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A propriedade rural,
sua função social e as invasões promovidas por movimentos sem-terra
Eduardo Messias Gonçalves de Lyra Júnior; Henrique
Monteiro Figueiredo; Pollyana Maria Farias de Gouveia *
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2.
Constitucionalização do Direito Civil. 3. A função social da propriedade. 4.
Dos princípios e das regras jurídicas. 4.1. Da colisão entre princípios e a sua
resolução. 4.2. O princípio da dignidade da pessoa humana e a sua inserção no
ordenamento constitucional brasileiro. 5. Considerações finais. 6. Referências
bibliográficas.
1. Considerações iniciais
Fruto de uma secular elaboração conceitual (Gambaro, 1990:
85), o direito à propriedade é tutelado no ordenamento jurídico brasileiro de
um modo que não diverge muito da maneira pela qual outros países integrantes do
sistema do direito civil garantem ao proprietário o uso, o gozo e a disposição
da coisa, tal como sustentado pelos romanos há centenas de anos.
Nas palavras de Diez-Picazo, reservava-se ao direito das
coisas o mesmo aspecto monolítico e incontestável comum ao direito das
obrigações, considerado como uma espécie de geometria euclidiana intemporal
(1995: 62).
Nas sociedades primitivas, a propriedade individual
limitava-se às coisas móveis, essencialmente objetos de uso pessoal. O solo
pertencia a todos os membros da tribo, da família, ou, mais exatamente, não
pertencia a ninguém, assinalam Terré e Simler (1998: 64).
Esta propriedade coletiva dos bens, prosseguem os citados
autores, explicava-se pela própria condição de vida do homem primitivo.
Explicam Terré e Simler (op. e loc. cit.):
"Quand les hommes ne vivent que
de la chasse, de la pêche et de la cuillette des fruits sauvages, il n’est pas
question d’une appropriation de la terre telle que nous la connaissons".
Graças aos ideólogos do liberalismo, muitos séculos
depois, o ordenamento jurídico assentado no princípio da propriedade privada,
"elevada à categoria de direito imanente ao homem, como atributo de sua
personalidade", encontrou sua fundamentação teórica (1)
(Lôbo, 1983: 38).
Ressalta Carbonnier que o direito há muito tempo requer da
economia política argumentos que criem justificativas à propriedade individual.
Os economistas liberais franceses jamais se recusaram em dá-las. Para eles,
aduz Carbonnier, a propriedade individual aumenta a produção, porque a
incitação do interesse pessoal elimina a preguiça (paresse) e o
desperdício (gaspillage) (2000: 137).
As ponderações dos teóricos do liberalismo assentavam,
explicam Terré e Simler, mais ou menos sobre o justo e o útil para a sociedade
ou sobre a salvaguarda da liberdade, sem necessariamente excluir a proteção da
liberdade do outro (op. cit.: 84).
Aduz
Diez-Picazo (op. cit.: 64) que "al mismo tiempo, la economia liberal,
fundada em el esquema del ‘laissez faire’, configura la propiedad como una mera
y abstracta titularidad, con uma notable indiferencia hacia sus contenidos
reales". A regulação jurídica da propriedade, em face de tal
indiferença, complementa aquele ilustre professor, faz-se através de um esquema
abstrato, que, em princípio, é igual qualquer que seja seu objeto (um
latifúndio ou um par de sapatos). O sistema, porque fundado no liberalismo
econômico e na livre iniciativa, consagrará a liberdade dos titulares dos
direitos quanto à destinação dos bens e suas possibilidade de utilização e de
gozo.
A propagação de tais idéias – a despeito das restrições
que o direito de propriedade atualmente enfrenta –, permitiu que proprietários
remissos, que não destinam seus imóveis rurais à sua função social, gozem,
ainda, de uma injustificável proteção.
Num país de dimensões continentais, como é o caso do
Brasil, a posse pela terra tem causado conflitos nos quais a violência parece
ter sido o traço mais marcante.
