® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

 

Região do Araguaia

 

"A reestruturação agrária na terra de ninguém."

 


Guilherme Korte

Bispos, posseiros, empresários e escritores vivem por lá. A posse de terras no Araguaia está vinculada à qualidade da terra, ao poder político, à força de vontade de crescer e principalmente ao sacrifício pelo progresso individual e coletivo. Hidrovia, estradas e energia podem alavancar uma região polêmica e estratégica ao desenvolvimento nacional assim como acontece a privatização da reforma agrária.

Desde tempos remotos, navegantes estrangeiros subiam o rio Araguaia fascinados pelas areias brancas, pela fartura de peixes e a possibilidade de encontrar riquezas naturais. Os índios, moradores das margens do rio, viam com curiosidade a passagem destes homens vestidos, calçados e armados de intenções distintas, muitas vezes nocivas e maléficas, apesar das boas palavras.

Os carajás, mais pacíficos, ficaram. Os xavantes, tapirapés, ava-canoeiros e outras tribos mais violentas, em defesa de suas culturas e de seus espaços sagrados, sucumbiram ou pouco restaram. O plantio de mandioca, a pesca e a caça continuam. Acabaram as festas tradicionais e as ocas gigantescas.

Há décadas, missionários estrangeiros em busca de catequizar e de outras informações andavam entre os chamados incivilizados. Escreveram os nomes indígenas com y, k e w. A ocupação da região deu-se de forma esparsa e descontínua. Levas de retirantes do norte de Goiás, Maranhão e Piauí chegavam a pé e em lombo de burros. Atravessavam o rio Javaés e o Araguaia em busca do verde, das terras fartas e de águas cristalinas. A Ilha do Bananal por sua extensão, fartura de fauna e difícil acesso foi local de morada de criminosos e cangaceiros perseguidos pelas milícias legalistas. Viviam em paz com os índios e em guerra com os brancos.

Com a chegada da expedição Brasil-Central na década de 1950, dos irmãos Villas Boas e das intenções do presidente Juscelino Kubitschek de levar o progresso e o desenvolvimento ao centro-oeste muito se gastou e se programou para a Ilha. Uma estrada atravessando a maior ilha fluvial do mundo, a rodovia que integraria o Brasil de leste a oeste ligando Salvador a Porto Velho foi demarcada, e diga-se, pelo exército norte-americano. Um hotel e até um pequeno Palácio, o Alvoradinha foi construído nas margens do Araguaia.

Hoje a situação é um pouco diferente. A Ilha do Bananal abriga o Parque Nacional do Araguaia e a Reserva Indígena do Araguaia. Do palácio e do hotel, apenas o alicerce restou. Neste momento, uma equipe da Polícia Federal vai cumprir um mandato da Justiça para retirar os posseiros que ali chegaram há muitos anos. Vão deixar os 400 quilômetros de comprimento por quase 100 de largura da ilha para os 2.300 índios das etnias Carajás, Javaés e uns poucos Ava-canoeiros.

No lado do Estado de Mato Grosso, de dois anos para cá, uma grande procura por terras para o plantio de soja, algodão e mamona transforma os arquétipos de colonização até então utilizados tanto pelo Incra como pelos fazendeiros e posseiros. O preço por hectare dobrou algumas vezes. O poder da fé, da Justiça, da política e o econômico serram trincheiras em seus interesses reais, algumas vezes omitidos.

A Prelazia de São Félix do Araguaia abrange 16 municípios no lado
matogrossense e paraense, a Prelazia de Cristalândia abrange 21 municípios no lado de Goiás e Tocantins, estados banhados pelo grande rio. Uma possui um bispo americano e a outra a comanda um catalão, da Espanha. Ambos pregam a defesa dos pobres e uma Justiça social e econômica. Dom Pedro Casaldáliga, polêmico, poeta e bispo, questiona a chegada do progresso:

"Progresso para que, progresso a custa de quem e a custa de que, progresso em que medida, com que ritmo, respeitando quem, a serviço de quem? Eu sou o primeiro a querer o progresso. Quero saúde, educação, emprego, produção e proteção à ecologia, isso tudo se esse terceiro mundo dentro do qual está indo o Brasil, deixar de ser terceiro mundo", filosofa Casaldáliga. Nas suas andanças pela Prelazia já presenciou muitas cenas que chocariam qualquer estrangeiro culto ou brasileiro estudado. A sensação mais complexa de se viver neste lado do Araguaia para Dom Pedro é a distância. A distância cultural e a geográfica.

