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O descumprimento da função sócio-ambiental como fundamento
único da desapropriação para reforma agrária
Daniel Leite da Silva*
Sumário: 1- Introdução. 2- A desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária. 3- A desapropriação por descumprimento da função
sócio-ambiental. 4- Imunidade à desapropriação-sanção – O conceito
jurídico-constitucional de propriedade "produtiva". 4.1- Acepção
econômica de propriedade produtiva. 4.2- Acepção jurídica de propriedade
produtiva. 5- Conclusão.
1- Introdução
O presente artigo
tem como objetivo tecer breves considerações sobre o cabimento da
desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária quando
constatado que o imóvel rural descumpre a sua função social exclusivamente em
sua vertente ambiental.
Nestas singelas
linhas buscar-se-á compreender um pouco mais do regime jurídico-constitucional
da desapropriação-sanção, verificando-se se a imunidade consagrada no art. 185,
inc. II, da Carta Federal impede a expropriação do imóvel rural que degrada o meio
ambiente visando obter grande quantidade de gêneros agropecuários e, por
conseqüência, alcançar altos índices de lucratividade.
Sem a pretensão de
esgotar o assunto, mas antes, de fomentar o debate, passamos à análise do tema.
2- A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária
Quando tratou dos
direitos e garantias fundamentais, a Constituição cuidou de prever em seu art.
5º, inc. XXIII, que a propriedade atenderá a sua função social. No mesmo giro,
estabeleceu no art. 170, caput
e inc. III, que a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, devendo observar, dentre outros, o princípio da
função social da propriedade.
Dentro do título
referente à ordem econômica, a política fundiária e a reforma agrária
encontraram seu locus
normativo, subordinando-se, por tal razão, aos ditames do citado art. 170 da
Lei Fundamental. Visando dar concretude ao princípio da função social, o Poder
Constituinte Originário definiu os requisitos para que a propriedade rural seja
considerada socialmente útil, cominando, também, a sanção oponível àqueles que
violem tal obrigação. Consta da norma, verbis:
"Art. 186. A
função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e
graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I - aproveitamento
racional e adequado;
II - utilização
adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III - observância
das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV - exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores" (grifo
nosso).
"Art. 184.
Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma
agrária, o imóvel rural que não esteja
cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em
títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real,
resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão,
e cuja utilização será definida em lei" (grifo nosso).
O art. 186, acima
transcrito, deixa claro que a função social do imóvel rural possui quatro
elementos (ou sub-funções): a) uso racional; b) preservação ambiental; c)
observância da legislação trabalhista; e d) bem-estar.
De igual modo,
restou evidenciado que a função social somente é cumprida quando respeitados todos os elementos descritos nos
incisos do art. 186, pois a Carta Magna utilizou o advérbio
"simultaneamente", atrelando-os de forma definitiva. A contrario sensu, o imóvel que
afronta alguma destas sub-funções não cumpre a sua função social.
Conforme expressas
e inequívocas disposições constitucionais, a propriedade rural deve cumprir sua
função social, sujeitando-se à desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária quando inadimplida esta obrigação.
Pode-se concluir
então que: i) a propriedade imobiliária rural está obrigada a cumprir a função
social; ii) a função social somente é realizada quando seus quatro elementos são
respeitados simultaneamente; iii) a violação a qualquer sub-função descrita no
art. 186 da CF implica descumprimento da função social; e iv) o não atendimento
da função social autoriza a desapropriação por interesse social para fins de
reforma agrária, também chamada de desapropriação-sanção.
3- A desapropriação por descumprimento da função sócio-ambiental
Do que exposto
acima, parece ser tranqüilo o cabimento da desapropriação-sanção do imóvel
rural que causa degradação ambiental, pois restará maculada a função social, o
que autoriza a incidência do art. 184.
Todavia, a questão
não se resolve tão facilmente.
Muitos
proprietários que causam degradação ambiental, notadamente o desmatamento das
áreas de reserva legal e de preservação permanente previstas na Lei 4.771/65
(Código Florestal), conseguem, em razão disto, maior extensão de terra
agricultável, logrando grande quantidade de gêneros agropecuários. Alegam então
que seu imóvel é "produtivo", invocando a imunidade estatuída no art.
185, II, da CF/88, que dispõe:
"Art. 185.
São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
(...)