Vêem-se grandes extensões de terras usadas, em alguns
casos, unicamente para fins especulativos, de um lado, e grupos de pessoas
sequiosas por uma oportunidade de trabalho dignificante, de outro.
Invasões a imóveis rurais ocorrem diuturnamente e o
proprietário rural, valendo-se do direito de propriedade que lhe confere o
ordenamento jurídico, maneja ação de reintegração de posse obtendo, sem
tardança, a desocupação da área invadida, às vezes com o auxílio da força
policial, o que tem dado ensanchas a manifestações de violência retratadas na
mídia falada, escrita e televisiva.
Será que a concepção de Estado Social, tal qual a adotada
constitucionalmente por nosso País, permite que se tutele irrefletidamente o
direito de propriedade, sem atentar para os interesses que se encontram do
outro lado do conflito?
Será que o proprietário de grandes extensões de áreas
rurais, a despeito de utilizá-las unicamente para fins especulativos; não
respeitando os índices legalmente previstos de exploração do solo; violando
normas ambientais de interesse público; infringindo leis que tutelam as
relações trabalhistas, deverá obter, num conflito possessório, contra quem
venha explorando na área invadida lavoura de subsistência familiar, liminar ou
definitivamente, a reintegração postulada?
A abordagem dos mecanismos que poderão ser utilizados pelo
operador do direito para resolver litígios envolvendo movimentos de sem-terra,
de um lado, e proprietários de terras, quando ausente a função social da
propriedade in casu, de outro, se constitui no objetivo do presente
trabalho.
2. Constitucionalização do direito civil
No sistema jurídico geral, esclarece Raiser (1990: 180), a
atribuição específica do direito privado é, principalmente, a de regular, numa
base paritária, as relações entre os sujeitos, sejam esses indivíduos ou
grupos.
Rescigno, na introdução de um dos volumes de seu conhecido
Trattato di Diritto Privato, dedicado ao direito de propriedade,
esclarece que a sociedade burguesa do século XIX tinha colocado a propriedade
numa posição de eminência e a tábua de valores mantinha uma solidez na
consciência geral. Confiava-se aquela "tábua", continua Rescigno, aos
códigos de direito privado, ao invés das cartas constitucionais, porque eram os
códigos que continham a concreta garantia da liberdade e da atividade dos
particulares (Rescigno et. al., 1982: V).
Nas cartas constitucionais, prossegue Rescigno (op. e
loc. cits.), encontrava-se somente a declaração enfática do caráter sagrado
e inviolável da propriedade privada. Este caráter inviolável e sagrado da
propriedade era enunciado não apenas enquanto característica da não ingerência
do Estado em relação à propriedade privada, mas enquanto aspecto prevalente,
quando não exclusivo, das declarações de direitos, presentes nas cartas
constitucionais.
Com o passar dos anos, à medida que se abandonava a noção
do Estado mínimo, e passava-se a reclamar uma intervenção estatal mais direta
no domínio antes reservado à vontade exclusiva dos particulares, as
Constituições passaram a regular matérias jurídicas que outrora integravam o
campo do direito privado.
Matérias como os limites das atividades econômicas, a
organização da família e a função social da propriedade, passaram a integrar
"uma nova ordem pública constitucional" (Tepedino, op. cit.:
07), conformadora de toda a legislação infraconstitucional, deslocando para o
Texto Constitucional "o papel unificador do sistema, tanto nos seus
aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância
publicista" (Perlingieri, 1997: 6).
A Constituição Federal de 1988, enquanto novo pacto entre
as forças sociais e políticas brasileiras, trouxe, a seu reboque, um novo
conjunto de valores, de bens, de interesses considerados e privilegiados pelo
ordenamento jurídico.
Ocupando o lugar mais alto na hierarquia das fontes do
direito, a constituição funda o ordenamento normativo, conferindo-lhe
legitimidade, bem como o une, pondo-o, todo ele, em relação de subordinação e
conformidade aos princípios e regras constitucionais.
Embora considerado a "constituição do Direito
Privado", cumprindo-lhe o papel de "estatuto único e
monopolizador das relações privadas" (Tepedino, 1999: 03), o Código
Civil necessita compatibilizar-se com as normas constitucionais.
