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Daniel Pinheiro Viegas*
O título deste texto não é apenas uma ironia, mas uma denúncia sobre o
grave contexto político e jurídico fomentado pelo Governo Lula, que vem permitindo
a aquisição de terras brasileiras por estrangeiros, pessoas físicas ou
jurídicas. De fato, sob o falso manto de empresas brasileiras, está se
alienando aos estrangeiros grandes parcelas do Território Nacional, sob o
pretexto de desenvolver atividades agrícolas para produzir cobiçadas
commodities, algumas associadas ao agro-combustível, outras para a criação de
reservas privadas e de negociação de certificados de carbono.
Esse processo de aquisição do Território Nacional vem ocorrendo desde o
final dos anos 90, principalmente em regiões como o oeste da Bahia e na
fronteira com o Estado do Tocantins. Hoje, há nelas uma forte presença de
Fazendeiros americanos, australianos, franceses, holandeses. Adquiriram imensas
fazendas a preços extremamente baixos, como informa oficialmente o sítio
eletrônico da CHESF, registrando ainda que isso teve o patrocínio estatal, a
partir do Programa de Irrigação do Nordeste – PROINE, levando ao
desaparecimento das médias e pequenas propriedades nas quais se produzia alimentos.
Em agosto desse ano, o Jornal "Estado de São Paulo" noticiou a
forte presença dos investimentos dos fundos de pensão americanos em terras
brasileiras, para fazer reserva de valor, com grandes aquisições de áreas na
Amazônia e no Pantanal Mato-grossense. Somente o milionário sueco-britânico
Johan Eliasch, através da ONG Cool Earth, adquiriu 160 mil hectares do
território do Estado do Amazonas.
O inusitado incentivo do Governo brasileiro alcançou várias regiões do
País. Outro forte estímulo à aquisição de terras por grupos estrangeiros é o
projeto de irrigação PONTAL SUL, localizado no município de Petrolina, região
do semi-árido de Pernambuco. De acordo com informações oficiais, o Governo
brasileiro, assessorado pelo IFC (International Finance Corporation), investiu
aproximadamente US$ 70 milhões para a construção parcial de
infra-estrutura de irrigação desde o Rio São Francisco até o chamado PONTAL
SUL, com o objetivo declarado de transferir tudo ao setor privado
internacional, sob o pretexto de desenvolver a agricultura intensiva irrigada,
financiando a concentração de renda com a terra e os recursos da sofrida
sociedade sertaneja.
Qualquer cidadão brasileiro, independente de posição ideológica, no
mínimo tem indignação ao ver o Governo brasileiro permitindo que grandes
parcelas do Território Nacional sejam vendidas a grupos estrangeiros, em
detrimento de uma política séria de Reforma Agrária, como também de proteção à
soberania da nação brasileira sobre o chão onde o povo luta para construir um
País mais justo e independente.
O mais grave de tudo isso é que se os agro-combustíveis se firmarem como
matriz energética voltada às necessidades internacionais, como pretende o
governo, não será necessário qualquer pretexto para ocupação do nosso
território, pois naturalmente os empresários estrangeiros serão estimulados, e
até legitimados, a adquirir a posse e as condições legais para controlar nossas
maiores fontes de riqueza e de energia:
terra, água e biodiversidade.
Quando se conhece melhor a base legal artificiosa que possibilita a
realização desses negócios, mais motivos adquirimos para nos indignar.
De fato, do ponto de vista jurídico, a compra de terras por estrangeiros
está respaldada no Brasil apenas por um mero parecer da AGU – Advocacia Geral
da União, mas que tem força normativa sobre toda a Administração Pública
Federal. Numa manobra maliciosa, mas engenhosa, esse Parecer defende, com
indisfarçável sofisma, que uma lei anterior do período militar estaria
revogada, pois não teria sido recepcionada pela Constituição Federal de 1988.
Assim, a alienação do território brasileiro foi pavimentada legalmente
por essa manobra, que foi engendrada por juristas a serviço de governantes
contrários aos interesses do povo. A seguir, se tenta dissecar e compreender
essa fraude jurídica.