II - a propriedade
produtiva".
Com a devida venia daqueles que defendem tal
raciocínio, ousamos divergir. Conforme tentaremos demonstrar a seguir, a
produtividade prevista na Constituição não se confunde com a obtenção de muitos
elementos agropecuários (grãos, gado, etc.), mas revela verdadeira utilização
adequada aos fins sociais e econômicos da nação brasileira.
O e. Supremo
Tribunal Federal, embora não tenha enfrentado de forma direta a questão do
cabimento da desapropriação com fundamento exclusivo no descumprimento da
função sócio-ambiental, manifestou-se pela sua possibilidade, verbis:
Pantanal
mato-grossense (cf, art. 225, par. 4) - possibilidade jurídica de expropriação
de imóveis rurais nele situados, para fins de reforma agraria.
A norma inscrita
no art. 225, parágrafo 4, da constituição não atua, em tese, como impedimento
jurídico a efetivação, pela União Federal, de atividade expropriatória
destinada a promover e a executar projetos de reforma agrária nas áreas
referidas nesse preceito constitucional, notadamente nos imóveis rurais
situados no pantanal mato-grossense. A própria Constituição da República, ao
impor ao Poder Público dever de fazer respeitar a integridade do patrimônio
ambiental, não o inibe, quando necessária a intervenção estatal na esfera
dominial privada, de promover a desapropriação de imóveis rurais para fins de
reforma agrária, especialmente porque um dos instrumentos de realização da
função social da propriedade consiste, precisamente, na submissão do domínio a
necessidade de o seu titular utilizar adequadamente os recursos naturais
disponíveis e de fazer preservar o equilíbrio do meio ambiente (cf, art. 186,
II), sob pena de, em descumprindo esses encargos, expor-se a
desapropriação-sanção a que se refere o art. 184 da Lei Fundamental (MS 22.164,
DJ 17.11.95, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário).
Ao sentenciar a
ação ordinária 2004.43.00.001111-0/TO, ajuizada contra o INCRA, que visava
declarar a nulidade de processo administrativo, o MM. Juiz Federal Dr. José
Godinho Filho julgou improcedente o pedido, afirmando:
"É
inadmissível qualquer supressão da vegetação nativa da reserva legal, sob pena
de violação do dever de defesa e de preservação do meio ambiente ecologicamente
equilibrado, imposto não só ao poder público, como a toda coletividade pela
Constituição Federal (art. 225) e, em especial, ao proprietário do imóvel rural
em que a reserva florestal se encontra inserida (Lei 4.771/65).
Em suma, a Fazenda
Bacaba revelou índices satisfatórios de utilização da terra (93%) e de
exploração econômica (599%), mas não está imune à desapropriação por interesse
social para fins de reforma agrária porque não cumpre a sua função social,
especialmente no que tange ao requisito de preservação do meio ambiente".
(...)
"Assim, a
Fazenda Bacaba, não obstante possua graus de utilização da terra e exploração
econômica superiores aos estabelecidos em lei, NÃO SE ENQUADRA NO CONCEITO DE PROPRIEDADE
PRODUTIVA insuscetível de expropriação previsto no art. 185, II, da
CF/88, porque não atende ao requisito do art. 186, II, da Lei Maior"
(grifo nosso).
Igual entendimento
é externado por VALDEZ ADRIANI FARIAS e JOAQUIM MODESTO PINTO JÚNIOR em
publicação intitulada "Função Social da Propriedade – Dimensões Ambiental
e Trabalhista", encartada na "Série Debate Nead, nº 2"(1).
De nossa parte,
defendemos de igual modo que a propriedade rural que não respeita,
simultaneamente, todos os elementos da função social contidos no art. 186 da
CF/88 pode ser desapropriada para fins de reforma agrária.
A Constituição
Federal, art. 184, caput,
primeira parte, outorgou à União o poder-dever
de desapropriar para fins de reforma agrária o imóvel rural que não estiver
cumprindo sua função social.
Complementando a
estrutura do sistema constitucional de reforma agrária, a Carta Cidadã
estabeleceu no art. 186 os quatro elementos da função social da propriedade
rural: i) aproveitamento racional e adequado; ii) preservação do meio ambiente;
iii) respeito às normas trabalhistas; e iv) bem-estar.