O operador do direito, em face do campo de incidência das
normas constitucionais – muito mais amplo que outrora – há de interpretar
qualquer dispositivo legal infraconstitucional em face dos princípios e regras
insertos na Carta Magna.
3. A função social da propriedade
A Constituição Federal de 1998, na parte relativa aos
direitos e garantias fundamentais, garante o direito de propriedade (art. 5.º,
inciso XXII), ressalvando, contudo, que esta última "atenderá a sua
função social" (inciso XXIII).
Ao relacionar os princípios a serem observados para que a
ordem econômica, radicada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tenha por finalidade assegurar a todos existência digna, de acordo
com os ditames da justiça social, o art. 170, da CF/88, refere-se,
expressamente, à "função social da propriedade" (inciso III).
Observe-se, contudo, que a função social da propriedade
não grava todo e qualquer bem, indiscriminadamente.
Grau (op. cit.: 252 e ss.), embora considere que
somente a propriedade dos bens de produção é que estaria adstrita ao
cumprimento da função social (p. 254), distingue, ainda, no tocante àqueles,
determinadas circunstâncias nas quais a propriedade desempenha uma função
individual, daquelas outras em que o cumprimento da função social poderá ser
exigido, ao explicar:
"...
enquanto instrumento a garantir a subsistência individual e familiar – a
dignidade da pessoa humana, pois – a propriedade consiste em um direito
individual e, iniludivelmente, cumpre função individual. Como tal, é garantida
pela generalidade das Constituições de nosso tempo, capitalistas e, como vimos,
socialistas. A essa propriedade não é imputável função social; apenas os abusos
cometidos no seu exercício encontram limitação, adequada, nas disposições que
implementam o chamado poder de polícia estatal".
A discussão acerca da função social que a propriedade deve
necessariamente desempenhar não é recente no âmbito do direito privado.
Carbonnier (op. cit.: 139), embora destacando o
mérito de Léon Duguit ao abordar o assunto em sua conhecida obra de 1912, Les
transformations générales du droit prive depuis le Code Napoleón, aponta
que Augusto Comte, em sua obra Système de politique positive, de 1850,
já via na propriedade uma indispensável função social, "...destinée
à former et à administrer les capitaux dans lesquels chaque génération prépare
les travaux de la suivante".
A doutrina nacional, sobre o tema, conta com inúmeras e
expressivas contribuições.
Ao atribuir-se à propriedade privada uma função (social),
acometendo a seu titular um poder-dever, pondera Grau (1998: 255), com base em
Sundfeld, que se traz para o direito privado algo que originariamente estava
afeto ao direito público, que é o condicionamento do poder a uma finalidade.
Tal função social deve apresentar um matiz ativo,
consistente em comportamentos positivos (prestações de fazer), de modo a impor,
ao proprietário "o dever de exercê-lo em benefício de outrem e não,
apenas, de não o exercer em prejuízo de outrem" (2) (Grau, op.
e loc. cit.).
A propriedade, enquanto bem, se configura como relação
entre pessoa e coisa. Portanto, as coisas, ou bens, devem ser instrumento a
serviço dos homens para a satisfação de suas necessidades (cf. Oliveira, 2001:
11).
Na abalizada opinião de Fachin, a propriedade deve ser
"menos exclusão e mais abrigo, menos especulação e mais produção"
(1996: 107).
É dentro deste contexto que a doutrina especializada vem
afirmando não poder mais subsistir o conceito romanístico de propriedade, de
conotação francamente individualista. Observa-se, ao contrário, nos dias
atuais, que o individualismo da propriedade perdeu espaço para o interesse
coletivo, de modo a subordiná-la, cada vez mais, ao bem comum (cf. Maluf, 1997:
03).
