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A Internet e a Constituição dos ESTADOS UNIDOS
 

David S. Willig
 

"A Internet teve a sua origem numa rede de computadores de uso principalmente militar nos Estados Unidos durante os anos 60."







I. INTRODUÇÃO

Todo mundo sabe o que é a Constituição, mas nem todos sabem o que é a Internet. O que é a Internet? A Internet entrou na consciência da população geral três ou quatro anos atrás, mas na realidade existe já mais ou menos há 30 anos. A Internet agora é um fenômeno mundial, representando um mercado global de 300 milhões de dólares, e que promete alcançar até 10 bilhões daqui ao fim do século. Porém, a dimensão do mercado de serviços de Internet não ajuda a compreender o que é exatamente este fenômeno. Preparando esta palestra, buscava uma definição da Internet, uma definição que servisse para o espírito jurídico, e neste sentido encontrei uma opinião do Procurador-Geral do Estado da Flórida1 que descreve a Internet da seguinte maneira:

A Internet é uma rede mundial, não regulamentada, de sistemas de computadores, conectadas por comunicações de fio de alta velocidade e compartilhando um protocolo comum que lhes permite comunicar-se. Originalmente concebida para servir aos objetivos do governo e da educação, a Internet tem crescido nos últimos anos, tanto que cada vez mais cidadãos privados obtiveram acesso através de empregos públicos e prestação de serviços privados. A popularidade da Internet cresceu dramaticamente com o desenvolvimento dos ditos programas de web browser, designados para permitir ao usuário navegar mais facilmente na Internet e o seu componente gráfico, o World Wide Web. Estes programas oferecem aos usuários a oportunidade de olhar imagens e ouvir sons de todas as partes do mundo, e de mudar de um lugar a outro simplesmente por destacar e selecionar o destino que desejam visitar.

A Internet teve a sua origem em uma rede de computadores de uso principalmente militar nos Estados Unidos durante os anos 60. Ela seguiu crescendo até incluir redes informáticas de universidades e outros sistemas nacionais, sendo agora a rede das redes, quer dizer, a rede de computadores mais extensiva do mundo. Na atualidade, a Internet não é "propriedade" de nenhum país, e a parte mais usada da Internet, que se chama em inglês o World Wide Web (tradução aproximativa – O Tecido Mundial), foi concebida e criada na Suíça.

Frente a este fenômeno informático que não cessa de crescer, o jurista naturalmente vai interrogar-se para saber quais são os problemas que apresenta a Internet de nosso ponto de vista jurídico?

Permito-me tomar inspiração nas palavras do eminente jurista Sérgio Ferraz: "Trata-se, indiscutivelmente, de tema de notável riqueza, impossível de ser totalmente exposto num breve discurso que deve abordar uma matéria tão vasta."2 Porém, vamos abordar um plano de análise a fim de examinar se a Internet merece uma situação jurídica distinta dos outros meios de divulgação, e, se é este o caso, de compreender por quê. Nos perguntamos, então, se trata-se de novas fronteiras do mundo jurídico, ou simplesmente de uma nova aplicação das leis existentes dentro da mesma estrutura jurídica e constitucional?

Segundo um artigo de Alain Bensoussan, o brilhante advogado francês especializado no Direito da alta tecnologia, a Internet, pelo menos em França, já está regulamentada.3 Até certo ponto, estou de acordo. Por exemplo, existem, não só nos Estados Unidos, mas na legislação de vários países, leis sobre computadores e os dados contidos neles, leis sobre o uso do telefone ou a infra-estrutura telefônica, e leis contra crimes praticados através do telefone.

Não obstante, é certo que a Internet não foi criada para facilitar o cometimento de crimes, se bem que seja um uso possível da rede. Sem falar da utilidade de pesquisa científica ou acadêmica, a Internet serve para divulgação de informação, como meio de publicidade, e meio de comunicação através de correio eletrônico. A Internet representa, então, um novo mecanismo para fazer as mesmas coisas que o ser humano está fazendo desde há séculos, isto é, trocando informação e comunicando-se. A diferença agora é a comunicação mais rápida, mais apontada e feita de maneira mais extensiva.