Como dito alhures,
merece destaque a expressa disposição constitucional que vincula o cumprimento
da função social ao atendimento simultâneo
dos elementos funcionais ali estabelecidos. Não basta que o imóvel rural atenda
um ou alguns dos requisitos impostos. Somente com a presença de todos poderá
afirmar-se que o imóvel está adequado ao interesse coletivo.
A violação de apenas uma sub-função é suficiente para configurar o descumprimento da
função social, caso em que a União estará autorizada a promover a
desapropriação-sanção.
Conforme afirmado
pelo e. Supremo Tribunal na ADIn 2213, sobre o direito de propriedade recai
verdadeira hipoteca social. O
Estado assegura o jus domini ao
cidadão, ao passo que este assume quatro obrigações para com a coletividade
(elementos da função social), sendo responsável pelo inadimplemento de qualquer
delas, fato que autoriza o Estado a executar sua garantia, assumindo a
propriedade do bem e imprimindo-lhe destinação socialmente aceita.
Esta a essência
jurídica constante dos artigos 184 e 186 da Constituição. Assim, o proprietário
que explora seu imóvel causando degradação ao meio ambiente ou desrespeitando
as leis de proteção à natureza fica sujeito à desapropriação por interesse
social para fins de reforma agrária.
Superado o ponto
atinente ao cabimento da desapropriação-sanção por descumprimento da função
sócio-ambiental, há que se perquirir acerca da compatibilidade entre os
dispositivos analisados (art. 184 e 186) e aqueloutro que prevê a imunidade à
desapropriação (art. 185, II).
4- Imunidade à desapropriação-sanção - Conceito jurídico-constitucional
de propriedade "produtiva"
A questão
principal a ser dirimida restringe-se à escorreita interpretação do art. 185,
II, em face dos artigos 184 e 186, todos da CF/88. Em auxílio ao leitor, vale
transcrever novamente o dispositivo constitucional que prevê a imunidade à
desapropriação:
"Art. 185.
São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
(...)
II - a propriedade
produtiva".
Há que se
perquirir, então, qual o conceito jurídico-constitucional
de "propriedade produtiva". Somente a partir de tal definição
será possível aferir a constitucionalidade do ordenamento infraconstitucional.
Tal conceituação deverá ser extraída da própria Constituição, em verdadeira
interpretação horizontal, analisando-se todos os dispositivos pertinentes ao
assunto, evitando-se a "interpretação por tiras".
4.1– Acepção econômica de propriedade produtiva
Afirmam uns que a
expressão "propriedade produtiva" deve receber interpretação fechada, considerando-se como tal o
imóvel rural que gera muitos produtos agropecuários (eficiência) aproveitando-se
de fração razoável do solo (utilização). Diz-se que tal interpretação é fechada
porque exclui de seu âmbito os elementos da função social (racionalidade,
ambiente, trabalho e bem-estar). Trata-se, portanto, de uma acepção econômica de propriedade produtiva.
Adeptos desta
interpretação afirmam que a produtividade restringe-se ao inc. I do art. 186
(uso racional e adequado). Asseveram, ainda, que a propriedade economicamente
produtiva pode descumprir a função social, v.g., degradando o ambiente e/ou
explorando trabalho escravo, e mesmo assim não sofrerá a desapropriação para reforma agrária.
Em suma,
propriedade produtiva, imune à desapropriação, é aquela que gera muitos gêneros
agropecuários, o que se confundiria com aproveitamento racional e adequado (art.
186, I, CF).
Data venia, tal interpretação não pode prevalecer por quatro razões fundamentais.
A primeira, de ordem normativa, porque
"produtividade" (art. 185, II) e "aproveitamento racional e
adequado" (art. 186, I) não se
confundem. Aqueles que defendem tratar-se da mesma coisa pecam por não
estarem atualizados à inovação jurídico-normativa perpetrada em 05 de outubro
de 1988. O Estatuto da Terra (Lei 4.504/64), de fato, colocava a "produtividade"
como elemento da função social, verbis:
Art. 2° É assegurada
a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua
função social, na forma prevista nesta Lei.
§ 1° A propriedade
da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:
a) favorece o
bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de
suas famílias;
b) mantém níveis
satisfatórios de PRODUTIVIDADE;
c) assegura a
conservação dos recursos naturais;
d) observa as
disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a
possuem e a cultivem.