São de Marquesi (2001; 95) as seguintes e pertinentes
observações:
"...
já não é possível admitir que o titular empregue seu imóvel em atenção a fins
puramente individuais. Cumpre-lhe, ao contrário, fazê-lo de uma forma útil à
sociedade, usando-o como um instrumento de riquezas e visando à felicidade de
todos. E, de fato, sendo escassos os bens naturais postos à disposição do
homem, exige-se que seu uso se faça para proveito de todos, ainda que se deva
respeitar a propriedade como um direito subjetivo individual, em contraposição
às combalidas teorias marxistas. O predicado da função social, diz Trotabas,
citado por Ribeiro da Cunha, não constitui uma ameaça ao direito do
proprietário; antes, completa e enriquece a noção de propriedade".
A propriedade, assim, constitui-se em um verdadeiro
encargo social, voltada, ao bem estar da coletividade.
Como conciliar esta necessidade de se atender ao bem estar
da coletividade, de um lado, com a inescondível concentração de terras nas mãos
de uns poucos – fenômeno característico de nosso País –, de outro?
A propriedade latinfundiária em nosso País é admitida sem
qualquer limitação para os cidadãos brasileiros.
Esta situação se explica, segundo Gondinho (2000: 397),
"pelo alarmante desconhecimento do verdadeiro alcance do princípio da
função social da propriedade e sua integração com a própria estrutura do
direito de propriedade".
O que há de se levar em conta, é que a função social da
propriedade, princípio constitucional de conteúdo certo e determinado - e não
mera norma programática - é um importante aliado da democracia, a ponto de, se
inobservado, possibilitar a utilização de "instrumentos jurídicos aptos
a promover os objetivos fundamentais da República consagrados pela Constituição"
(op. cit.: 399).
Na visão de Fachin (op. cit.: 109), a função social
da propriedade corresponde a uma "formulação contemporânea da
legitimação do título que encerra a dominialidade". Explica-se:
deve-se estudar o Código Civil à luz da Constituição Federal e não ao
contrário, como querem alguns; a proteção ao proprietário deve, antes, passar
pelo respeito da situação daquele que não pode usar, gozar e dispor (Código
Civil Brasileiro, art. 524), isto é, daquele que não é proprietário. O direito
de propriedade, como todos os outros direitos coletivos, deve ser assegurado e
exercido em função da sociedade, que é o seu principal alvo.
Na opinião abalizada de Bessone (1996: 75 - 77), o direito
de propriedade é geral, esbarrando apenas em algumas limitações, como o direito
de vizinhança e as limitações impostas pelo poder de polícia, por exemplo; é,
ao mesmo tempo, coletivo e unitário, por abranger uma série de direitos que
acabam se fundindo num só, que é o próprio direito de propriedade; perpétuo,
porque não se extingue pelo não-uso; absoluto, porque o seu detentor pode
opô-lo contra todos, salvo as limitações impostas por ordem pública e/ou
privada; exclusivo, eis que dois domínios não podem incidir, concomitantemente,
sobre a mesma coisa e, finalmente, elástico, pois pode ser reduzido a um certo
mínimo ou alcançar um máximo, sem deixar de ser propriedade.
Princípio da ordem econômica, assegurado no âmbito dos
direitos e garantias fundamentais, a Carta Cidadã de 1988 garante o direito de
propriedade, desde que atenda a sua função social.
Segundo Gondinho (op. cit.: 413), socialmente
funcional será a propriedade que, desde que respeitada a dignidade da pessoa
humana, contribua para o desenvolvimento nacional e para diminuir a pobreza e
as desigualdades sociais.
O cumprimento dessa exigência não se dá apenas em caráter
hipotético: ao contrário, a própria Constituição Federal delineia seus
parâmetros.
O art. 186 da CF/88 elenca quatro requisitos para que a
propriedade rural tenha atendida sua função social, quais sejam: aproveitamento
racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais existentes e
preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as
relações de trabalho e exploração da propriedade, desde que favoreça o
bem-estar dos proprietários e dos que nela trabalham. Somente a propriedade que
atenda a todos esses requisitos é que terá atendido a sua função social. Assim,
ainda que produtiva, a propriedade rural não atenderá a sua função social se a
sua produção estiver baseada em violação das normas trabalhistas, por exemplo.