Alguns anos atrás nos Estados Unidos, todo o mundo falava dos sistemas de televisão a cabo e o rico futuro dos sistemas de quinhentos canais para satisfazer todos os segmentos de público. Isto foi antes de a Internet entrar na consciência geral. Ainda mais, graças à maneira de ter acesso à Internet, combinada com a capacidade retentiva de computadores sempre mais avançadas, a Internet tem outra vantagem. Nesta nova época do futuro, uma "emissora" da Internet não só pode ter um público de milhões de pessoas, como também saber ao mesmo tempo exatamente quem são, facilitando a coleta de dados do seu mercado. A Internet forçou a comunidade global a avaliar de novo até o futuro da televisão a cabo, porque agora temos a possibilidade não de quinhentos canais, senão de quinhentos mil canais. A Internet não só vai mudar o mundo dos computadores, senão o mundo inteiro. Vamos examinar, então, alguns problemas jurídicos da Internet, especialmente com referência à proteção constitucional nos EUA.
 
 

II. PROBLEMAS JURÍDICOS DA INTERNET
 
 

De modo geral, todas as questões jurídicas originadas no uso da Internet têm uma dimensão constitucional. De maneira simplificada, vamos falar aqui de duas categorias de interesses que merecem a proteção constitucional: os interesses de Propriedade e os interesses dos Direitos Humanos.
 
 

A. os interesses de propriedade
 
 

A nossa constituição nos EUA protege o direito de ter e de manter propriedade. Por extensão, podemos imaginar que o direito de propriedade inspira vários tipos de leis.

1. Leis para estabelecer sistemas cadastrais para determinar, entre outras coisas, os donos de propriedades imobiliárias, e sobre a expropriação.

2. Leis contra os crimes de propriedade, como roubo, arrombamento, fraude, (sem contar a categoria de crimes que implicam ferir a integridade física da vítima).

3. Leis que regulam a responsabilidade civil ou comercial de ressarcir as perdas econômicas da parte demandante. Simplesmente, vamos incluir nesta categoria o ressarcimento da difamação, interferência com contratos, ou com relacionamento vantajoso de negócios.

Esta categoria de propriedade tem, evidentemente, relacionamento com a divisão dos interesses de direitos humanos, por exemplo, o ressarcimento de dano à integridade física, e a difamação no contexto de uma pessoa que não se considera como personagem pública (ingl. public figure), têm um aspecto importante de direitos humanos. A primeira, a integridade física, não é de interesse para nós hoje, simplesmente porque parece pouco provável que dano físico resulte do uso da Internet. Ao contrário, a difamação apresenta uma realidade mais problemática, não só pela facilidade de divulgar a difamação através da Internet, mas também pelo anonimato com o qual se pode fazê-lo, até agora.

4. Sempre pensando nas palavras de Sérgio Ferraz, a última categoria que vamos incluir aqui é a das leis contra a violação de Direitos Autorais e assimilados, particularmente direito autoral ‘clássico’, chamado em inglês copyright, e marcas comerciais. Isto é de interesse pela possibilidade de tais violações clássicas, (o uso da marca à Internet sem autorização, por exemplo,) e também da possibilidade de novas violações (p.ex., usado como designação de endereço URL de uma página do World Wide Web, que poderia constituir uma forma de concorrência desleal).

Todas as categorias citadas, a proteção da propriedade, dos interesses econômicos dos direitos autorais, de reputação difamada, até a repressão do crime, têm a sua origem, no sistema jurídico dos EUA, na Constituição, de maneira direta ou indireta. A Constituição é a lei orgânica que define, por exemplo, a competência legislativa das matérias, assim que estabelece os princípios de base da execução das leis penais e a conduta dos tribunais repressivos, através do famoso due process of law (devido processo legal). O devido processo legal deve respeitar-se igualmente nos tribunais civis e comerciais, senão pode resultar numa perda de interesse econômico, que é protegido pela Constituição.
 
 

B. PROBLEMAS DE INTERESSE DE DIREITOS HUMANOS
 
 

A proteção de propriedade é um elemento importante da Constituição, mas os fundadores dos EUA não pensavam só na propriedade, senão também nos direitos humanos, e sobretudo na liberdade em várias formas. De acordo com a teoria orgânica que seguimos hoje, temos em mente um conceito amplo de direitos humanos, incluindo, por exemplo, a necessidade do devido processo legal nos tribunais de direito de família. A Constituição dos Estados Unidos é a fonte fundamental da proteção dos direitos humanos contra o racismo e a discriminação baseada na religião, origem nacional, etc. Também assegura a proteção da liberdade de religião, de reunião em grupos, de expressar-se. No debate atual sobre a Internet, são realmente os aspectos do lado dos direitos humanos que recebem muita atenção e, sobretudo nos Estados Unidos, do aspecto da liberdade de expressão.