Quando chegou, a estrada de 700 quilômetros que separa Barra do Garças de São Félix do Araguaia estava sendo aberta. Hoje são ainda 400 quilômetros em terra. A promessa do "chão preto" já constou em três décadas de campanhas políticas. Do outro lado do Araguaia, o bispo Dom Heriberto Hermes, de Cristalândia, lembra que há 40 anos, quando chegou em Mineiros (GO), o então prefeito mencionou duas frases que não esqueceu e — acredita — servem até hoje: "O povo brasileiro nem espera nem exige honestidade dos políticos" e "para um pobre ficar rico é ganhar na loteria ou ganhar na política".

O norte-americano tomou posse em setembro de 1990 e defende a reforma agrária, mas de forma diferente. Acredita que a entrega da escritura ao posseiro no momento da desapropriação é a melhor forma para fixar o homem no campo. A noção de propriedade é das mais importantes no mundo capitalista. Em seus trabalhos, inclui além do apoio à agricultura familiar e à conscientização do povo com relação aos direitos sociais, a formação de agentes jurídicos populares, o preparo de jovens com intenções de seguir carreira política em cursos de gestão pública e dos direitos do consumidor.

O norte-americano, como o brasileiro, é contra a internacionalização da Amazônia, mas como cidadão do mundo, se for para a preservação e o bem estar da humanidade, apóia, disse ele citando palavras de Gilberto Gil. A questão agrária é das mais complexas, já que terras boas não permanecem nas mãos dos pobres, por um ou outro motivo, concluiu sorrindo, Dom Heriberto.

Já Dom Pedro Casaldáliga, quando escreveu a primeira carta pastoral ao assumir em 23 de outubro de 1971, na região do Araguaia, prevendo o futuro, escolheu como tema "A igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social".

A defesa dos interesses de questões sobre saúde, educação e comunicação, da resistência ao latifúndio, de contestação da ditadura militar, era nula e não havia quem pudesse agir na região, senão a igreja. E tiveram de assumir uma pastoral mais complexa, mais global. "Se a primeira missão do bispo é a de ser profeta" e "o profeta é aquele que tem a voz daqueles que não têm voz, eu não poderia honestamente ficar de boca calada ao receber a plenitude do serviço sacerdotal", disse, justificando sua polêmica atuação nos 150 mil km² da Prelazia.

Um dos latifúndios, a Fazenda Suiá Missú, em 1971, da Família Ometto, possuía 695.843 hectares, maior que o território do Distrito
Federal, Brasília. O atual proprietário de metade dessa área, Gilberto
Rezende, fez por conta própria a reforma agrária. Já transferiu mais de 280 títulos de terra, registradas em cartório para os posseiros que ali estavam desde 1990. Mesmo que seu nome e fama sejam mencionados de formas distintas, a selva expulsa janotas e acadêmicos na abertura.

A área é de mata, terra boa. O Incra transfere a posse de 50 hectares, nesse tipo de terra, mas Rezende doou o dobro. Justifica que com os 100 hectares, eles podem produzir para comercializar. Menos que isso ficam escravos da terra, diz. Outro grande empresário da região, Romão Flôr, agropecuarista de 3 mil hectares de soja e 80 mil bois na engorda em cem mil hectares de pasto que parecem um jardim, acredita ser esta a melhor forma de assentar o homem no campo, sem torná-lo escravo da terra. É preciso investimento e terra boa para o bom agricultor, afirma Romão.

Há muitos anos, o Incra vem fazendo desapropriações políticas e econômicas, mas não com visão social. Do sul do Pará, nordeste de Mato Grosso ao noroeste do Tocantins, milhões de hectares de terras ruins estão ocupadas por posseiros. Cascalho, areia e seca constam do memorial descritivo destas áreas mais antigas da reforma agrária. Segundo Leonel Wohlfahrt, superintendente regional do Incra em Mato Grosso, os assentamentos acabam sendo feitos por pressão política.

No Mato Grosso, estão 72 mil famílias assentadas, das quais 42 mil não usufruem de nenhuma infra-estrutura, como estradas, maquinários, poços artesianos ou outras condições mínimas que o progresso oferece para melhorar a qualidade da vida do homem do campo. O órgão está viciado. Sofre pressões políticas, internas
e externas.