Como se vê, pois, a propriedade continua tendo seu
conteúdo protegido e o proprietário continua mantendo sua característica de
dono; o que mudou, ou melhor, evoluiu, é que cabe à lei definir os modos de
aquisição, uso, gozo e limites da propriedade, sempre com o objetivo de
favorecer sua função social.
A quem se destinaria, contudo, o mandamento constitucional
de que a propriedade deverá cumprir a sua função social?
Conforme Gondinho (op. cit.: 421), a "função social
da propriedade tem destinatários específicos: o titular do direito de
propriedade, o legislador e o juiz".
Para o primeiro, continua o jurista, "a função
social assume uma valência de princípio geral": isto é, o proprietário
não pode perseguir, ao exercer seus atos e atividades, uma função anti-social
ou até mesmo, antijurídica, ao passo em que deve ter garantido a tutela
jurídica a seu direito.
O legislador é destinatário da função social da
propriedade porque este não pode conceder ao titular do direito de propriedade,
através de normas infraconstitucionais, poderes extravagantes ou em contrário
ao interesse social previamente tutelado.
Em referência à atividade judicante, o magistrado e os
demais operadores jurídicos devem encarar a função social da propriedade como
um "critério de interpretação e aplicação do direito, deixando de
aplicar as normas que lhe forem incompatíveis" (Gondinho, op. cit.:
422).
Assim, caso a propriedade rural latifundiária não atenda
sua função social porque o proprietário não proceda a seu aproveitamento
racional adequado; não utilize adequadamente os recursos naturais disponíveis
nem preserve o meio ambiente; desrespeite as normas que regulam as relações
contratuais trabalhistas; a explore de uma maneira tal que não favoreça o
bem-estar do proprietário e dos trabalhadores, deve o magistrado levar tais
circunstâncias em consideração quando provocado, através de ação reintegratória
de posse, pelo titular do respectivo domínio.
Conquanto o Código Civil Brasileiro atribua ao
proprietário o direito de reaver a coisa de quem quer que injustamente a possua
(art. 524), de se ver, em face de todas as ponderações desenvolvidas até agora,
que a interpretação e a aplicação do citado dispositivo passará,
necessariamente, pela conformação da situação fática respectiva às prescrições
da Carta Magna, perquirindo-se, in concreto, sobre o cumprimento, ou
não, da função social a que alude a CF/88.
Nos casos em que a invasão do imóvel rural tenha sido
promovida por pessoas carentes, que não disponham do mínimo necessário a uma
existência digna, e que nele tenham, p. ex., plantado lavoura de subsistência,
a reintegração de posse, pleiteada pelo proprietário cujo comportamento se
caracterize pelos atos descritos acima, não deverá encontrar êxito, seja porque
o direito de propriedade fora exercitado fora dos limites traçados
constitucionalmente, seja porque a par do direito fundamental de propriedade,
conferido ao titular do domínio, um outro direito fundamental, a dignidade da
pessoa humana, conferido aos invasores do exemplo dado, com aquele primeiro
colide, a reclamar o pronunciamento judicial.
Alguns esclarecimentos acerca do que sejam princípios e
regras jurídicas, bem como a resolução prática de sua colisão, fazem-se
necessários.
4. Dos princípios e das regras jurídicas
A norma jurídica, enquanto expressão deôntica, consistente
numa determinação, permissão ou proibição, subdivide-se em regra e princípio.
As regras e os princípios são normas porque dizem o
dever-ser.
A diferença entre uma e outra, sustenta Alexy (1997: 83),
pode ser estabelecida através da adoção de um variado número de critérios,
dentre estes o da generalidade, que seria, segundo aquele emérito professor, o
mais freqüentemente utilizado.
De acordo com o referido critério, os princípios seriam
normas de um grau relativamente alto de generalidade, ao passo que às regras
assistiria generalidade relativamente baixa.