A lei nº 5.709/71, promulgada no auge da ditadura Médici, veio a
regular a aquisição de Imóvel Rural por Estrangeiro Residente no País ou Pessoa
Jurídica Estrangeira, não havendo até então qualquer polêmica ou preocupação,
já que a norma estabelece critérios bastante rígidos.
Todavia, a grande discussão inicia-se já no § 1º do artigo 1º
[01] da mencionada lei, em que há uma extensão dos limites impostos às
pessoas jurídicas brasileiras, da qual participem, a qualquer título, pessoas
físicas estrangeiras ou pessoas jurídicas que tenham a maioria do seu capital
social ou residam ou tenham sede no exterior.
Desse modo, de acordo com a lei nº. 5.709/71, as pessoas físicas
estrangeiras não poderão adquirir imóvel rural que exceda a 50 módulos de
exploração indefinida, em área contínua ou descontínua.
Quanto às pessoas jurídicas estrangeiras, extensivamente às pessoas
jurídicas brasileiras com capital estrangeiro, a Lei nº. 8.629/9, que dispõe
sobre a regulamentação dos dispositivos constitucionais relativos à reforma
agrária, exige em seu art. 23, §2º, para aquisição de imóveis rurais de área
superior a 100 módulos de exploração indefinida a autorização do Congresso
Nacional.
Contudo, o Governo brasileiro, em 1995, publicou a Emenda Constitucional
nº 06, que revogou o art. 171 [02] da Constituição da
República, extirpando de seu texto os conceitos que diferenciavam "empresa brasileira" (art. 171, I)
de "empresa brasileira de capital
nacional" (art. 171, II). Essa alteração objetivou impedir qualquer
proteção, benefício ou tratamento preferencial a estas últimas. Com isso, se
pretendeu fortalecer a internacionalização das riquezas e dos ativos
brasileiros, ao garantir uma forçada igualdade entre o capital estrangeiro e o
capital nacional nas disputas pelas privatizações de empresas estatais, sempre
subvencionadas pelo BNDES, como também de aprofundar o processo de globalização
econômica.
Foi nesse contexto que, a serviço de um governo submetido ao ideário
neoliberal, a Advocacia Geral da União emitiu o discutido parecer
(AGU/LA-01/97) que foi aprovado pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso. Em
resumo, o parecer adotou o entendimento de que o §1º, do art. 1º da Lei nº
5.709/71 não teria sido recepcionado pela Constituição Federal de 1988.
A partir desse entendimento, o parecer da AGU afirmou que não seriam
aplicáveis às empresas brasileiras as mesmas exigências que a lei aplicava às
pessoas físicas e jurídicas estrangeiras para a aquisição e arrendamento de
imóveis rurais no País. Defendeu, então, que lei ordinária não poderia fazer a
distinção entre a denominada "empresa brasileira" de capital
estrangeiro e a "empresa brasileira de capital nacional".
Em 1997, aquele Parecer foi reexaminado pela AGU para se pronunciar
sobre a possibilidade de uma lei futura poder dispor sobre o assunto, com a
revogação do art. 171 pela E.C. 06/95. Na oportunidade, o novo Parecer
manifestou o entendimento favorável quanto à possibilidade do Congresso
Nacional impor restrições ao capital estrangeiro no País.
Todavia, reafirmando a compreensão adotada no primeiro parecer de que a
Constituição Federal teria revogado o § 1º, do artigo 1º, da Lei nº
5.709/71, o segundo pronunciamento da AGU concluiu que o citado artigo não
poderia vigorar (apesar de estar compatível com o atual paradigma
constitucional), até que o seu conteúdo fosse objeto de uma outra lei
específica. Com essa manobra, o Governo Federal, através da AGU, manteve as
portas abertas para o capital estrangeiro continuar comprando terras brasileiras,
considerando revogada a lei anterior e passando a responsabilidade ao Congresso
Nacional para edição de uma nova lei sobre o assunto.