A Constituição dos EUA protege o direito de "livre discurso" [a minha tradução do inglês free speech], que não é limitado à expressão "falada", senão também toda forma divulgada, inclusive emissão de rádio ou televisão e publicação de imprensa. Em 1969, a Corte Suprema dos Estados Unidos determinou que o "discurso" não podia ser castigado, se não tratar-se de uma "incitação a uma ação ilegal iminente."4 É verdade que alguns tipos, não todos, de "discurso", que podem ser provocadores no mundo físico, serão muito menos ameaçantes quando exibidos numa tela de computador.

A liberdade de expressão é legitimamente limitada nos casos indicados na primeira parte, dos interesses de propriedade. Por conseguinte, a expressão não é livre para fazer crime de fraude, ou de fazer difamação de uma pessoa, ou para usurpar a marca ou a obra de outra pessoa de maneira a violar os direitos autorais ou de propriedade industrial, etc.

Para fazer uma abordagem prática da situação jurídica da Internet, a pergunta é saber, primeiro, quais são os limites do uso da Internet, e segundo, quais são os limites legislativos que podem restringir o seu uso. É fora de questão que a Internet seria teoricamente sujeita a esforços legislativos nos EUA e em outros países, pois, para examinar os limites legislativos, há que se analisar os aspectos internos e externos da legislação possível.

Com referência ao aspecto interno do potencial do poder legislativo, parece sem muita controvérsia que o Congresso dos EUA (o nosso corpo legislativo federal) é competente para estabelecer leis e regras sobre o uso da Internet dentro dos EUA, como tem a competência de legislar toda atividade que pode ter impacto nas relações entre os diferentes estados, ou com países estrangeiros. Neste sentido, o Congresso federal teria o mesmo poder legislativo sobre a Internet que tem sobre a indústria telefônica ou de transporte.

Quando faço referência ao efeito interno estou falando do relacionamento entre os 50 estados dos EUA, o Distrito de Colúmbia (a capital) e os territórios como Porto Rico, Guam, etc. Neste breve discurso, vou limitar-me a discutir a situação no interior dos EUA. Não é que os aspectos internacionais não tenham importância, mas apresentam uma situação mais complicada, e não se sabe ainda se a estrutura jurídica internacional existente é apta. Sobretudo, hoje não vamos entrar na questão dos efeitos extraterritorais de leis nacionais (na época de debate sobre várias leis recentemente legisladas dos EUA, que têm, quase expressamente, efeito extraterritorial: Helms-Burton; Libya-Iran sanctions). O regulamento internacional da Internet vai exigir um esforço coletivo ao nível mundial, possivelmente através de um documento de dimensão multilateral semelhante às convenções sobre as marcas e os direitos autorais.

Lembremo-nos de que a origem da Internet foi uma rede de computadores do governo dos EUA. O alcance atual da Internet é tal que se pode dizer que "criaram um monstro que não podem destruir". A Internet, será ainda mais poderosa que o fax que desempenhou um papel tão importante quando das manifestações dos estudantes da Praça Tiananmen na China, no ano 1989.

Nos EUA tivemos uma experiência recente com a lei de Decência de Comunicações, de 08.02.96, que tinha por objetivo restringir a exibição de matéria pornográfica na Internet. O intento do Congresso dos EUA era criar um ambiente seguro para os menores de idade que usam a Internet. O paradoxo da situação é que a maior parte dos legisladores tinha pouco conhecimento da Internet e de seu funcionamento, com certeza muito menos que os menores que eles queriam proteger pela legislação.

As penalidades de violação da lei eram severas: até dois anos de prisão e multas que podiam alcançar o montante de U$ 250.000. Porém, desde o princípio existia dúvida sobre esta lei pela redação ambígua que implicava, teoricamente, a sua violação ao introduzir na Internet importantes obras de literatura que contêm linguagem licenciosa.

Inevitavelmente, houve um desafio judicial, reivindicando a inconstitucionalidade da legislação. Uma formação colegial de três juízes na Filadélfia, o berço da Constituição dos EUA, ordenou a anulação, ou melhor dito, a não-execução da lei, e proibiu temporariamente as autoridades federais de investigar violações suspeitas. É um exemplo do controle do poder judicial sobre o poder legislativo, freiado pela Constituição.

Aquela decisão havendo saído no mês de junho de 1996, mais ou menos, não se sabe se ouvimos o fim da história. Provavelmente não, sendo uma instância sumamente importante a insistência dos procuradores federais, e a opinião geral é que o assunto está destinado a ser levado ante a Corte Suprema dos EUA. O senador que foi o proponente principal da legislação ainda defende a lei, insistindo que foi escrita na base de decisões judiciais da Corte Suprema, e expressou a sua confiança em que a lei terá a sustentação desta mesma Corte Suprema.

