráter social do uso das novas
tecnologias I+C permanece para Schiller meramente no plano do desejável. O que
prevaleceria seriam os interesses das empresas. Qualquer governo que queira
forçar com a ajuda da indústria o acesso de seus cidadãos à internet deve
convencer-se antes do princípio de que os investidores particulares nunca
agirão sem pensar no próprio proveito. O cientista político Benjamin R. Barber
alerta inclusive contra um “totalitarismo comercial”.[22]
Por isso, não basta que o estado queira
garantir a todos os cidadãos o acesso à internet. O aumento da presença da
população na rede apenas transferiria o desnível social para dentro do espaço
virtual. Caso a comercialização da informação no cyberspace continue
progredindo, o cidadão conectado à rede experimentará uma nova forma de
marginalização. Para resolver esse problema, o Estado precisa oferecer, ao lado
dos sites gratuitos de e-government, as possibilidades de criação de redes
livres para os cidadãos. Esse aspecto, descrito como “more community” e “more
content” no World Development Report de 1999, deveria ter a finalidade de
franquear a todos os cidadãos, independentemente de sua situação econômica, o
acesso gratuito a todas as informações sobre questões de natureza econômica e
cultural de seu entorno. É um aspecto que aqui precisa ser destacado, uma vez
que costuma ser negligenciado sempre que se trata de anunciar medidas
governamentais para a ampliação do acesso à internet. Esse “serviço universal”
que ofereça em qualquer lugar do país informação e comunicação a todos os
cidadãos a preços compatíveis nunca poderá atingir o nível de qualidade
necessário se não houver uma participação política ativa da parte dos próprios
envolvidos.
Considerações finais
Podemos concluir que as áreas de engenharia
genética, robótica e nanotecnologia, abordadas inicialmente, possibilitam um
“uso dual” com potencial de risco anteriormente inexistente. Esse termo usado
pelo Pentágono implica que, antes do desenvolvimento de uma arma perigosa, é
necessário mostrar a possibilidade de seu uso pacífico. O passado ensina que a
humanidade não foi capaz de chegar a um uso responsável do produto de “uso
dual” que foi a bomba atômica. Foram cometidos todos os erros imagináveis, só
faltou mesmo a destruição da humanidade por uma guerra nuclear. No fim,
chegou-se a um Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares e à convicção
tardia de governos, como o dos EUA e da Alemanha, de que é preferível abandonar
definitivamente essa tecnologia na geração de energia. Mas antes que se
chegasse a esse ponto houve Hiroshima, a crise dos mísseis soviéticos em Cuba,
Tchernóbil e o afundamento de vários submarinos nucleares russos que continuam
no fundo do mar como verdadeiras bombas-relógio. E ainda existem regimes
questionáveis que não desistem de sua aspiração à posse de bombas nucleares.
Diante desse cenário, as novas tecnologias
relativamente inofensivas de I+C poderiam até contribuir hoje em dia para a
criação nos cientistas, nos detentores do poder político e na crescente comunidade
dos internautas de uma consciência de responsabilidade global para os problemas
de um futuro previsível. O uso das tecnologias descritas precisa revestir-se de
mais cuidados do que foi possível praticar no caso da energia nuclear. A
poderosa tampa da caixa de pandora continua fechada. Segundo a lenda grega,
Zeus enviou essa caixa aos homens para castigá-los pelo roubo do fogo por
Prometeu. Mas a caixa foi aberta e todos os males e sofrimentos se espalharam
pelo mundo. Só sobrou dentro da caixa a esperança.
Tradução Alfred Keller, São Paulo 16/10/2000.
Agradeço a Marcelo Gross Villanova pelas sugestões e pela revisão final do
texto.
[1] Professor de Ciência Política e de Relações Internacionais (Dr. phil. habil.), Universidade Católica de Eichstätt/Baviera (Alemanha). Professor visitante (DAAD) da Universidade Federal de Pernambuco, Recife. Veja www.ccba.com.br (Intercâmbio) e christiano.german@ku-eichstaett.de - Recife 10/11/2000
[2]
Cf. Rifkin, Jeremy: “Genetische Diskriminierung. Eine neue Form des sozialen
Vorurteils”, in Süddeutsche Zeitung, 29 de junho de 2000, p. 17, e
Tenbrok, Christian: “Vorsicht, Kamera! Unglaubliche Geschichten aus der Arbeitswelt in den Vereinigten Staaten”
in Die Zeit, 8 de junho de 2000, p. 28.
[3] Cf. Mieth, Dietmar: “Ethik
angesichts der Beschleunigung der
Biotechnik” in Aus Politik und Zeitgeschichte, B 33-34/2000, 11 de
agosto, pp. 3-9.