Na verdade, o que se verificou foi uma clara opção governamental de
abrir mão da soberania sobre o território nacional, mesmo que para isso tenha
sido necessário recorrer a sofismas jurídicos para negar a concessão de
qualquer proteção ou benefício às empresas nacionais e ao próprio capital
nacional.
São evidentes os equívocos desse entendimento adotado pela AGU, tanto no
primeiro parecer, como na posterior revisão. De fato, como veremos nos
argumentos a seguir detalhados, o já referido § 1º, do art. 1º, da Lei
nº 5.709/71, não foi revogado pela Constituição Federal de 1988 e nem o
art. 23 da Lei nº 8.629/93 é inconstitucional.
A primeira observação confirmadora dessa afirmação é que o Parecer tem
razões incompatíveis com as suas próprias conclusões. Com efeito, a afirmação
da AGU de que o art. 171, da CF, permitiu a concessão de vantagens para
"empresas brasileiras de capital nacional", mas não impôs quaisquer
restrições à "empresa brasileira" de capital estrangeiro, em verdade
aponta para uma conclusão exatamente oposta à que adotou a AGU : ora, como a Constituição
excepcionalmente estabelece tratamento especial ao capital nacional, na
realidade está respaldando um maior rigor com as ditas "empresas
brasileiras" de capital estrangeiro.
Não bastasse isso, é preciso considerar que as excepcionalidades da
Constituição estão delimitadas dentro de uma perspectiva apenas econômica,
estabelecendo princípios e critérios financeiros para a inserção da economia
brasileira no processo histórico de internacionalização econômica, o que não se
refere, nem pode ser de outra forma, a soberania do País, perspectiva
verdadeiramente relacionada com a permissão de aquisição de propriedades rurais
por pessoas jurídicas de capital estrangeiro e para a qual não há proibição
constitucional.
Principalmente, é um frágil sofisma a AGU falar em revogação da Lei
nº 5.709/71 sob o argumento de que ela não teria sido recepcionada pela
Constituição de 1988, posto que o art. 190 da Constituição Federal prevê a
edição de uma lei que regule e limite a aquisição ou o arrendamento de
propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira, estabelecendo os casos
que dependerão de autorização do Congresso Nacional. Assim, é indiscutível,
portanto, que a lei ordinária de 1971, que regulou especificamente esse tema,
possui plena sintonia com a Constituição de 1988, contrariamente ao que foi
defendido em ambos os pareceres da AGU.
Quanto à igualdade entre os capitais nacional e estrangeiro, mencionada
no parecer da AGU, em razão da Emenda Constitucional 06/95, o Ministro Eros
Grau, do Supremo Tribunal Federal, em seu livro a Ordem Econômica na
Constituição de 1988, entende que não há qualquer violação ao princípio
constitucional da igualdade quando se relacionam coisas distintas entre si,
como "empresa brasileira" de capital estrangeiro e "empresa
brasileira de capital nacional".
Lembra ainda o Ministro que é importante que se esteja atento ao fato de
que a Constituição da República não pode ser interpretada às tiras, aos
pedaços, sem considerar o seu todo. Ora, por esse óbvio motivo, o art. 171, da
Constituição ou a EC 06/95, não podem ser interpretados a partir das
conveniências ideológicas da globalização econômica, que prega a igualdade de
tratamento entre o capital estrangeiro e o nacional. Na verdade, devem ser
interpretados harmonicamente com as imposições constitucionais do art. 170,
incisos I e III, da CF, que prevê como princípios da ordem econômica a soberania
nacional e a função social da propriedade, e com o art. 3º, inciso
II, que fixa como objetivo fundamental da República garantir o desenvolvimento
nacional.