Hoje os funcionários não têm compromisso real com uma reforma agrária adequada e justa. Há distorções de prioridades em relação à fixação do assentado a longo prazo, que exige terra boa e projetos coerentes e bem estruturados, em detrimento de soluções imediatistas, politiqueiras, econômicas e inconseqüentes em relação ao futuro do assentado, segundo Leonel.

A verba para assentar 4 mil famílias é de 89 milhões de reais em 2003. No ano passado foram gastos 272 milhões para 2.200 famílias. Mas, segundo o dirigente, há 137 dias no cargo, não haverá reforma agrária se não mudar a estrutura judiciária do Brasil, mesmo com dinheiro e vontade política do governo federal.

A interpretação jurídica num julgamento fundiário ou de posse da terra, deve ser baseado na função social e com uma visão social ao país. Ao agilizar uma decisão agrária, a Justiça pode diminuir a pressão nas grandes cidades e o prejuízo da sociedade como um todo é muito menor, disse. O Incra vai abrir em breve, vagas para 2.900 servidores, inclusive de procuradores. É necessário uma nova mentalidade na equipe, um pensamento mais justo.

Funcionários com grandes áreas de terras, parentes e grandes comerciantes regionais também as receberam. Alguns possuem centenas de vacas e grandes lavouras, em terras do governo, mesmo
trabalhando para o órgão responsável para diminuir o número de sem terras no Brasil. Leonel diz que agora vai utilizar 3 milhões e 400 mil hectares da união e 2 milhões e 900 mil hectares do estado para realizar a reforma agrária.

Algumas áreas estão ocupadas por grandes fazendas, outras estão vazias. Uslei Gomes, antigo executor do Incra na região e hoje prefeito de São Félix do Araguaia, reafirma que o assentado em terra ruim torna-se um vassalo dela. É preciso evitar novos equívocos, pois muitos habitantes são colocados em terras inviáveis, diz.

João de Souza Luz, prefeito de Novo Santo Antônio, município recém emancipado em área de assentamento rural, critica a atuação do Incra. Reclama da total falta de assistência técnica nos projetos distribuídos aos posseiros. Estranhamente, só na hora da distribuição de verbas e das vacas aparecem os técnicos dos órgãos estaduais e depois o assentado fica desamparado, conta Luz, da sua cidade de 42 quarteirões, 14 ruas e uma avenida, às margens do Rio das Mortes. Metade do município abriga o Parque Estadual do Araguaia com 230 mil hectares, paraíso para a fauna, a flora e aos poucos seres humanos que lá habitam.

André Luiz Luz Azevedo recebeu a posse de 57 hectares em 2001, antiga área de pasto de uma fazenda. Na metade limpa cria 25 vacas. Recebeu algumas cabeças do Incra e aguarda nova distribuição de verbas do governo para construir sua casa e comprar mais vacas. Hoje trabalha na cidade, pois da terra não consegue tirar seu sustento. É solteiro e tem 25 anos. Acredita que num futuro poderá obter renda suficiente para morar na fazenda.

Já muitos companheiros dele, que receberam na mesma época, pegaram o dinheiro do programa de alimentação familiar do Incra, o Pronaf e compraram motocicletas, aparelhos domésticos e abandonaram as terras. Não são agricultores e querem somente o dinheiro do governo, para melhorar sua qualidade de vida na cidade, diz.

A reforma agrária é um dos principais pontos do governo do presidente Lula. O dito popular "em cavalo dado não se olha os dentes" em relação à questão, dá prejuízo à nação. Depois de dez anos, 60% dos assentados não estão na terra. Já passaram para outros ou abandonaram. O dinheiro do contribuinte usado para a desapropriação, para construir estradas, casas, a compra de máquinas, financiar a produção e a colheita foi levado pela chuva. O Incra é muitas vezes convocado quando a problemática chega na imprensa. Sob pressão e coação de políticos e empresários, muitas vezes não é ouvido pela justiça regional e isso é um grave problema, conclui diz Leonel.

A possibilidade de a iniciativa privada também participar, através de
licitações e pelas vias legais pode contribuir para o projeto dar certo, diz um escritor morador na região há oito anos. Léo Godoy Otero, já viveu a situação de outra forma. É advogado, nascido em Morrinhos, Goiás, na época dos Coronéis, neto de um deles e tataraneto de bandeirantes, fundadores de Uberaba. Antigamente os fazendeiros achavam bom terem agregados morando na fazenda. Faltava gente e sobrava terra, conta.