A par desta constatação, Alexy sustenta, outrossim, que o
ponto decisivo para a distinção residiria em que os princípios seriam normas
que ordenam que algo seja realizado na maior medida do possível, dentro das
possibilidades jurídicas e reais existentes (op. cit.: 86).
Os
princípios seriam, portanto, mandatos de otimização, "que están
caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y
que la medida de su cumplimento no sólo depende de las posibilidades reales
sino también de las jurídicas". O âmbito das possibilidades
jurídicas, complementa Alexy (op. cit.: 86), é determinado pelos princípios e
regras opostos.
As regras, de acordo com as lições daquele prestigiado
jurista, seriam normas que podem ser cumpridas ou não. Em sendo válida, nada há
que se fazer, senão o que ela prescreva, nem mais, nem menos. As regras, assim, "contienen
determinaciones en el ámbito de lo fáctica y jurídicamente posible" (op.
cit.: 87).
Em face de tais observações, constata Alexy que a
diferença entre regras e princípios seria de natureza qualificativa e não de
grau.
4.1. Da colisão entre princípios e a sua resolução
Ocorre colisão de direitos fundamentais, de acordo com
Canotilho (1993: 643), "quando o exercício de um direito fundamental por
parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de
outro titular". Trata-se de um autêntico conflito de direitos,
complementa, na medida em que duas normas – que outorguem a sujeitos diversos,
direitos opostos – podem conduzir a resultados incompatíveis, ou seja, a dois
juízos de dever-ser jurídico contraditórios (cf. Alexy, op. cit.: 87).
Nesta hipótese, a distinção entre regras e princípios
assume um relevo ainda maior, na medida em que as técnicas utilizadas para se
resolver a colisão entre umas e outros apresentar-se-á totalmente distinta.
Em se tratando de conflitos entre regras jurídicas,
explica Alexy (op. cit.: 88), sua resolução requer a introdução em uma
das regras de uma cláusula de exceção que elimine o conflito ou a declaração de
invalidade de uma delas, pelo menos.
Afasta-se, assim, a possibilidade de coexistência de duas
regras conflitivas.
Quando dois princípios entram em colisão, observa Alexy (op.
cit.: 89), um deve ceder em relação ao outro, sem que se lhe declare a
invalidade ou se lhe insira cláusula de exceção.
Pode ocorrer que um dos princípios, dada sua inserção no
ordenamento jurídico constitucional, preceda ao outro (3), ou em
determinados casos concretos, tenha um peso maior.
Neste caso, teoriza Alexy, há de se aplicar o que ele
denomina de "lei de colisão", a qual, numa formulação não muito
teórica – segundo ele mesmo –, teria o seguinte enunciado: "Las
condiciones bajo las cuales um principio precede a outro constituyen el supuesto
de hecho de uma regla que expresa la consecuencia jurídica del principio
precedente" (op. cit.: 94).
Assim, de acordo com exemplo fornecido pelo próprio Alexy,
se a realização de uma audiência oral num processo crime, poderia trazer risco
de vida para o acusado – acometido de grave moléstia –, o direito à vida, deste
último, sobrepõe-se ao dever do Estado de garantir uma aplicação adequada do
direito penal, constituindo-se esta circunstância (ameaça à vida do acusado),
no fato gerador de uma regra que expressa a conseqüência do princípio
precedente (não realização da audiência).
4.2. O princípio da dignidade da pessoa humana e a sua
inserção no ordenamento constitucional brasileiro
De acordo com o art. 1.º, da Constituição Federal de 1988,
"a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos", dentre outros, "a dignidade da
pessoa humana" (inciso III).
A dignidade da pessoa humana "como valor supremo a
cuja tutela se orienta teleologicamente o sistema jurídico revela uma concepção
antropocêntrica do ordenamento", ensina Negreiros (1999: 353).