É indiscutível, portanto, que o interesse público da sociedade
brasileira recomenda uma revisão do Parecer nº AGU/LA-01/97, pela Advocacia
Geral da União, para reconhecer que o § 1º, do art. 1º, da Lei nº
5709/71 não foi revogado pela Constituição Federal, sendo com ela inteiramente
compatível. Do mesmo modo, para reconhecer e exigir observância ao
art. 23, da Lei nº 8.629/93, evitando-se com isso que, sem qualquer
limite e critério, se continue retalhando e vendendo imensas parcelas do
território nacional para atender aos interesses do capital financeiro
internacional em detrimento da soberania brasileira e estimulando a formação de
modernas "capitanias hereditárias".
Por fim, os vários ângulos de visão desta questão (social, jurídico e
político) tornam inevitável concluir que tem sido muito cruel o destino que se
tenta impor ao povo brasileiro, que não cansa de lutar por cidadania na sua
pátria tão espoliada pelo capital internacional.
De fato, há 500 anos éramos um imenso território indígena. Aqui
desembarcaram estrangeiros e tomaram a terra na marra, criando leis e
capitanias para legitimar o esbulho que cometeram. Exatamente para plantar
cana-de-açúcar, forçaram índios ao trabalho escravo e logo trouxeram negros
escravizados para essa dura tarefa. Dessa mistura de raças e de sofrimentos
extremos surgiu o povo brasileiro, que até hoje luta por justiça e é tão
perseguido.
Estranhamente, quatro séculos depois, a mesma cana de açúcar, agora
transformada pela insana euforia do etanol, volta a trazer estrangeiros para se
apossar da terra e para espoliar o nosso povo sofrido, esgotando-o no trabalho
estafante dos cortadores de cana, com a produção em massa de migrantes forçados
a perambular sem direitos pelos canaviais.
E esses estrangeiros sempre encontram no Brasil governos dispostos a
servi-los à custa dos valores mais caros de uma nação: seu território e a consciência de seu povo. Não podemos nos
resignar ao título deste artigo. Temos, sim, que reescrever essa história, para
que não continue uma trágica e repetida farsa.
Notas
01 Art. 1º - O estrangeiro residente no País e a pessoa jurídica
estrangeira autorizada a funcionar no Brasil só poderão adquirir imóvel rural
na forma prevista nesta Lei.
§ 1º - Fica, todavia, sujeita ao regime estabelecido por esta Lei a
pessoa jurídica brasileira da qual participem, a qualquer título, pessoas
estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e
residam ou tenham sede no Exterior.
2. Art. 171 -. São consideradas: (Revogado pela EC-000.006-1995)
I - empresa brasileira a constituída sob as leis brasileiras e que tenha
sua sede e administração no País;
II - empresa brasileira de capital nacional aquela cujo controle efetivo
esteja em caráter permanente sob a titularidade direta ou indireta de pessoas
físicas domiciliadas e residentes no País ou de entidades de direito público
interno, entendendo-se por controle efetivo da empresa a titularidade da
maioria de seu capital votante e o exercício, de fato e de direito, do poder
decisório para gerir suas atividades.
§ 1º - A lei poderá, em relação à empresa brasileira de capital
nacional: (Revogado pela EC-000.006-1995)
I - conceder proteção e benefícios especiais temporários para
desenvolver atividades consideradas estratégicas para a defesa nacional ou
imprescindíveis ao desenvolvimento do País;
II - estabelecer, sempre que considerar um setor imprescindível ao
desenvolvimento tecnológico nacional, entre outras condições e requisitos:
a) a exigência de que o controle referido no inciso II do
"caput" se estenda às atividades tecnológicas da empresa, assim
entendido o exercício, de fato e de direito, do poder decisório para
desenvolver ou absorver tecnologia;
b) percentuais de participação, no capital, de pessoas físicas
domiciliadas e residentes no País ou entidades de direito público interno.
§ 2º - Na aquisição de bens e serviços, o Poder Público dará tratamento
preferencial, nos termos da lei, à empresa brasileira de capital nacional.
* Assessor jurídico
da Comissão Pastoral da Terra do Conselho Indigenista Missionário, advogado de
Comunidades de Camponeses, Indígenas e Quilombolas.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10747
Acesso em: 04 set.
2008.