Acampamentos de sem-terras estão no município de Cascalheira, no Mato Grosso e em Santana do Araguaia, no Pará. Alguns dos acampados são especialistas em abrir áreas de posse. Dos primeiros que chegam nas glebas, apenas 1% fica e poucos pais de família vão submeter sua prole às dificuldades de abertura de uma área de terra, diz Fábio Barros Coelho, ex-vereador de São Félix do Araguaia. Nem mãe nem filhas querem morar na mata — só depois da terra "amansada". Isto é, com estradas e alguma infra-estrutura é que chegam os donos definitivos, explica Coelho, que também já abriu "gerais" com os pais, na década de 60. Na época, todos iam para a gleba, mas hoje é diferente.

A monocultura concentra poder econômico e político. O posseiro assentado precisa plantar para comer e para comercializar, a fim de comprar café, açúcar, sabão, querosene, remédios, panelas, roupas, sapatos, televisão, antena parabólica, pilhas, lanternas e outros produtos da indústria moderna.

Na China, país um pouco maior que o Brasil, com metade das terras
inabitáveis e o mais populoso do mundo, tentaram todas as formas de produção conhecidas pelo homem. A reforma agrária foi feita. Consideraram a produtividade, a função social da terra, a ocupação dos desocupados, a labuta dos acadêmicos, as técnicas milenares, as novas tecnologias, as ideologias radicais, a realidade local e o sofrimento do povo com um único objetivo, produção de alimentos.

Nos últimos 50 anos a idéia evoluiu, principalmente com as experiências malogradas. Naquele país, são diversas as formas de propriedade rural, a individual, a coletiva, a cooperativa e a estatal são as principais. Grandes fazendas estatais produzem o estoque estratégico governamental. Em Anhui, província agrícola banhada pelo rio Yangtsé, cada homem agricultor administra um mú, 2.500 metros quadrados. E a produção é individual. Ele vende para quem quiser. O homem colhe o que planta. Dar condições a ele é o papel do governo chinês. Lá, se o sujeito bobear, outro recebe a terra para plantar. Até os cemitérios foram proibidos no campo. As áreas boas devem ser cultivadas.

As noções de propriedade, de progresso, de desenvolvimento e de preservação são ainda constantemente questionadas pelos diversos setores da ainda jovem sociedade brasileira.

O etnólogo russo I.A. Zhetetski afirma no início do século XX, que uma
família de cinco pessoas devia possuir na Ásia central uma quinzena de cavalos, oitenta ovinos ou caprinos e três camelos para sobreviver. A revista russa "Narody Srednei Azii" (Povos da Ásia Central) publicou que em 1960 uma família de pastores nômades precisava de no mínimo quinze cavalos, dois camelos, cinqüenta carneiros e seis outros animais de grande porte, como vacas ou iaques para assegurar tanto a sua alimentação rica em "alimentos cinza" (carne, quase sempre fervida; dai sua cor cinza) e em "alimentos brancos" (laticínios frescos ou fermentados), quanto à reprodução periódica do rebanho.

O órgão responsável pela reestruturação no campo brasileiro deveria calcular por região de terra fértil, ruim ou arenosa e hoje com as novas tecnologias via satélite é trabalho menos penoso, quantas galinhas, patos, porcos, vacas e eqüinos, quantos hectares de mandioca, arroz e milho, além do pasto, o assentado precisaria possuir para conseguir
criar sua família. A falta de seriedade do órgão competente está colocando o país agrícola, que será o celeiro do mundo em 2015, segundo a ONU, num abismo. As universidades e academias agrárias devem ter os estudos, falta apenas praticar.

O Vale do Araguaia foi palco de fatos históricos, como a guerrilha em
Xambioá que movimentou mais de 300 mil militares do exército brasileiro. Grandes reservas de minério estratégico ficam nos subterrâneos da polêmica área. As maiores fazendas do mundo já estiveram na região. O maior leilão de gado do mundo foi realizado também por ali, com 17 mil cabeças de gado. O gado nelore ainda é o carro-chefe. No Egito antigo, o boi branco era considerado sagrado e ofertado em sacrifício para agradar aos Deuses de então. Pediam paz e prosperidade. Na região do Araguaia, mandam milhares para o frigorífico anualmente. Será esse o sacrifício em busca do progresso
e da paz que chega lentamente a essa zona tão misteriosamente disputada?

Revista Consultor Jurídico, 1º de setembro de 2003.

 

 

Fonte:http://www.conjur.com.br