Todavia, a
Constituição Federal inovou na estruturação da função social, dizendo que a
mesma será cumprida quando a propriedade for "utilizada racional e
adequadamente". A produtividade deixou de ser elemento da função social e
foi erigida constitucionalmente a fator imunizante à desapropriação-sanção, passando a ter conteúdo amplo e abrangente,
interpretado em harmonia com os demais dispositivos constitucionais,
cuja essência não se extrai da
legislação ordinária, mas do próprio seio da Carta Mãe, conforme se verá no
tópico seguinte.
A segunda, de ordem fática, porque esta
interpretação econômica, que tem como produtiva a propriedade que utiliza
fração razoável do solo e gera muitos produtos agrícolas, não estabelece perfeita
correspondência entre "produtividade" e "uso racional e
adequado". A título de exemplo, aquele que se vale de trabalho escravo
para atingir os níveis mínimos de exploração e lucratividade não exerce uso
racional. Pelo contrário, o uso é irracional, bestial, promovendo a
escravização do homem pelo homem, degeneração humana a muito superada em nosso
país, pelo menos do ponto de vista jurídico (Lei Áurea). Ou seja, o imóvel será
economicamente produtivo, mas não será utilizado de forma racional e adequada.
Resta evidente que os conceitos não se confundem. Assim, a adoção da
conceituação econômica permite concluir que existirão propriedades ‘produtivas’
cujo uso do imóvel é irracional
e inadequado, o que não pode ser
admitido.
Terceira. A prevalecer tal interpretação fechada (econômica), o proprietário que tornar seu imóvel ‘produtivo’ de
modo anti-social, valendo-se para tanto de trabalho escravo e danos ambientais,
será premiado com a indenização prévia em dinheiro, vez que somente será
cabível a desapropriação com base no art. 5º, XXIV, da CF. Ou seja, o
proprietário anti-social será beneficiado por sua própria torpeza, o que é
vedado pelos princípios gerais do direito.
A quarta razão para ser refutada a
acepção econômica de propriedade produtiva é o esvaziamento da norma
constitucional (art. 184 e 186). Como dito, ao ser acolhida tal conceituação
poderá afirmar-se que o proprietário rural está autorizado a descumprir por completo o princípio da função social, sem que por isto seja penalizado com a
desapropriação-sanção. Seguindo, então, as regras de hermenêutica, deve ser
descartada a interpretação que retira a eficácia da norma.
Por oportuno, cabe
destacar que a maior parte do desmatamento praticado na Amazônia-Legal volta-se
à expansão da fronteira agrícola, com plantio de soja e outros grãos em grande
escala, hipóteses em que, segundo esta acepção econômica, o imóvel que assolou
o meio ambiente será considerado ‘produtivo’ e imune à desapropriação-sanção.
Certamente não era este o objetivo do Poder Constituinte.
Apresentados os
fundamentos para a rejeição da tese econômica, passe-se a analisar o real
sentido constitucional de propriedade produtiva.
4.2– Acepção jurídica de propriedade produtiva
Para que se
preserve o ‘princípio da máxima efetividade da norma constitucional’ é
necessário atribuir-se um conceito jurídico-constitucional
à "propriedade produtiva".
O conceito de
propriedade produtiva deve ser extraído a partir de uma interpretação aberta, incluindo em seu âmbito os
elementos da função social da propriedade. Deste modo, propriedade produtiva é
aquela que, ALÉM
DE CUMPRIR A FUNÇÃO SOCIAL, atinge índices mínimos de quantidade,
qualidade, tecnologia, lucratividade, geração de empregos, distribuição de
renda, etc.
Este é um conceito
jurídico-constitucional, pois agrega aos elementos econômicos (utilização e
eficiência) os elementos jurídicos da função social da propriedade.
Justifique-se a
adoção de tal acepção jurídica.
A primeira das razões reside justamente
no fato de que tal interpretação preserva o ‘princípio da máxima efetividade da
norma constitucional’, fazendo com que os artigos 184 e 186 da CF/88 possam
produzir efeitos em sua máxima amplitude, evitando o esvaziamento da força
normativa destes dispositivos em face da adoção de uma interpretação puramente
econômica.
