Temos visto o termo hacker ser utilizado na mídia como
sinônimo de pirata digital, invasor, vândalo, etc. Cito como
exemplo a matéria de 25/03/00 do jornal o Globo entitulada "Policia
força 'hackers' a desistir de invasões", do jornalista Aguinaldo
Novo, e a matéria do caderno de informática da Folha de São
Paulo de 05/03/00 entitulada "Banda Larga exige mais segurança
no micro", do jornalista Bruno Grattoni.Ambos cometem o mesmo equívoco
-- comum na mídia leiga e que vem contribuindo negativamente para
a evolução do vernáculo da nossa lingua pátria
-- quando oferecem ao leitor uma simplificada tradução
para o anglicismo "hacker", entre parêntesis após
a primeira ocorrência do vocábulo no corpo de seus textos:
piratas de computador
e
piratas da internet (sic.), respectivamente.
Na repetição deste engano, a tradução "simplificada"
contribui para dificultar a compreensão coletiva das novas dinâmicas
sociais postas em marcha com os novos meios de comunicação
virtual, a internet. Quem atua no ramo, sabe que no jargão da informática
em lingua inglesa, o termo "hacker" (lenhador) foi inicialmente
empregado para qualificar quem, possuindo habilidades técnicas para
explorar meandros e nuanças em programas de computador, o fazia.
Um poeta, digamos, nas linguas
intermediárias entre o homem e a máquina. Hackear
é esmiuçar. Não significa, e nem mesmo é
condição para, piratear, vandalizar ou vender serviços
criminosos, como quer o jornalista. Para designar tal conduta existem outros
termos, como "cracker", por exemplo.
Como referência, posso indicar uma reportagem especial da CNN
em ttp://www.cnn.com/TECH/specials/hackers/, ou o dicionário "Wired
style: Principle of English usage in the Digital Age", da editora Constance
Hale, 1999.
Não creio ser justificado o argumento da simplicidade (em beneficio
da compreensão do leitor), que alguns jornalistas usam para insistirem
no engano. Alguns fazem até gracinhas com suas próprias confusões,
responsabilizando outros pela sua falta de clareza com a língua,
tais como a falta de legislação adequada, a falta de segurança,
a falta de "especialistas". Alem de banalizar a questão moral
e jurídica do dolo, essa preguiçosa tradução
esconde o problema dos riscos crescentes que as
tecnologias da informação embutem. Hoje em dia, com a
popularização das ferramentas que exploram defeitos e falhas
de segurança de softwares na internet, um cracker não precisa
mais ser um hacker, e um novo termo surge no jargão da informatica
em ingles para designar os crakers que não são hackers: são
os "script kiddies" (algo como 'garotos com receitas de bolo').
A insistência nesse erro aqui e ali contribui não apenas para confundir habilidade com má intenção no mundo virtual, refletindo e amplificando a tendência humana ao medo ante o desconhecido, como também encobre a complexidade do problema da segurança nele. As perdas com fraudes eletronicas na industria financeira giram hoje em torno de US$ 50 bilhões anuais, segundo algumas estimativas que circulam em listas de discussão sobre segurança na internet. Essas fraudes são praticadas por quadrilhas altamente especializadas, e não por script kiddies que buscam notoriedade desfigurando páginas informativas na web.
Os hackers não podem ser coletivamente cassificados como
criminsos indesejáveis, pois alguns deles desempenham o papel semelhante
ao da evolução na natureza para o software, descobrindo falhas
de segurança nos softwares em uso pelo mundo e reportando suas descobertas
aos desenvolvedores, às vezes sugerindo estratégias de reparo.
São também os grandes responsáveis pelo enorme patrimônio
intelectual em, software livre que circula pelo mundo hoje e dos quais
todos engajados
na revolução digital estão se beneficiando. Chamar
a estes de "hackers éticos", como fazem alguns para atenuar
o erro de
tradução, apenas agrava tal confusão, pois assume
a desonestidade como condição preliminar e natural à
ação associada. E há muito software ruim por ai, acredite-me,
precisando de hackers normais (quero dizer honestos) para corrigi-los
ou denunciá-los. (como referência, posso indicar o site http:\\www.badsoftware.com).
Além disso, é possível que por trás desta
onda difamatória estejam interesses da indústria do software
proprietário, procurando minar a confiabilidade pública no
software livre, como deixa transparecer seu lobby legislativo pelo UCITA.
Sob o manto do combate à pirataria e o argumento da uniformização
de leis, esta nova legislação americana sobre licença
e uso do software poderá sufocar o movimento por liberdade na produção
e uso de software
Aos olhos que conhecem a origem do termo, seu uso como empregado por
Aguinaldo Novo e Bruno Grattoni indica que o jornalista não fez
seu dever de casa ou não entende suficientemente bem o assunto sobre
o qual está se ofercendo para traduzir. Gostaria que esta
mensagem seja recebida não como pedantismo, mas como estímulo
ao bom jornalismo, haja
vista a responsabilidade de veículos de massa do porte do seus
jornais em relação à nossa lingua.
Retirado de: http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/hackers.htm