[4] Cf. Baer, Tina: “Gute Gene,
schlechte Gene” in Süddeutsche Zeitung, 27 de junho de 2000, p. 2.
[5] Cf. Kurzweil, Ray: “Die Maschinen
werden uns davon überzeugen, dass sie Menschen sind” in Frankfurter
Allgemeine Zeitung, 5 de julho de 2000, p. 51, e seu livro The Age of
Spiritual Machines, Nova York, 1999.
[6] Sobre esse debate, ver www.wired.com, www.edge.org e a mailing-list de whythefuture@wired.com. Além disso www.foresight.com, www.perlentaucher.de e www.stepping-stones.de
[7] Cf. Süddeutsche Zeitung Magazin: Entrevista com Freeman Dyson, pp. 31-33. Além disso: Dyson, Freeman J., Die Sonne, das Genom und das Internet, Frankfurt a. M., 2000.
[8] Já em meados dos anos 60, o ex-chefe do fabricante de processadores Intel, Gordon Moore, previu acertadamente que a capacidade dos computadores duplicaria a cada 18 meses.
[9] Cf. a esse respeito German, Christiano: “Caminhos e descaminhos políticos para a sociedade de informação” em Perspectivas Globais da Sociedade de Informação, Centro de Estudos/Konrad-Adenauer-Stiftung, São Paulo, Papers No. 31, 1997, pp. 31-51.
[10] Cf. “Ingenieure haben die
Büchse der Pandora geöffnet”, in VDI-Nachrichten, 23 de julho de 2000,
p. 13.
[11] Ver UNDP: Human Development Report, Globalization with a Human Face, Londres, 1999, especialmente os capítulos “Overview” e “New technologies and the global race for knowledge”. Cf. também www.undp.org/hdro/99.htm
[12] Sobre a situação na América Latina ver Gómez, Ricardo: “The Hall of Mirrors: The Internet in Latin America” in Current History, No. 634, Fevereiro de 2000, pp. 72ss. e Valenti, Esteban: Internet al Sur, Montevidéu : Cal e Canto, 1999.
[13] Ver o estudo da “Initiative D 21” que é usado pelas principais empresas alemãs de computação e software para impulsionar a transformação em sociedade de informação. Cf. www.d21.de e os artigos “Zwei-Klassengesellschaft in den Industrieländern, in Süddeutsche Zeitung, 27 de março de 2000, p. 24 e “Internet-Lücke spaltet Deutschland, in VDI-Nachrichten, 1, setembro de 2000, p. 1.
[14] Cf. “Betrüger setzen auf Karte” in Süddeutsche Zeitung, 19 de setembro de 2000, p. 1.
[15] Cf. “Schröder kündigt große Internet-Offensive an” in Süddeutsche Zeitung, 19 de setembro de 2000, p. 5.
[16] Cf. “Sorge um Habenichtse” in Die Zeit, 16 de junho de 1995, p. 27, e Gerhard Krüger, “Zur Zukunft der Datenverarbeitung” in Forschung & Lehre, No. 9 (1994), p. 373.
[17] Cf. “Die neue Technik darf uns nicht euphorisch machen” in Rheinischer Merkur, 24 de março de 1995, p. 2, e “Aufbruch ins Ungewisse” in Die Zeit, 17 de fevereiro de 1995, p. 37.
[18] Ver a esse respeito German, Christiano: O caminho do Brasil rumo à era da informação, São Paulo (Fundação Konrad-Adenauer), 2000, 132 p. Em alemão: Der Weg Brasiliens in das Informationszeitalter, Sankt Augustin, 1999, 110 p.
[19] Cf. Kaufmann, Bruno: “Die Welt der direkten Demokratie” in Die Zeit, 16 de dezembro de 1999, p. 47.
[20]
Ver a esse respeito Rifkin, Jeremy: Das Verschwinden des Eigentums. Warum wir weniger besitzen und mehr
ausgeben werden,
Frankfurt a. M., 2000.
[21] Cf. Schiller, Herbert I.: “Die Kommerzialisierung
von Information” in: Leggewie, Claus / Maar, Christa, Internet &
Politik. Von der Zuschauer- zur Beteiligungsdemokratie, Colônia, 1998, pp.
134-141.
[22] Cf. Barber, Benjamin R.: “Wie
demokratisch ist das Internet? Technologie als Spiegel kommerzieller
Interessen” in: Leggewie, Claus / Maar, Christa, Internet & Politik, 1998,
p. 120-133.
Retirado de http://www.fes.org.br