O segundo motivo para a adoção da
acepção jurídica, semelhantemente ao anterior, está em preservar-se um
princípio de interpretação constitucional: ‘o princípio da unidade da
Constituição’. Pelo conceito jurídico de propriedade produtiva permite-se que
convivam harmonicamente os artigos 184 e 186 com o art. 185, afastando a
perplexidade existente na afirmativa de que a propriedade economicamente
produtiva (acepção econômica) pode descumprir a função social sem ser
desapropriada, quando, na verdade, o art. 184 manda desapropriar toda e
qualquer propriedade que a descumpra. Resta atendida, com isto, a lição de
Canotilho, apud Alexandre de
Moraes(2), segundo o qual o ‘princípio da unidade’ impõe que a
"interpretação constitucional deve ser realizada de maneira a evitar
contradições entre suas normas".
Em terceiro lugar, deve-se ressaltar que
a função social foi erigida à categoria de direito coletivo fundamental (art.
5º, XXIII) e de princípio da ordem econômica (art. 170, III). Com isto, a Carta
Cidadã consagrou a superação do sistema anterior em que se privilegiava o
caráter individual, patrimonial e absoluto do direito de propriedade,
instituindo verdadeiro sistema socializante das relações regidas tanto pelo
direito público quanto pelo direito privado. Em razão desta nova dogmática,
vista expressamente na CF/88 e no CC/02, fala-se hodiernamente em função social
da propriedade, do contrato, da empresa, do processo, do tributo, do trabalho,
etc. Diante deste prisma constitucional, deve-se privilegiar a interpretação
segundo a qual imóvel produtivo é aquele que cumpre sua função social e, além disso, atende a níveis
mínimos de produção economicamente relevante.
Lembre-se que a
Constituição estabeleceu em seu art. 3º os objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil, "cuja consecução deve figurar como vetor
interpretativo de toda a atuação dos órgãos públicos"(3). Desta
forma, os institutos constitucionais devem ser interpretados de modo a permitir
que o Estado brasileiro alcance os objetivos estatuídos na Carta Magna. Afinado
neste diapasão, VALDEZ ADRIANI e JOAQUIM MODESTO(4) afirmam:
"De fato,
vislumbramos a necessidade de realização da reforma agrária como imperativo
constitucional. Vale dizer, decorre de uma interpretação sistemática da
Constituição que o Estado Brasileiro deverá fazê-la. Ou seja, não existe opção
para não fazê-la. Com efeito, quando a Constituição declara como objetivos
fundamentais do Estado Brasileiro, de um lado, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária, e, de outro lado, a promoção do desenvolvimento
nacional, bem como a erradicação da pobreza e da marginalização, com a redução
das desigualdades sociais e regionais (art. 3º), é óbvio que ela está
determinando, implicitamente, a realização pelo Estado, em todos os seus níveis
– federal, estadual e municipal -, também de uma ampla política de distribuição
eqüitativa das propriedades, sobretudo de imóveis rurais próprios à exploração
agrícola e de imóveis urbanos adequados à construção de moradias. A não
realização dessa política pública representa, indubitavelmente, uma
inconstitucionalidade por omissão".
Valendo-se desta
mesma interpretação sistemática, buscando sempre harmonizar os dispositivos
constitucionais em questão, RENATA ALMEIDA D’ÁVILA(5) entende que
propriedade produtiva é somente aquela que cumpre a função social. Verbis:
"A redação do
artigo 185, inc. II, ao estabelecer que a propriedade produtiva é insuscetível
de desapropriação para fins de reforma agrária, aparentemente teria esvaziado o
conteúdo do princípio da função social, uma vez que, nestes termos, a
propriedade produtiva (que atendesse, portanto, somente ao inc. I do art. 186)
estaria imune à desapropriação-sanção, ainda que não cumprisse as demais especificações
elencadas no artigo 186.
Esta polêmica foi
muito bem tratado por Marcelo Dias Varella (1998) que, utilizando-se das regras
ensinadas por Norberto Bobbio, explicou os critérios para a superação da
incompatibilidade entre os dois dispositivos constitucionais (art. 185, inc. II
e art. 186).
Neste aspecto,
adotamos o entendimento pelo qual as normas constitucionais devem ser
interpretadas de forma a coexistirem no ordenamento jurídico, mantendo-se a
aplicabilidade de ambos os artigos, o que resultaria numa antinomia apenas
aparente. Desta feita, para ser considerada produtiva (na forma do art. 185,
inc. II), a propriedade deve, além de ser produtiva (no sentido puramente
economicista – inc. I, do art. 186), observar os outros três critérios impostos
para o cumprimento da função social da propriedade, atendendo ao meio ambiente,
possuindo boas relações de trabalho e promovendo o bem-estar social"
(sic).