Canotilho (op. cit.: 363), partindo da teoria dos
cinco componentes, creditada a Podlech, estabelece, para a individualização do
princípio da dignidade da pessoa humana, as seguintes perspectivas: a)
afirmação da integridade física e espiritual do homem como dimensão
irrenunciável da sua individualidade autonomamente responsável; b) garantia da
identidade e integridade da pessoa através do livre desenvolvimento da
personalidade; c) libertação da "angústia da existência" da pessoa
mediante mecanismos de socialidade, dentre os quais se incluem a possibilidade
de trabalho e a garantia de condições existenciais mínimas; d) garantia e
defesa da autonomia individual através da vinculação dos poderes públicos a
conteúdos, formas e procedimentos do Estado de direito; e) igualdade dos
cidadãos, expressa na mesma dignidade social e na igualdade de tratamento
normativo.
A possibilidade de trabalho e a garantia de condições
existenciais mínimas, enquanto expressão da dignidade da pessoa humana, impede
que no caso acima referido se tutele exclusivamente o direito fundamental de
propriedade que o titular do imóvel invadido apresenta, resguardando o direito
fundamental daqueles invasores que somente praticaram o ato de invasão porque
obrigados pelas circunstâncias de sua realidade fática (carência, fome).
São justamente estas circunstâncias de fato – invasão de
um imóvel que não cumpre sua função social, movida por necessidades primárias,
básicas (fome) dos invasores – que se constituem no fato gerador de uma regra
que expressa a conseqüência jurídica do princípio precedente – dignidade da
pessoa humana – em relação aqueloutro – propriedade privada –, qual seja: a não
reintegração de posse in casu.
5. Considerações finais
Percebe-se, do texto, que o direito de propriedade
experimentou grande evolução no século passado.
O abandono gradual da percepção da realidade jurídica sob
um prisma liberal, individualista, e a adoção de uma perspectiva mais social e
coletiva, ensejaram que o Estado interviesse mais diretamente nas relações
jurídicas entre os particulares, de modo a conformar os direitos subjetivos daí
decorrentes aos ditames mais consentâneos com a realidade em que vivemos
atualmente.
A Constituição da República, enquanto ápice da pirâmide
normativa, confere legitimidade aos demais textos legiferantes, os quais devem
subsumir-se aos princípios e regras constitucionais.
A propriedade, guardadas as limitações expostas no texto,
deve cumprir a função social que lhe acomete o texto constitucional.
Num conflito possessório envolvendo um proprietário
remisso, que não haja dado às terras que possua destinação pertinente à função
social, de um lado, e invasores que na área invadida tenham plantado lavoura de
subsistência, de outro, não se deve conceder ao primeiro a reintegração de
posse, se sua pretensão vier fundada exclusivamente no direito de propriedade
de que seja titular.
Neste passo, o operador do direito poderá valer-se do
critério proposto por Robert Alexy para a resolução da colisão de princípios
albergados na carta constitucional, já que dois direitos fundamentais
exsurgiriam daquela situação: o direito de propriedade, atribuído ao dono do
imóvel, e a dignidade da pessoa humana, direito fundamental conferido aos
invasores no exemplo dado.
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Notas
1. Diez-Picazo sustenta que se deve insistir na estreita
conexão que existe entre o sistema jurídico-privado, que forma o que se designa
como direito das coisas, e as estruturas econômicas e sociais por uma parte e
os princípios gerais da organização política por outra (op. cit.: 62).
2. No mesmo sentido, Comparato, 1986, p. 75: "A
norma tem, indubitavelmente, o sentido de uma imposição de deveres positivos ao
proprietário".
3. Canotilho (op. cit.: 345) ressalta a existência de
princípios constitucionais estruturantes, os quais "designam os princípios
constitutivos do ‘núcleo essencial da constituição’, garantindo a esta uma
determinada identidade e estrutura".
* Advogado, pós-graduando em Direito Privado pelo Centro
de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC)
* Advogado, pós-graduando em Direito Privado pelo Centro
de Estudos Superiores de Maceió (CESMAC)
* Servidora do Tribunal Regional do Trabalho da 19ª Região
(Alagoas), pós-graduanda em Direito Privado pelo Centro de Estudos Superiores
de Maceió (CESMAC)
Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3106>. Acesso em: 30 mai.
2006.