Analisando os motivos da Corte que anulou a lei, nós, juristas, buscamos sempre uma explicação baseada no direito, se bem que seja a sua fonte mais próxima a lei orgânica e fundamental que é a Constituição. A primeira observação é que nossa Constituição protege o "livre discurso" ou a "liberdade de expressão" em todas as formas. Neste sentido, parece normal que a Corte protege esta liberdade quando se trata da Internet. Ao mesmo tempo, parece que a Corte da Filadélfia considerava que a lei apontava a Internet para uma regulamentação mais severa que o regulamento da imprensa ou de emissão radiofônica ou de televisão. A pergunta que se põe, então, é de saber se a Internet, pela particularidade da sua natureza, exige uma estrutura de regulamentação legal mais forte, menos forte, ou de força igual à das outras formas de divulgação.

Não é impossível argüir em favor das três possibilidades. O argumento para a igualdade é o mais simples. No entanto, se pode dizer que a Internet, ao menos neste momento, não precisa da mesma regulamentação que as outras formas, senão, menor, porque não tem a mesma acessibilidade. Ainda nos EUA, o maior mercado mundial da Internet, não é que todas as famílias têm computador e subscrição de um serviço que permite acesso à Internet. A diferença para a televisão é que não é um ato simples de ligar o computador e de ver frente aos olhos imagens pornográficas. Ademais de ter o computador e o serviço de Internet, navegar no mundo do ciberespaço, se não se tem um endereço preciso, requer fazer pesquisa que nem sempre dá satisfação ao pesquisador. Cabe dizer que os mecanismos de pesquisa da Internet estão em melhoramento constante, e são as fontes principais das grandes fortunas feitas com a Internet, até agora.

Do outro lado, se pode manter que a Internet ainda precisa de mais regulamentação, sendo um meio de comunicação e de divulgação de alcance sem precedente, com um futuro desconhecido. Uma polêmica existente, neste sentido, é a restrição nos EUA ao uso e, mais importante, à exportação de certos sistemas de "ecriptação" (codificação técnica) para preservar segredos e outras informações confidenciais passados através de computadores.

Parece que a decisão dos juízes da Filadélfia foi baseada num estudo da Internet, não só do ponto de vista jurídico, senão também técnico. Uma conclusão do estudo é que o perigo para os menores de encontrar imagens ou matérias pornográficas será melhor controlado pelos pais e professores, observando que a obscenidade (distinguida da pornografia) e a exploração pornográfica de menores já são sujeitas a leis repressivas.

Do ponto de vista da Constituição dos EUA, provavelmente o ponto mais importante da decisão de Filadélfia, justificando uma proteção igual, senão maior, para a liberdade da Internet, vem da natureza mesma da Internet, e, especialmente, da sua natureza interativa. "Na qualidade de ser a forma mais participativa de discurso de grande divulgação", escreveu o tribunal, "a Internet merece a mais rigorosa forma de proteção contra a incursão do governo."

Podemos concluir, então, da seguinte maneira: a Internet, combina elementos de imprensa, de televisão e de difusão radiofônica, de telefone e de fax. A natureza particular da Internet é que, pela primeira vez na história do ser humano, cada leitor ou espectador não tem que contentar-se com uma participação passiva. Ele, ou ela, pode intervir pessoalmente, agir e participar ativamente na criação do conteúdo de um meio de comunicação com o alcance de milhões de outras pessoas, e tudo isto em tempo real.

O leitor não está limitado a ler; também pode escrever e divulgar a muitas outras pessoas. O espectador não está limitado a olhar, agora pode participar na criação do filme. O público torna-se fonte de criação. Qualquer pessoa, equipada de um computador, pode publicar o seu próprio jornal eletrônico. Talvez o futuro da difusão através da Internet será, não apenas de quinhentos mil canais, senão de cinco milhões de canais. Isto é a diferença da Internet, e é isto que gera tanto debate sobre o tema. Não se sabe até onde, nem até que ponto irá o resultado do debate; isto será para todos nós observarmos e adaptar-nos.
 
 

NOTAS
 
 

1. Florida Attorney General, Advisory Legal Opinion, Ago 95-70

2. A Declaração de Inconstitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, S. Ferraz, Revista da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, Ano VII, nº 4, 2º semestre de 1993, pág. 197.

3. Fonte desconhecida, matéria vista numa revista na sala do escritório de Me. Bensoussan.

4. Brandenburg v. Ohio, 395 U.S. 444 (1969).
 
 

DAVID S. WILLIG é Advogado em Miami, na Flórida (EUA).
 
 

Retirado de: http://www.angelfire.com/