Embora não seja de
todo explícito, o profº. Alexandre de Moraes parece compartilhar de tal
entendimento, pois afirma que "a Constituição veda a desapropriação da
propriedade produtiva que cumpra sua
função social"(6) (g.n.).
Nesta linha, a
produtividade não pode ser tomada em um sentido puramente econômico,
significativo de rentabilidade ou lucratividade, pois a busca desenfreada pelo
lucro pode gerar esgotamento do solo, desertificação, assoreamento, etc. Assim,
a produtividade deve ser racional, agregando algo mais ao conteúdo econômico,
fazendo com que a propriedade produtiva tenha conteúdo axiológico. Estes
valores agregados são justamente os elementos da função social.
Todos estes
argumentos impõem seja imprimida uma conceituação jurídico-constitucional à
propriedade produtiva.
Privilegiar uma
interpretação meramente econômica implicaria reduzir o art. 184 da Constituição
a simples discurso de retórica, verdadeira letra morta, porque não poderia ser desapropriado o imóvel
que descumprisse a função social, mas somente o imóvel economicamente
improdutivo. Aceitar a acepção econômica de propriedade produtiva significa
dizer:
a) o imóvel rural
com uso irracional e inadequado que for ‘economicamente produtivo’ não será
desapropriado;
b) o imóvel rural
que degradar o meio ambiente, mas for ‘economicamente produtivo’ não será
desapropriado;
c) o imóvel com
trabalho escravo que for ‘economicamente produtivo’ está imune à
desapropriação;
d) o imóvel que
propiciar mal-estar aos trabalhadores, mas que for ‘economicamente produtivo’
não poderá ser desapropriado.
Em todas estas
hipóteses o imóvel rural descumpre a sua função social. Todavia, em nenhuma
delas será cabível a desapropriação. Tal orientação torna inócuo o art. 184, que afirma ser
dever da União desapropriar o imóvel rural que não estiver cumprindo sua função
social.
Advirta-se que a
adoção da acepção econômica de propriedade produtiva configura incentivo à
prática de atos ilícitos, pois o proprietário rural será estimulado a alcançar
a produtividade econômica a qualquer custo, visando com isto proteger-se contra
a desapropriação-sanção. Ora, a Constituição estabelece garantias aos cidadãos
na medida em que estas não
alberguem práticas ilícitas ou abusivas, e entender que o art. 185 protege o
agricultor que viola a função social é admitir que a Lei Fundamental faz
apologia ao ilícito, institucionalizando o adágio maquiavélico de que os fins justificam os meios(7).
Quanto a este
ponto, socorremo-nos, mais uma vez, das considerações de VALDEZ ADRIANI e
JOAQUIM MODESTO(8), expressadas nos seguintes termos:
"Pois bem, a
desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária de imóveis
rurais que não estejam cumprindo a função social é imperativo constitucional,
decorrente do art. 184 da CF/88. Vale dizer, de acordo com o art. 186 da
própria Constituição, o imóvel que deverá
ser desapropriado e destinado para a reforma agrária será aquele que, em
conjunto ou separadamente, não tenha aproveitamento racional e adequado, não
apresente utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e nem preserve
o meio ambiente, não observe as regulamentações trabalhistas, e cuja exploração
não favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Como poderia,
então, o art. 185 da CF/88 ignorar tais disposições e autorizar a proteção de
uma propriedade territorial rural que, embora sendo produtiva do ponto de vista
economicista, desconsiderasse a legislação ambiental, a legislação trabalhista
e existisse em desacordo com o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores?" (grifo no original).
Toda esta interpretação
é reforçada pelo disposto no parágrafo único do art. 185 da CF/88, que
determina seja dispensado tratamento especial à propriedade produtiva. Ora, dar
tratamento especial é fomentar o crédito, diminuir a tributação, conceder
privilégios, etc., somente se admitindo que tais benesses sejam concedidas ao
imóvel que, por cumprir a função social,
revela-se produtivo. O tratamento especial é concedido justamente porque cumpre
a função social e é economicamente sustentável. Considerar que a Constituição
está concedendo tratamento especial à propriedade que descumpre a função
social, sendo produtiva apenas do ponto de vista econômico, é um verdadeiro
absurdo, pois faz da Constituição uma norma que premiaria injustiças sociais.
Desta feita,
pode-se concluir que a única interpretação que preserva a sistemática
constitucional é aquela que entende ser "propriedade produtiva"
aquela que, além de cumprir a função
social, atinge índices mínimos desenvolvimento econômico.
Os alicerces até
aqui erigidos constituem base sólida a apoiar a adoção do conceito jurídico de
propriedade produtiva. A partir da fixação deste entendimento deverá ser
moldado o sistema infraconstitucional, dando-se, inclusive, interpretação
conforme a Constituição ao art. 6º da Lei 8.629/93, de modo que a norma seja
interpretada nos seguintes termos:
Art. 6º
Considera-se propriedade produtiva aquela que ALÉM DE CUMPRIR OS DEMAIS ELEMENTOS DA FUNÇÃO SOCIAL, É explorada econômica e racionalmente,
ATINGINDO, simultaneamente,
graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices
fixados pelo órgão federal competente (os grifos não constam da norma).
Feitas estas
digressões, concluímos pela viabilidade da desapropriação por interesse social
para fins de reforma agrária dos imóveis que, apesar de atingirem índices
mínimos de utilização e eficiência, descumprem a função social da propriedade
mediante violação de qualquer uma das suas sub-fuções, a saber: i) função
sócio-racionalidade; ii) função sócio-ambiental; ii) função sócio-trabalhista;
ou iii) função sócio-conforto.
5- Conclusão
Com base nestas
assertivas concluímos que:
a) a propriedade
imobiliária rural está obrigada a cumprir a função social;
b) a função social
somente é realizada quando seus quatro elementos são respeitados simultaneamente;
c) a violação a
qualquer sub-função descrita no art. 186 da CF implica descumprimento da função
social;
d) o não
atendimento da função social autoriza a desapropriação por interesse social
para fins de reforma agrária;
e) a imunidade
prevista no art. 185, II, da CF incide somente sobre a propriedade produtiva,
entendendo-se como tal aquela que além de cumprir a função social, atinge
índices mínimos de quantidade, qualidade, tecnologia, lucratividade, geração de
empregos, distribuição de renda, etc.;
f) não pode ser
acolhida a interpretação pela qual a produtividade é tomada exclusivamente sob
o ponto de vista econômico;
g) o imóvel rural
que causa degradação ambiental, ainda que seja economicamente relevante, pode
ser desapropriado para fins de reforma agrária; e
h) o art. 6º da
Lei 8.629/93 deve receber interpretação conforme a Constituição para ajustar-se
aos ditames do art. 186.
NOTAS
1- Valdez Adriani
Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Função
Social da Propriedade – Dimensões Ambiental e Trabalhista. Brasília:
NEAD/MDA, 2005, Série Debate, nº 2.
2- Direito Constitucional. Atlas, 20ª
ed., 2006, p. 10.
3- Valdez Adriani
Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Op. cit., p. 44.
4- Op cit.,
p. 44.
5- O Princípio da Função Socioambiental da
Propriedade Rural e a Desapropriação por Interesse Social para Fins de Reforma
Agrária. Monografia de Especialização. UnB-CDS. Brasília, 2005, p.
13/14.
6- Op. cit.,
p. 753.
7- Valdez Adriani
Farias e Joaquim Modesto Pinto Júnior. Op. cit., p. 28.
8- Op. cit.,
p. 17.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
D’ÁVILA, Renata
Almeida. O Princípio da Função
Socioambiental da Propriedade Rural e a Desapropriação por Interesse Social
para Fins de Reforma Agrária. Monografia
de Especialização. Brasília: UnB-CDS, 2005.
FARIAS, Valdez
Adriani; PINTO JÚNIOR, Joaquim Modesto. Função
Social da Propriedade – Dimensões Ambiental e Trabalhista. Brasília:
NEAD/MDA, 2005, Série Debate, nº 2.
MORAES, Alexandre
de. Direito Constitucional. 20ª
edição. São Paulo: Atlas, 2006.
* Procurador federal, coordenador de processos
agrários da Consultoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário,
ex-procurador do IBAMA e do INCRA.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10774
Acesso em: 06 out.
2008.